sexta-feira, 22 de novembro de 2019

Conselho de Classe (RJ)

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Foto: Thyago Barbosa 

Amaury Lorenzo, Thales Coutinho Vivian Sobrino, Jean Bodin e Ricardo Gadelha

Ótima nova montagem de “Conselho de Classe” traz a Niterói debate sobre educação

Nesse final de 2019, montagem niteroiense de “Conselho de Classe”, da F2 e da Sundin Produções, mantém acesas de modo brilhante as reflexões oferecidas por Jô Bilac e pela Cia. dos Atores em 2013. À luz dos acontecimentos da atualidade brasileira, o jogo proposto pela dramaturgia ganha contornos diferentes, o que exibe não só a potência do texto, mas também os méritos de quem se esforça para avivar o debate na pauta. Fabio Fortes é quem assina a direção dessa vez, com Amaury Lorenzo, Ricardo Gadelha, Jean Bodin, Vívian Sobrino e, em melhor trabalho, Thales Coutinho no elenco. Realizada com recursos obtidos a partir da Prefeitura Municipal de Niterói (hoje talvez uma das únicas administrações públicas que valoriza verdadeiramente a cultura no país), o projeto da montagem foi selecionado na Chamada Pública para Teatro Adulto em novos espaços cênicos da Secretaria das Culturas. Está em cartaz gratuitamente em todas as terças-feiras, às 19h, na quadra coberta do Colégio Estadual José Bonifácio (Rua Carlos Maximiano, 20 – Bairro Fonseca) até o dia 17 de dezembro de 2019. Vale muito a pena ver. 


A beleza de um excelente texto de Jô Bilac 
2013, tão perto/tão longe, foi o último grande ano do teatro carioca. Foi quando estrearam “Elis, a musical”, “Cine_Monstro”, “Quem tem medo de Virgínia Wolf?”, “Cazuza, pro dia nascer feliz”, “Como vencer na vida sem fazer força”, “Incêndios” e “Conselho de Classe”, entre outros ótimos espetáculos. Nos prêmios daquele ano, Jô Bilac venceu, pelo texto desse último, Melhor Dramaturgia e Marcelo Olinto o de Melhor Ator. “Conselho de Classe”, dirigido por Bel Garcia e por Susana Ribeiro naquele momento, trazia, como oportunidade de reflexão, uma reunião de quatro professoras de escola pública diante do desafio de encaminhar assuntos relativos ao final do ano letivo depois do afastamento da diretora da escola onde elas trabalham. 

Na história, a diretora Vivian havia barrado a entrada na instituição de um aluno por ele estar vestindo um boné. Em represália, o assunto foi debatido no grupo de teatro da escola, que estava ensaiando a peça “O Pagador de Promessas”, de Dias Gomes, célebre dramaturgo brasileiro que aliás dava nome ao estabelecimento fictício. Em protesto, os alunos-atores vieram se apresentar também vestindo um boné, o que causou um tumulto entre as forças mantenedoras da ordem e aquelas revoltosas. No episódio, a diretora fora agredida e, depois de hospitalizada, entrando em licença médica logo depois. As consequências de seu afastamento motivaram uma reunião do conselho escolar, esse composto, entre outras pessoas, pelas professoras Célia de Matemática, Edilamar de Educação Física, Mabel de Artes e Paloma da Biblioteca. O ato porém é marcado pela chegada de João Rodrigo, ele um interventor enviado pela Secretaria de Educação para assumir o posto de Vivian à frente do grupo. 

O embate parte superficialmente de uma oposição que é metáfora, em 2019 sobretudo, para a polarização política do Brasil: quem defende a ordem, a classe, os privilégios de um lado e quem defende a revolução, a horizontalização das decisões, o anti-reacionarismo de outro. No entanto, principalmente depois da chegada do elemento externo, a binariedade inicial do jogo se revela mais complexa. Talvez o segundo lado não seja tão diferente do primeiro, e esse nem tão algoz. O esforço dramatúrgico vai além, porém, da crítica simplista que poderia simplesmente dizer que as duas faces da moeda são, no fim das contas, “farinha do mesmo saco”. Jô Bilac é claro: em se tratando de seres humanos, a trágica oposição (que nos chega desde “Ifigênia em Aulis” de Eurípedes e “Antígona” de Sófocles) é complexa justamente porque faz parte de modo indissociável da humanidade. Em outras palavras, não se pode tomar justamente uma das alternativas em detrimento de outra, porque é com ambas em conciliação que o todo se revela. 

Ainda sobre a dramaturgia, há que se valorizar as diversas referências com que “Conselho de Classe” pode dialogar. A primeira delas é a peça “O Pagador de Promessas”, citada nominalmente no texto, escrita há sessenta anos e produzida em 1960, por Dias Gomes (1922-1999). Para salvar o seu burro da morte, o protagonista Zé fizera uma promessa de carregar uma cruz até o altar de Santa Bárbara em Salvador, mas, chegando lá, é impedido de entrar na igreja pelo padre, o que causa uma rebelião social. Há também a centralidade ancestral das falas de Tia Paloma, que, como Tirésias, trazem o incômodo de verdades angulares. Paloma pode ainda fazer uma alusão a “O Idiota” (1869), romance do russo Fiodor Dostoiévski (1821-1881). Nele o protagonista Príncipe Míchkín, símbolo da máxima pureza humana, é uma espécie de espelho invertido que acaba motivando, nas pessoas “de bem” da cidade, a revelação de seus podres mais atrozes. Vale lembrar também do romance “O senhor das moscas” (1954), do norte-americano William Golding (1911-1983), e do filme “Os pássaros” (1963), do inglês Alfred Hitchcock (1899-1980). Essas podem ser úteis na análise do momento específico da leitura de um relatório que traz todo o antecedente dramático da narrativa de “Conselho de classe. Essas referências agregam uma possibilidade expressionista que pode ajudar a entender aqueles personagens em laboratório, tão presos à reunião e aos seus empregos quanto os são as figuras de “Entre quatro paredes” (1944), do francês Jean-Paul Sartre (1905-1980). 

Valores da encenação dirigida por Fabio Fortes 
Na montagem atual, Fabio Fortes preserva bons méritos da montagem primeira do texto, valorizando a potencialidade para o momento presente do rito teatral, em que nunca uma peça é igual à outra. O elo mais importante do diálogo entre essa produção e aquela é o fato das professoras mulheres serem interpretadas por atores homens (cis). Não muito próximo da questão de gênero, mais em voga hoje em dia do que em 2013, a opção pode ser apenas estética e muito menos sociológica. O fato de atores homens se chamarem entre si com nomes femininos causa um estranhamento inicial no público, que demora um certo tempo para entender o código. A proposta, uma possível atualização do distanciamento brechtiano, ratifica um pedido da encenação à audiência: que não se abdique da consciência crítica em favor da alienação diante da obra artística. Fortes quer que o público permaneça com o pensamento ativo e não troque esse pela emoção inebriante. “Conselho de Classe” não é uma peça romântica com estrutura dramática de causa e efeito, heróis e vilões. 

No entanto, desde essa ideia inicial, há uma novidade nessa montagem. Diferente de Bel Garcia e de Susana Ribeiro, para Fabio Fortes, o interventor João Rodrigo pode não ser um personagem “de fora” da bolha, mas alguém de dentro. Mantendo o código estético que norteou o casting dos outros personagens, esse também é interpretado por uma pessoa de gênero diferente: é a atriz Vívian Sobrino que dá vida ao interventor. Talvez esteja em aí uma consequência significativa bem relevante: para além de questões éticas e morais, está nos personagens todos um desejo de sobrevivência que é muito humano, incluindo João Rodrigo. 

Outra decisão importante de Fortes é o cenário cuja concepção também é assinada por ele. Esse “Conselho de Classe” não acontece em um teatro, mas numa quadra de esportes viva para além de qualquer ficção. Enquanto assiste à peça, o público vê por sobre os atores a realidade de uma escola pública que é metaforizada pelo espetáculo. O colorido disso é substancial e muito positivo. A energia é outra, a conexão da obra com o espaço é muito maior e interessante, tornando a produção ainda mais meritosa do que talvez pudesse ser. 

Há que se destacar ainda o figurino de Renata Egger, vibrante em cada mínimo detalhe. O sapato cuja sola tem cola escorrendo pelas beiradas, a camisa maior que o corpo, a bermuda sem alfaiataria: cada mínimo detalhe releva níveis profundos de significação, tornando os personagens tão vivos quanto o próprio local onde a encenação acontece. O desenho de luz de Palito tem o mérito de não carregar a teatralidade já equilibrada pelo casting, agregando como o figurino uma dose de realismo que parece ter sido necessária. E a sonoplastia explora signos profundos, colaborando com o ritmo e oferecendo uma poética que embeleza o todo positivamente. 

Potente interpretação de Thales Coutinho 
Há bons trabalhos de interpretação em todo o elenco já na sessão de estreia. Thales Coutinho (Profa. Célia), Amaury Lorenzo (Profa. Edilamar), Ricardo Gadelha (Tia Paloma), Jean Bodin (Profa. Mabel) e Vívian Sobrino (João Rodrigo) entram em cartaz ainda se acostumando com o texto e (mais e menos) visivelmente buscando apoios mentais que, na primeira parte da peça, não favorecem o ritmo. Em um segundo momento, porém, quando os conflitos começam a se acirrar, suas certezas aparentemente melhoram de modo considerável e todo o espetáculo começa a ficar mais fluído. Lá pelas tantas, no entanto, há nova queda no ritmo pela manutenção invariável de entonações agressivas. Porque se sabe que a constância privilegia menos a construção de sentido que as diferenças, a pouca exploração de quebras, de curvas e de alternâncias prejudica a excelência. 

Thales Coutinho, em oposição a Bodin e a Lorenzo, é, do elenco, aquele que melhor apresenta um ótimo trabalho desde a sessão de estreia. O intérprete tira excelente resultado de sua relação com o público, vibra também em frases não-ditas, colore as intenções com múltiplos sentidos, explora bem o corpo e as pausas, oferecendo ótimo resultado investigativo. Ocupando com galhardia diversos níveis, sua Professora Célia vai da ironia à franca honestidade com segurança, fazendo a audiência se divertir e se enternecer com sua figura. Aplausos! 

Descentralização da cultura em Niterói
A montagem niteroiense de “Conselho de Classe” merece destaque na grade de programação teatral fluminense não só por seus citados méritos estéticos e tampouco pelo profícuo debate que o texto promove em separado. É preciso considerar o quadro geral da produção. Trata-se de um projeto profissional que se torna realidade distante do eixo centro-zona sul carioca e, mais do que isso, ganha vida em um espaço não-teatral por excelência em Niterói. Quem ama o teatro pode se deleitar com tudo, mas principalmente com o modo encantado com que um público aparentemente não acostumado com eventos desse tipo observa a apresentação. É lindo ver a arte teatral conectando pessoas e espaços e mantendo ativa a reflexão de modo tão inteligente e belo como essa oportunidade aqui. Vida longa à peça! Parabéns! 


*

Ficha técnica:

Texto: Jô Bilac
Direção: Fabio Fortes

Elenco:
Profa. Célia - Thales Coutinho
Profa. Edilamar - Amaury Lorenzo
Tia Paloma - Ricardo Gadelha
Profa. Mabel - Jean Bodin
João Rodrigo - Vívian Sobrino.
Voz em off: Denilson Gracco

Produtor: Rodrigo Sundin
Cenário: Fabio Fortes
Figurino: Renata Egger
Iluminação: Palito
Sonoplastia Sérgio Lobato
Designer Gráfico: Vinicius Medeiros.
Fotos: Aline Silvestre.
Vídeos: Cambara Filmes.

Produção: F2 produções Artísticas e Sundin Produções.

terça-feira, 26 de março de 2019

Navalha na carne (RJ)

Foto: Victor Hugo Cecatto

Luisa Thiré, Rainieri Gonzalez e Alex Nader

Luísa Thiré brilha em "Navalha da carne" ao homenagear sua avó Tônia Carreiro

O clássico brasileiro “Navalha na carne” ressurge mais uma vez em ótima montagem no Rio de Janeiro. A peça, escrita em 1966 pelo célebre dramaturgo santista Plínio Marcos (1935-1999), estreou um ano depois tendo Tônia Carreiro (1922-2018) no papel protagonista em montagem histórica. Pouco mais de cinquenta anos depois, é a atriz Luisa Thiré, neta de Tônia, quem dá vida à mesma personagem. Em ótima encenação dirigida por Gustavo Wabner, a montagem tem também Alex Nader e sobretudo Ranieri Gonzalez em excelente atuação. A montagem, em que a trilha sonora, a luz, o figurino e o cenário são elogiáveis, estreou no ano passado e segue cumprindo apresentações pelo Brasil. No último final de semana, esteve no Teatro Municipal João Caetano, em Niterói/RJ. Depois de participar do Festival de Curitiba, a peça seguirá para o Teatro de Arena no Espaço SESC Copacabana. Vale a pena assistir. 

Um clássico do teatro brasileiro 
“Navalha na Carne” é um marco na história do teatro brasileiro. O texto, escrito durante o ano de 1966, recebeu tão logo finalizado uma análise bastante elogiosa do renomado crítico Yan Michalski. No início de 1967, o diretor Jairo Arco e Flexa (1937-2018), que havia produzido o histórico “Liberdade, Liberdade” em 65, dirigiu a primeira encenação da peça, tendo Ruthneia de Moraes como Neusa Sueli, Paulo Villaça como Vado e Edgard Gurgel Aranha como Veludo. Depois de algumas apresentações no Teatro Maria Della Costa, em São Paulo, a peça foi censurada pelo governo militar. O Brasil vivia o primeiro ano do Marechal Costa e Silva, o segundo ditador a ocupar o posto de presidente desde o golpe de 1964. Os atores Cacilda Becker e Walmor Chagas, que moravam em um duplex na Avenida Paulista, resolveram oferecer sua casa para a peça se apresentar numa noite aberta para artistas e intelectuais. Arco e Flexa e Ruthneia receberam o Troféu de Melhor Direção e de Melhor Atriz no Prêmio da Associação de Críticos de Teatro de São Paulo por suas participações. Mais do que isso, fizeram a estrela Tônia Carreiro se apaixonar pelo texto. 

No final dos anos 60, Tônia Carreiro era uma das atrizes mais respeitadas do cenário artístico brasileiro, com vasto currículo no teatro e principalmente no cinema. Sua beleza estonteante era reconhecida internacionalmente. Por isso, foi com estranheza que o boato de que ela interpretaria a prostituta decadente Neusa Sueli da terceira peça do jovem dramaturgo Plínio Marcos chegou ao Rio de Janeiro. “Barrela”, de 1958, e “Dois Perdidos Numa Noite Suja”, de 1966, já tinham tornado o escritor conhecido por seus personagens marginais. Segundo consta, Tônia exigiu interpretar a protagonista e Plínio topou contanto que ela aceitasse que Fauzi Arap dirigisse a peça e que Nelson Xavier desse vida a Vado. Enfrentando vários militares, participando de muitas reuniões, a atriz obteve uma licença parcial para apresentar o texto. Com tudo pronto para a estreia no Teatro de Arena (ao lado de onde hoje fica o Theatro Net Rio, em Copacabana), a censura barrou a estreia. Enquanto Plínio Marcos entretia os jornalistas, dando entrevistas, o público foi conduzido secretamente para uma casa que Tônia Carreiro tinha no morro Santa Teresa, no centro do Rio. Depois de se apresentar lá, fez ainda temporada no Teatro Maison de France e no Teatro Glaucio Gill antes de ser definitivamente proibida. Tônia Carreiro ganhou o Prêmio Molière e o Prêmio da Associação de Crísticos de Melhor Atriz. Na sequência, protagonizou “A casa de bonecas”, de Ibsen, e “Quem tem medo de Virgínia Woolf”, de Albee, marcando definitivamente o seu lugar no roll das melhores atrizes da história do Brasil. 

Tônia Carrero, Emiliano Queiroz e Nelson Xavier
“Navalha na carne”, com muitos cortes, virou cinema em 1969, em uma produção de Jece Valadão, dirigida por Braz Chediak (tem inteira no YouTube). Nessa versão, Valadão interpreta Vado, Glauce Rocha dá vida à Neusa Sueli e Emiliano Queiroz repete o seu inesquecível Veludo que ele assinou na montagem com Tônia Carreiro. O texto só seria inteiramente liberado em 1980. Em 1997, Neville D’Almeida dirigiu nova versão cinematográfia da obra, com Vera Fischer, Jorge Perugorría e Carlos Loffler nos papéis principais. No Rio de Janeiro, a última montagem da peça foi em 2012: uma excelente versão dirigida por Rubens Camelo, com Marta Paret, Rogério Barros e Danielo Watanabe. 

A visão de Plínio Marcos sobre a humanidade 
A peça se passa no quarto da prostituta Neusa Sueli (Luísa Thiré) em uma casa de cômodos decadente de alguma zona de meretrício no meio do século XX. Na narrativa, o tempo passa em paralelo com o fora dela, isto é, os setenta e cinco minutos da encenação são os setenta e cinco minutos da ficção: sem elipses, sem saltos, sem flashbacks. Ao entrar depois de um turno de trabalho, Sueli surpreende seu cafetão Vado (Alex Nader) deitado em sua cama. Ele responde, dizendo que ainda não saiu de casa. O conflito imediatamente aparece. Vado espanca Neusa Sueli porque ela não lhe deixou o dinheiro da noite anterior. Ela reage, jurando que, como de costume, colocou o dinheiro no criado-mudo, acusando o faxineiro Veludo de tê-lo roubado. Ao sair, ela surpreendera o serviçal se despedindo de um garoto de programa, que foi provavelmente pago com a quantia surrupiada. Veludo é chamado e ele enfrenta Vado. 

A trama funciona em uma lógica de oposições. De início, há o homem e a mulher, o opressor e a oprimida. Com a entrada de Veludo, há dois homens e uma oposição entre o sádico e o masoquista. Há ainda, as oposições entre o jovem e o velho, entre o hétero e o homossexual, aquele que paga e aquele que é pago, o drogado e sóbrio, o cansado e o dispoto, entre outras. O movimento do texto é o de bipolorização seguido do de espelhamento. Em outras palavras, Plínio Marcos opõe dois contrastes para, pouco a pouco, fazer com que os opostos se aproximem quando uma terceira posição aparece. Com esse exercício, ele derruba toda a moral e a ética por trás da aparência dos personagens. 

O melhor aspecto de “Navalha da carne” são as marcas que aproximam o texto de uma leitura realista naturalista. Por realismo naturalismo, há que se entender um contexto estético em que seus caracteres têm comportamentos instintivos, isto é, não racionais. Como um animal manso, Neusa Sueli deixa o dinheiro conquistado com o seu trabalho ao seu macho. Como um animal preguiçoso, Vado vive desse dinheiro fácil e estranha não tê-lo para comprar sua droga. Como um animal ardiloso, Veludo pega o dinheiro que encontra disponível. Nos três casos, não se é possível valorar como certo ou como errado, como vítima ou como algoz, como bom ou como mau. E é nesse contexto animalesco que está a visão de mundo expressa por Plínio Marcos em “Navalha na carne”. O que é a humanidade? Certamente não é onde não há dignidade. 

Quando os setenta e cinco minutos terminam, o espectador presenciou vários giros da narrativa capazes de contrapor os personagens até igualá-los em suas naturezas. A plateia fica diante de um quadro estático, por que não absurdo?, de abandono total. Como em “Quem tem medo de Virgínia Wolf?”, que termina quando George e Martha precisam criar algum jogo depois que aceitam o fato de não terem filhos, Neusa Sueli olha para o público em busca de uma resposta sobre o que acontecerá com ela depois dali. Enquanto houver reflexão, há filosofia. 

Ótimo conjunto de interpretações 
A direção de Gustavo Wabner é excelente em vários aspectos, mas principalmente pelo modo maduro com que ele deixa a peça respirar. Se os palavrões tornaram os textos de Plínio Marcos mal conhecidos, eles não são a sombra da marginalidade dos seus personagens mais famosos. As piores palavras são ditas em seus textos quando os personagens estão em silêncio. E Wabner, com maestria, soube abrir espaço para as interpretações se verem diante desses silêncios contragedores. Assistida por Celso André, a direção tem ainda o mérito pelos movimetos em cena. A limitação do quarto oferece ao encenador o desafio de explorar os vários níveis de ocupação do espaço. E esses estão bem explorados nessa versão de “Navalha na carne”. 

Na análise dos aspectos estéticos, é possível encontrar um conjunto de excelentes contribuições. O cenário de Sérgio Marimba delimita o espaço cênico, o caracteriza, mas também o explora na medida em que propõe falsas aberturas ou falsos fechamentos. Trechos das paredes são vazadas, os lados mais próximos do proscênio conversam através de um jogo de espelhos, porta e janela estão um de frente um para o outro mais ao fundo também. Em todos os detalhes, se vêem a época e a degradação, mas também estão lá as personalidades de cada objeto meritosamente. Elogios assim também hão que ser dados ao figurino de Marcelo Marques, que se aventura pela metade do século XX, mas aparentemente tem menos interesse na história e mais vontade do mofo, do podre, do nojento, essa última uma palavra que tantas vezes é repetida no texto. O desenho de luz de Paulo Cesar Medeiros e a trilha sonora de Marcelo Alonso Neves são dois elementos que com mais sucesso conseguem fazer a peça transbordar para além de si mesma. Mudanças nos focos convidam o público a se distanciar ou a assumir uma postura mais reflexiva diante do que está vendo enquanto a música comenta o texto algumas vezes com sagaz ironia. 

Não é difícil “Navalha na carne” cair para o campo da gritaria e do exagero. Os três trabalhos de interpretação dessa montagem, porém, vencem o precioso desafio de apresentar um Plínio Marcos sem escatatologia, sem ponografia, sem nenhuma bengala estética. Até nos momentos de maior conflito, gestos, palavras, expressões e entonações ganham corpo em manifestações equilibradas somente vistas em bons intérpretes. Se a dicção não é sempre excelente em Alex Nader ou se o repertório de expressões faciais de Luisa Thiré parece limitado, ambos emprestam para os personagens figuras interessantes ao quadro. Os dois, ao lado de Ranieri Gonzalez, brilham em um conjunto de excelentes contribuições no conjunto de suas participações na hierarquia semântica da peça. É um ótimo conjunto de interpretações. 

“Navalha na carne”, na semana que alguns grupos de nossa sociedade comemorarão os 55 anos do Golpe Militar de 1964, vem dizer que não há nada que ser comemorado nesse período da história do Brasil. Pelo contrário, a peça afina o nosso olhar justamente por sobre eles: animais completamente inaptos para o uso da reflexão. Ao censurar Neusa Sueli, Vado e Veludo, eles estavam censurando eles próprios. Daí vem o seu medo.

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Ficha Técnica

Texto: Plínio Marcos

Direção: Gustavo Wabner

Elenco: Luisa Thiré, Alex Nader e Ranieri Gonzalez

Cenário: Sergio Marimba

Figurino: Marcelo Marques

Iluminação: Paulo Cesar Medeiros

Direção musical: Marcelo Alonso Neves

Direção de Movimento: Sueli Guerra

Preparação vocal: Ana Frota

Visagismo: Rose Verçosa

Assistente de direção: Celso Andre

Assessoria de imprensa: Morente Forte

Fotografia e design: Victor Hugo Cecatto

Produção Executiva: Bárbara Montes Claros

Direção de produção: Celso Lemos

Supervisão de Produção: Norma Thiré

Idealização: Luisa Thiré