domingo, 23 de outubro de 2011

Só os doentes do coração deveriam ser atores (SP)


Foto: Angela Alegria
Para sempre

Como para o personagem de “Só os doentes do coração deveriam ser atores”, a festa de Corpus Christi era a minha preferida entre as celebrações do ano litúrgico.

Tão sublime sacramento
Adoremos nesse altar
Pois o Antigo Testamento
Deu ao Novo o seu lugar.
Venha a fé por suplemento
Os sentidos completar.

O centro de Gravataí se enfeitava. Nós, os jovens, passávamos a madrugada toda pintando serragem para fazer desenhos nas ruas por onde o Santíssimo haveria de passar. A roupa do Monsenhor Irineo era a mais bonita. As canções eram as mais belas. Diferente do Natal e da Páscoa, o comércio nada fazia: tudo era estritamente católico. E lindo. E teatral.

Como me apontou um amigo que também esteve nessa platéia, essas lembranças ficam apenas na minha mente. E não me é possível afirmar que isso tudo tem o mesmo significado na cabeça de quem, comigo, viveu essas procissões na juventude. Foram fatos vividos por muitas pessoas, mas deles hoje são só há fachos de luz e de pensamento.

O teatro e a vida, sem qualquer dose de proselitismo artístico, se aproximam por serem fachos de luz e de pensamento. Tantos e tantas, incluindo nós, que hoje estão, amanhã não estarão mais. Estão vivos todos aqueles que não estão mortos. E ponto final.

Semana passada fui assistir a uma peça nesse Teatro do Ciee. O cenário era do Elcio Rossini e três bailarinas dançavam. Ontem, o teatro era o mesmo. O palco era o mesmo e as poltronas também. Sentei quase no mesmo lugar que da outra vez, bom capricorniano que sou. Mas já não havia bailarinas, nem placas brancas no palco. Antônio Petrin, do Rio de Janeiro e não de Porto Alegre, apresentava um monólogo cujo texto e direção são de Eduardo Figueiredo e o cenário é de Simone Mina. Amanhã, domingo, outra peça estará no mesmo palco. E Petrin estará, talvez, fazendo outro personagem, em outro lugar. Como também a vida, o teatro deixa de existir. É teatro tudo aquilo que não é teatro.

“Só os doentes do coração deveriam ser atores” fala de muitas coisas, entre elas, a sensibilidade da vida e a dor no coração. Só sofre dele quem, nas palavras do personagem, lê bons livros, tem bons amigos, freqüenta lugares onde emoções são partilhadas. Ao som do piano, um ator completa 40 anos de carreira interpretando um ator. Um cenário intimista, uma luz pontual. Um monólogo com cara de desabafo. Ele mora sozinho, fuma, bebe, foi casado muitas vezes, sente saudades do seu falecido irmão, e interpreta Ricardo III. O final, que me pegou de surpresa, é o simples apagar de luzes. Não sei se as luzes do teatro onde o Shakespeare é encenado. Talvez a da casa onde o ator mora. Pode ser ainda sua morte. E pode não ser, porque só é final tudo aquilo que não é nem início, nem meio. E como saber?

Interessa dizer, antes que os fachos da minha mente se tornem mais fracos, que estive lá. Que vi. E que aplaudi.

O resto é meu. E só meu para sempre.

*

Ficha Técnica:
Texto e Direção: Eduardo Figueiredo / Elenco: Antônio Petrin / Pianista: Elaine Giacomelli / Assistência de direção: Franco Ferrara / Direção musical: Elaine Giacomelli e Eduardo Contrera / Iluminação e figurino: Cíntia Alves / Operador de luz: Luiz Victaliano / Cenografia: Simone Mina / Programação visual: André Moia / Produção executiva: Tili Woldby e Gabriela Penteado / Direção de produção: Maurício Machado / Crédito fotos: Paulo Sadao

*Texto escrito em setembro de 2009 por ocasião do 16º Porto Alegre em Cena 

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