sexta-feira, 31 de julho de 2015

Passando batom (RJ)


Foto: divulgação

Jane Di Castro


Jane Di Castro celebra 49 anos de profissão

“Passando batom” celebra os 49 anos de carreira de Jane Di Castro. Em cartaz na Sala Baden Powell, em Copacabana, a produção é a mesma que fez memorável sucesso no Cassino Rio, que ficava no segundo andar do Amarelinho, na Cinelândia, no inverno de 1984. Dirigido por Ney Latorraca e com direção musical de Guilherme Lara, o espetáculo inclui repertório de standards da música internacional além de memórias e de reflexões da atriz e cantora acerca da vida nos palcos e suas dificuldades, do preconceito homo e transfóbico e detalhes de sua vida atual. Vale a pena ver.

Um dos aspectos mais relevantes de “Passando batom” talvez seja o fato de que o espetáculo é um musical autobiográfico. Hoje aos sessenta e sete anos, ela nasceu no bairro Oswaldo Cruz, no subúrbio carioca, tendo sido batizada com o nome de Luiz de Castro. O nome artístico, mantido através das décadas, foi dado por Bibi Ferreira, que a dirigiu ainda nos anos 60, em produções do teatro de revista. Desse período em diante, várias foram as participações de Jane Di Castro na cena cultural. Em 2004, ao lado de Rogéria, Divina Valéria, Camille K, Eloína, Marquesa, Brigitte de Búzios e de Fujika de Halliday, ela integrou o elenco de “Divinas Divas”, que ficou dez anos em cartaz no Teatro Rival e inspirou o documentário homônimo (ainda não lançado) dirigido por Leandra Leal. Nas canções “Metamorfose Ambulante” (Raul Seixas), “Balada de um louco” (Rita Lee), “Estrela de Madureira” (Roberto Ribeiro) e “Copacabana” (Tom Jobim), pode ser emocionante perceber que, no palco, está uma ponte firme (e exuberante!) que é capaz de nos ligar a um mundo agora um tanto esquecido infelizmente. Outros números, como “Yo Vivire” (Celia Cruz/Gloria Gaynor), “La Vie en Rose” (Edith Piaf), “New York, New York” (Frank Sinatra) ou “Talismã” (Elson Forrogode), podem colaborar na representação de um tempo em que espetáculos como esse eram o único refúgio onde homossexuais podiam viver sua personalidade mais plenamente.

O ponto sensível de “Passando batom” é a dramaturgia. O título remete ao prazer que Jane Di Castro sente desde criança em pintar os lábios. Lá pelas tantas, porém, o texto apresentado nos intervalos das canções se repete negativamente, ficando claro que o tema é apenas uma justificativa sem quase qualquer aprofundamento de ordem estética. O cenário de Claudia Phoenix também é positivo ao representar um camarim de teatro, mas o quadro em que aparecem Jane e Ney Latorraca não conversa bem com a iluminação em alguns momentos. O figurino concebido por Eloína marca os bons valores da produção, esses principalmente ratificados pela direção musical de Guilherme Lara apresentada pela banda composta por quatro músicos tocando ao vivo.

Casada há 48 anos com Otávio Bonfim, Jane Di Castro, pelo modo como conduziu e conduz sua carreira, poderia ser apenas um valoroso símbolo de liberdade (que de todo nossa sociedade ainda não alcançou). No entanto, “Passando batom” é mais do que isso: uma oportunidade de se conectar com o passado, com boa música em um repertório inesquecível e com uma figura excelente. Aplausos!

*

Ficha Técnica
Texto: Ney Latorraca e Jane Di Castro
Direção Geral: Ney Latorraca
Com: Jane Di Castro
Direção e roteiro musical: Guilherme Lara
Cenário: Claudia Phoenix
Figurinos: Eloína
Fotografia: Daniel Marques

quinta-feira, 30 de julho de 2015

Paparazzi (RJ)

Foto: divulgação

Karla Concá tem o melhor trabalho do elenco


Matéi Visniec mal dirigido e com muitos problemas nas interpretações

Estreia mal “Paparazzi”, espetáculo resultante da turma de atores profissionais da Casa de Artes Laranjeiras – FACULDADE CAL, que, em nova montagem, iniciou ontem temporada no Centro Cultural do Banco do Brasil. O maior problema dessa versão é a direção de Adriana Maia que não expressa qualquer reflexão plausível nem sobre o texto, nem sobre a encenação. No elenco, Malu Valle, Xando Graça, Alexandre Varella, Lipy Adler e Rafael Queiroz dão a ver boas tentativas de trabalho interpretativo ao lado de Leonardo Vieira, Isa Lobato e de Alexandre David em péssimas participações. De toda a produção, o único destaque positivo é o trabalho de Karla Concá principalmente quando é A Dona. Tendo estreado em maio desse ano com outras pessoas no elenco, essa produção é uma oportunidade desperdiçada de se conferir um espetáculo do romeno Matéi Visniec. Uma pena!

Essa é a primeira montagem de “Paparazzi ou A crônica de um Amanhecer Abortado” no Brasil. Escrito há vinte anos e produzido pela primeira vez em 1997, em Provença, na França, o texto foi publicado em 2012 pela editora É Realizações. A dramaturgia parte da explosão do sol para analisar os mais diversos tipos de reações da humanidade diante do acontecimento. Ao longo da madrugada em que o fato acontece, um Paparazzo (Leonardo Vieira) está fotografando os movimentos de uma mulher que dá uma festa em sua casa, enviando notícias para seu Chefe (Xando Graça). Esses personagens, como vários outros que aparecem ao longo da narrativa, surgem no texto tais quais os anônimos do cinema neorrealista italiano: são tijolos de uma construção social cuja decrepitude o autor quer revelar. De todos os que aparecem, apenas uma personagem realmente se estarrece com a morte do sol: a Cega (Malu Valle) que, de qualquer modo, não poderia vê-lo. Ao seu redor, a longa noite fictícia é campo onde ficam mais vivas a animalidade, a embriaguez, a fúria, os egos, a loucura, mas os personagens, diferente da audiência, não sabem disso. Essa é uma reflexão que Matéi Visniec divide somente com o público. Nesse sentido, “Paparazzi” é melhor lido sob inspiração do Teatro do Absurdo, do qual Eugène Ionesco (1909-1994) e Samuel Beckett (1906-1989) são grandes referências. Dada uma falta de lógica no mundo, os personagens vivem alheios aos acontecimentos, abandonados em suas existências. Infelizmente, não foi em direção a esse quadro que Adriana Maia fez caminhar a sua encenação.

Em entrevista, Adriana Maia cogita o surrealismo e o realismo mágico como seu modo de ler a obra de Visniec, mas nem um, nem outro, assim como nem o Absurdo aparecem nessa sua versão de “Paparazzi”. Para o surrealismo, falta o ponto de vista onírico para as emoções em sua encenação. Para o mágico, falta (em todos os sentidos) a verossimilhança a partir da qual o fantástico conseguiria surgir. Apenas na interpretação de Karla Concá (A Dona), veem-se positivamente marcas de abandono, de vazio ou de ascendência clownesca que podem sugerir o Absurdo. Por outro lado, Leonardo Vieira (Paparazzo 1) e Isa Lobato (A Descalça) empregam enorme força em expressar o que não existe enquanto Alexandre David (Mendigo) sustenta todos os seus personagens nos figurinos e em tentativas de interações com a plateia  pobremente. Nas demais interpretações, há fortes doses de realismo, todas elas desamparadas da dramaturgia porque “Paparazzi” não é uma comédia de costumes. O ritmo do espetáculo é bastante ruim, a justaposição das cenas não evidencia um pensamento anterior a elas, os elementos não se articulam. Além disso, a opção por usar atores em cena interpretando aquilo que, no original, são apenas vozes impede a dramaturgia de valorizar o obscuro (as faces desses personagens pertencem ao público por um motivo estético que parece não ter sido investigado por Adriana Maia).

Em um palco transversal (um corredor que atravessa o público) que se une a dois outros nas extremidades, a peça se apresenta através de uma confusão estética prejudicial. No cenário de Mina Quental, papelão forra o chão e alguns móveis de todo o espaço cênico sob luzes incandescentes, mas, em direção oposta, o figurino de Adriano Ferreira é bastante realista. Além disso, há objetos simbólicos, como a garrafa de champagne como fonte; referenciais, como uma versão em miniatura de uma cabine telefônica inglesa para todo um telefone em si; e outros realistas, como as máquinas fotográficas, as bebidas e o aparelho telefônico usado pela Cega (Malu Valle), resultando em uma barafunda visual que nada acrescenta.

No Brasil, já estiveram em cartaz desse autor as peças “A História do Comunismo Contada aos Doentes Mentais”, dirigida por André Abujamra e Miguel Hernandez; “A Volta para Casa”, por Regina Duarte; “2 x Matei”, por Gilberto Gawronski; “Espelho para Cegos”, dirigida por Márcio Meirelles; entre outras. Essa montagem de “Paparazzi ou A crônica de um Amanhecer Abortado” deixa muito a desejar.

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Ficha Técnica

Direção: Adriana Maia

Texto: Matéi Visniec

Tradução: Alexandre David

Elenco: Alexandre David, Alexandre Varella, Isa Lobato, Karla Concá, Leonardo Vieira, Lipy Adler, Malu Valle, Rafael Queiroz e Xando Graça

Direção Musical: Alexandre Elias

Direção Vocal Interpretativa: Glorinha Beuttenmüller

Direção de Movimento: Luciana Bicalho

Cenário: Mina Quental

Figurinos: Adriano Ferreira

Direção de Produção: Adriana Maia e Leonardo Vieira

Produtor Executivo: Gustavo Henrique

Assistente de Direção, Diretor de Palco e Operador de luz: João Maia

Consultoria de Produção: Dadá Maia

Coro Sonoplasta: Alexandre Menezes, Calu Silveira, Camila Monteiro e Lucas Asseituno

Iluminação: Anderson Ratto

Apoio institucional: Instituto CAL de Arte e Cultura

Fotografias: Isa Lobato e Alvaro Victor

Assessoria de Imprensa: Duetto Comunicação

sexta-feira, 24 de julho de 2015

Sexo Neutro (RJ)

Foto: divulgação


Marcelo Olinto e Cristina Flores

Em excelente atuação, Cristina Flores brilha em espetáculo sobre a transexualidade

“Sexo Neutro” estreou no fim de junho, trazendo à pauta do teatro carioca a questão da transexualidade. Escrito e dirigido por João Cícero, em cena, o mesmo personagem é interpretado por dois atores: Cristina Flores, em excelente trabalho de interpretação, e Marcelo Olinto. Eles interpretam Márcia que, após uma cirurgia de redesignação de gênero, passou a preferir ser chamada de Cleber. Ao longo da encenação, com méritos ao tema proposto, nota-se o pouco desenvolvimento da situação inicial infelizmente. A peça está em cartaz no Teatro III do Centro Cultural do Banco do Brasil, no centro do Rio de Janeiro, até o início de agosto próximo.

Na dramaturgia, João Cícero apresenta de forma bastante potente o personagem de Márcia/Cleber. Através de diálogo fluente, o espectador conhece a infância de Márcia no seio de uma família evangélica e suas primeiras experiências sexuais, bem como um fato bastante doloroso acontecido algum tempo antes da cirurgia a partir da qual passou a se chamar Cleber. O modo como as falas estão construídas revela habilidade do dramaturgo em construir frases que ofereçam marcas de suavidade ao longo discurso. Além disso, o desafio de dois atores interpretarem o mesmo personagem, ou dois pontos de vista sobre a mesma figura, é vencido rapidamente, o que é outro ponto bastante positivo desse texto. Em termos de análise estética, há ainda que se ressaltar o modo como “Sexo Neutro” reforça o choque do conceito de personagem na dramaturgia contemporânea. Márcia e Cleber não podem ser considerados apenas o passado e o presente de uma só pessoa, porque, sob vários aspectos, um esteve e ainda está dentro do outro. Em mesma direção, uma também não pode ser vista como a versão feminina e o outro a masculina do mesmo personagem, pois a mistura desses gêneros parece justamente ter sido o que esse texto defende como fator relevante na hora de se pensar sobre a complexidade do homem e a construção de sua identidade. Duas entre várias vozes dessa figura única, Márcia e Cleber são meios através dos quais João Cícero retratou esse personagem que é dono de vários discursos como qualquer ser humano. O problema do texto de “Sexo Neutro” é que, construídos os limites que mais ou menos embasam o campo onde essa situação acontece, pouco se vai além em termos de narrativa. Em primeiro lugar, narrador de sua própria história, Márcia/Cleber deixa claro que é possível que nenhum fato do passado tenha relação direta com os motivos que o levou à cirurgia. Depois, a descrição de sua situação presente termina o espetáculo frustrando as expectativas criadas, pois Cleber está insatisfeito sexualmente e pouco revela sobre como se sente em relação ao seu corpo atual. A cirurgia de redesignação de gênero, sem dúvida uma intervenção bastante relevante à existência de qualquer um, paira ao final como uma ação quase banal, desconectada como todos os demais acontecimentos da vida de Márcia/Cleber. Depois de tudo, o personagem segue desconfortável em seu próprio corpo.

Em maneira bem interessante, na direção, João Cícero apresenta uma encenação de monólogo ainda que as falas de “Sexo Neutro” estejam organizadas em formato de diálogo. Voltando ao texto, o único conflito dessa narrativa é o fato da personagem Márcia não ser exatamente capaz de reproduzir o comportamento feminino esperado dela em função do seu gênero de nascimento. Sem dúvida, isso impõe um grande desafio à representação (o que faz aumentar o mérito do diretor). Nesse sentido, a interpretação compartilhada do personagem pelos atores Cristina Flores e Marcelo Olinto, na mesma medida em que traz a chance do jogo, oferece as dificuldades em relação à clareza, que são plenamente superadas. Em outras palavras, sem se opor entre si, Márcia e Cleber opõem-se consigo próprios. Essa situação inicial é bem apresentada, mas tem um desenvolvimento sem destaque e uma finalização problemática. O uso de microfones em pedestais não tem justificativas estéticas como também não as trocas de figurinos. No início do “segundo ato” (não há intervalo!), o ritmo se perde e esse não é recuperado infelizmente. Depois de noventa minutos, João Cícero parece ter chamado o espectador para o debate, mas saído dele tão logo ele começou a esquentar infelizmente. 

Leva o espectador para casa, a grandeza do trabalho de interpretação de Cristina Flores, talvez em um dos seus melhores papéis como atriz. A força de sua atuação provém de um riquíssimo uso de sua potencialidade vocal, o modo como o corpo dá a ver as nuances do personagem, o jeito como Márcia reage às mais diversas situações narradas por ela própria. Marcelo Olinto, interpretando uma mulher que se tornou homem, felizmente nem sempre se deixa levar pelo uso afetado de mãos ou pelos ombros em diagonal, mas o constante uso regular da voz e do corpo colocam sua interpretação bastante distante da de Flores.

Considerada a crueza do texto e a complexidade do tema, é ótimo não haver na encenação grandes doses de informações também no cenário e no figurino. João Dalla Rosa usa o cinza e o branco na apresentação das calças, tênis e das bermudas quase sempre apresentados com dorsos nus. Ao seu lado, a iluminação de Tomás Ribas projeta tons de rosa em um palco arrosado também. Em discretas participações, os vídeos de Evandro Manchini colaboram positivamente. Sem cortinas na boca, na rotunda e nas coxias, o quadro fica livre para o espectador (comum) respirar enquanto conhece a história de Márcia/Cleber e reflete sobre o que vê. Por todos esses aspectos, o panorama geral parece sugerir graça sem maquiar uma dura realidade, expondo a crueldade sem espetacularizar a dor.

“Sexo Neutro” sugere a reflexão por sobre a transexualidade. No mundo, o Brasil é um dos países onde mais transexuais morrem assassinados. A maior parte desses crimes se deve pela falta de conhecimento e de reflexão social acerca do tema. Por isso, a produção deve vista e aplaudida.

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Ficha técnica:

Texto e direção: João Cícero
Com: Cristina Flores e Marcelo Olinto
Dramaturg: Manoel Friques
Concepção de Cenário: João Cícero
Figurino: João Dalla Rosa
Iluminação: Tomás Ribas
Trilha sonora original: Dimitri BR e Alexandre Hofty
Vídeos: Evandro Manchini
Direção de Movimento: Diana Behrens
Assistente de Produção e de Direção: Luisa Espindula
Fotos: Maria Flor Brazil
Operação de luz e contrarregra: André Martins
Operação de som: Rodolfo Wittboldt
Produção Executiva: Luana Carvas e Carolina Lyds
Programação Gráfica: Ilustrarte Design / Luiza Ache
Administração Financeira: Ângela Belluomini e Sonia Schimidt
Direção de Produção: Daniela Paita
Realização: Paita Produções Artísticas

Ordinary Days (RJ)

Foto: divulgação


Hugo Bonemer, Mau Alves, Caio Loki, Julia Morganti (à esquerda)
e Vinicius Teixeira, Tecca Ferreira, Gabi Porto e Fernanda Gabriela (à direita)


Musical Off-Broadway faz primeira apresentação no Brasil em sessão especial

O musical de câmara “Ordinary Days”, do americano Adam Gwon, fez uma apresentação em versão pocket no Teatro Café Pequeno na última quarta-feira, dia 22 de julho. Dirigida por Reiner Tenente, a montagem “esquenta” a almejada produção oficial que, tão logo quanto pronta ($), estará em cartaz para o público em geral. Escrita entre 2006 e 2008, a peça fez sua primeira temporada na Off-Broadway no outono de 2009. Quatro personagens, Warren, Claire, Jason e Deb, são jovens solitários em Nova Iorque em busca dos seus sonhos. Na narrativa, há pouco, os namorados Claire e Jason resolveram morar no mesmo apartamento sem talvez estarem certos de que estão preparados para esse passo no relacionamento. A mestranda Deb está desesperada por ter perdido seu caderno com anotações para sua tese, mas ele felizmente é encontrado por Warren, um jovem ajudante de artista, e eles têm um primeiro encontro. Nessa apresentação única, cada um desses quatro personagens foi interpretado por dois atores, em algumas cenas, ao mesmo tempo. Warren ganhou vida por Caio Loki e por Vinicius Teixeira; Deb por Tecca Ferreira e por Julia Morganti, Claire por Gabi Porto e Fernanda Gabriela, e Jason foi interpretado por Mau Alves e por Hugo Bonemer, todos eles em ótimas participações. Cumprindo o previsto pelo autor no texto, toda a música dessa peça é tocada ao vivo e por um único pianista que atua quase como um quinto personagem. No Brasil, esse papel foi desempenhado brilhantemente por Marcelo Farias, sem dúvida, o maior destaque dessa montagem que surge já cheia de méritos. Aos ocasionalmente interessados em direitos autorais, principalmente (ou somente) quando o assunto for versões brasileiras de musicais estrangeiros, essa montagem de “Ordinary Days” consta no calendário de performances internacionais do site oficial de Adam Gwon. Fica-se aqui com o convite para consultar, torcer e para esperar pela montagem oficial que analiso a seguir.

“Ordinary Days” é sobre conexões, sobre a capacidade do ser humano de unir acontecimentos diferentes de sua vida e dar sentido a ela, ou sobre a habilidade em se conectar uns com os outros e com os espaços onde se vive. Adam Gwon tinha vinte e seis anos ao terminar mais um curso de dramaturgia para musicais quando decidiu trabalhar sozinho pela primeira vez em um projeto unicamente seu, começando por compor as canções e só então ver o que elas suscitariam. Na ocasião, ele estava lendo o romance “Mrs. Dalloway”, que a inglesa Virgínia Woolf lançou em 1925 e que serve, entre outras coisas, para se refletir sobre como fatos diversos da vida cotidiana se relacionam e podem (ou não) interferir na existência do ser humano. Nos personagens criados por Gwon, paira a emergência das pessoas em encontrar o sentido de sua existência. Narrada em fragmentos, as cenas desse musical são metáforas para as relações fragmentadas vividas principalmente na cidade grande. Os namorados Jason (Mau Alves e Hugo Bonemer) e Claire (Gabi Porto e Fernanda Gabriela) decidem morar juntos, mas a necessidade de lugar entre as coisas de Claire para a mudança de Jason faz o casal pensar sobre o espaço que é preciso deixar para que alguém entre em nossa vida. “I´ll be here”, uma das últimas entre as dezenove canções que fazem parte desse espetáculo, remete ao buraco deixado pelas pessoas falecidas em 11 de setembro de 2001, mas bem pode ser associada com quem não viveu aquele terrível acontecimento. Consciente da dor causada pela desconexão, Claire talvez tenha medo de se conectar novamente, mas o apaixonado Jason não sabe disso ainda e não entende porque, para a namorada, tudo parece ser tão difícil. Na outra ponta da dramaturgia, quando o otimista Warren marca com Deb para conhecê-la e devolver-lhe seu caderno de anotações que ele encontrou perdido, ela estava desesperada. Deb, cuja dissertação de mestrado é sobre Virgínia Woolf, retornou aos estudos depois de ter fracassado na vida profissional. Sem suas anotações, ela não poderia terminar o texto, o que seria um fracasso também em sua vida como estudante. No encontro marcado por Warren, Deb acha estranho tanta alegria nele, que tem sonhos, mas não tem um projeto para realizá-los. Insatisfeito como ajudante de um artista plástico, o tímido Warrren ainda acredita que é possível fazer algo relevante e que marque sua existência entre as pessoas, o que é inspirador tanto para Deb quanto para o público desse musical. Enquanto observam um quadro, no Metropolitan Museum of Art, ela lembra de que, através de um raio-X, é possível ver os percursos trilhados pelo artista antes de finalizar a tela, mas Warren pergunta: “Por que eu deveria me perguntar sobre o que não está lá?” Eis aí meios diferentes de se conectar com o mundo.

Ao organizar uma cena em que dois atores interpretam cada personagem, o diretor Reiner Tenente, assistido por André Viéri, sugere, para além do que o texto traz, um meio de cada personagem se encontrar diante de si próprio. O célebre contista gaúcho Caio Fernando Abreu, cujo falecimento completará vinte anos no próximo verão, diz que aquilo que é mais profundo na gente também está em todas as pessoas de forma que é através daí que nós nos conectamos uns com os outros. Considerando que é em suas pequenas margens que os retalhos se unem em uma grande colcha, é bonito identificar, na cena desenhada por Tenente, esses personagens tão sensíveis e em representações tão delicadas. Ainda que todos tenham apresentado boas participações, pode-se dizer com segurança que o elenco feminino teve atuação de destaque. Elogiosamente, Fernanda Gabriela, Gabi Porto, Julia Morganti e Tecca Ferreira usam os agudos por menos preciosismo e mais para evidenciar a sensibilidade de personagens que tateiam a escuridão de seus futuros na grande metrópole e nos pequenos passos do dia a dia. É bastante digno de nota o modo como Reiner Tenente, em suas últimas participações no teatro musical no Brasil, tem catalisado excelentes jovens atores-cantores.

Entre todos os aspectos positivos dessa montagem inicial de “Ordinary Days”, está em destaque o modo como Marcelo Farias interpretou as canções ao piano. Comparado a Frederick Loewe, a Stephen Sondheim e a vários outros compositores contemporâneos, Adam Gwon integra canções e vinhetas em uma música que é ouvida ao longo de toda a encenação, marcando o ritmo das falas (e dos movimentos de cena) na mesma medida em que abre caminho para conversações em meio às letras. Indicar um só pianista para atuar junto aos atores na viabilização do musical não foi apenas uma decisão da ordem da produção, mas uma opção estética do autor na criação dessa obra. A música, sozinha, também é um meio de expressão cênico-narrativa e seu intérprete é também ator nela. Marcelo Farias, com pujança, firmeza, personalidade e talento, além de preciosismo técnico, brilha em “Ordinary Days” de um modo sensível e ao mesmo tempo vigoroso. É certo de que, no futuro, hão de destacar sua atuação no cenário dos musicais no Brasil como artista de destaque, mas que ele, desde já, saiba que seu valor tem sido modestamente reconhecido aqui.

Seja em Manhattan para Adam Gwon ou no mundo para todos aqueles que, de alguma forma, produzem versões de “Ordinary Days”, esse projeto é meio pelo qual muitos jovens artistas se mostram no meio artístico e confirmam suas habilidades cênico-musicais. Idealizado por Caio Loki e realizado pelo CEFTEM (Centro de Estudos e Formação em Teatro Musical), que essa produção tenha vida longa bem como seus responsáveis uma carreira de merecido sucesso. Foi lindo!

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Ficha técnica:
Música, Roteiro e Letras: Adam Gwon
Versão Brasileira: Caio Loki
Direção: Reiner Tenente
Direção Musical e Execução: Marcelo Farias
Elenco: Caio Loki, Fernanda Gabriela, Gabi Porto, Hugo Bonemer, Julia Morganti, Mau Alves, Tecca Ferreira e Vinicius Teixeira
Cenário: Caio Loki, Mau Alves e Julia Morganti
Iluminação: Rubia Vieira
Figurino: Caio Loki
Assistente de Direção: André Viéri
Produção: Cerejeira Produções
Idealização: Loki Entretenimento
Realização: CEFTEM

quarta-feira, 22 de julho de 2015

2.500 por hora (RJ)

Foto: Guga Melgar



Monica Bel, Júlia Marini, Joelson Medeiros, Claudio Gabriel e Henrique Juliano

Ótimas interpretações em belo hino ao teatro

“2.500 por hora” é mesmo um hino ao teatro que deve ser visto principalmente por quem gosta dessa arte milenar. Adaptada da ideia original dos franceses Jacques Livchine e Hervée de Lafond, a ótima versão brasileira assinada por Monica Biel também contempla trechos de Martins Pena (1815-1848), a história de João Caetano (1808-1863) e excertos das dezessete peças de Nelson Rodrigues (1912-1980). Dirigido por Moacir Chaves, esse ótimo espetáculo parte do desafio de contar, em uma hora, os 2.500 anos de história do teatro, envolvendo Eurípedes, Shakespeare, Molière, Tchekhov, Brecht, Beckett e muitos outros dramaturgos e encenadores. Em destaque, os grandes trabalhos de interpretação de Claudio Gabriel, de Joelson Medeiros e de Júlia Marini, e os figurinos de Inês Salgado renovam as qualidades dessa arte tão cara à história da humanidade aqui em produção tão meritosa.

Na França, Jacques Livchine é sinônimo de improvisação, de jogo de teatro e de espetáculos populares de rua, linguagens que esse encenador vem desenvolvendo há mais de trinta anos. O domínio da técnica e do ritmo, a articulação de elementos do cotidiano com grande potência de comunicação rápida e a exposição franca dos atores em espetáculos sem quarta parede estruturam o trabalho desse artista. Nessa versão brasileira de “2.500 por hora”, tanto texto como encenação de Moacir Chaves têm o mérito de não começar da tragédia grega nem terminar com Beckett, mantendo as surpresas bem dispostas e o ritmo com vigor apesar do aberto didatismo que as intenções sempre deixaram claras a partir da abertura. Ótimo!

As interpretações são excelentes sobretudo se considerarmos, para a análise do espetáculo, a complexidade de cada cena, de cada gênero ou estilo dramático e de cada época que as mais diversas situações querem referenciar. “2.500 por hora” não tem compromisso com o aprofundamento de qualquer momento, mas a riqueza resultante do seu todo é, em si só, nada superficial. Além de Henrique Juliano e de Mônica Biel em bons trabalhos, Claudio Gabriel, Júlia Marini e Joelson Medeiros apresentam excelentes contribuições, representando desde o peso da tragédia grega (“As Bacantes”) ao íntimo realismo psicológico (“A Gaivota”) ou da farsa (“Juiz de Paz na Roça”) ao absurdo (“Esperando Godot”). Excelentes variações de corpo e de voz na expressão dos contextos, além da delicadeza e da força na estrutura e na manutenção de cada citação narrativa, fazem desse conjunto um destaque na programação teatral carioca desse ano de 2015.

O cenário de Sérgio Marimba tem o mérito de garantir quadros reveladores em cada nova cena, escondendo as muitas possibilidades que cada praticável (?) oferece à encenação. A direção musical (com execução ao vivo das músicas e canções) de Miguel Mendes e de Tomás Correa e a iluminação de Aurélio Simoni ajudam a aumentar o tamanho ou de cada história ou do espaço útil do palco onde elas se representam de forma bastante positiva. No entanto, é o figurino de Inês Salgado quem tem maior destaque entre os elementos parascênicos. Dada a profusão de citações e tudo o que elas evocam em termos de história da arte, o desafio da criação do vestuário foi imenso e, em mesma medida, devem ser os elogios pelo excelente trabalho a que se assiste nas minúcias de cada detalhe e no todo. Parabéns!

Ao grande público, “2.500 por hora” pode ser justamente aquilo que, para todas as plateias, o espetáculo quer ser: um momento em que se celebram dois milênios e meio de história do teatro. Para quem é da classe, no entanto, essa produção pode ser mais: eis aqui carinhosamente uma oportunidade para lembrar do quanto esse ofício é sério, honrado e é sublime. Para finalizar, uma frase dita logo no início: “O teatro é um ser humano que conversa com outro de mãos vazias.” Lindo!

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Ficha técnica:
Autor: Jacques Livchine e Hervée de Lafond
Tradução e Adaptação: Monica Biel
Direção Moacir Chaves
Elenco: Claudio Gabriel, Henrique Juliano, Júlia Marini, Joelson Medeiros e Monica Biel
Direção Musical e Execução ao Vivo: Miguel Mendes e Tomás Correia
Figurinos: Inês Salgado
Cenário: Sergio Marimba
Iluminação: Aurélio de Simoni
Boneco e Direção de Manipulação: Marcio Newlands
Fotos: Guga Melgar
Programação Visual: Sandro Melo
Produção Executiva: Jaqueline Roversi
Direção de Produção: Monica Biel
Assessoria de Imprensa: Ney Motta
Realização: BB Produções Artísticas Ltda.

Antologia do Remorso (RJ)

Foto: divulgação


Elisabeth Monteiro, Gustavo Barros e Tiago d`´Avila

Boa literatura e grande teatro em cartaz até o fim de agosto

O espetáculo “Antologia do Remorso” é mais um sinal de que a boa dramaturgia segue sendo escrita e de que há trabalhos elogiáveis na cena off zona sul do Rio de Janeiro. Com texto criado a partir de contos escritos por Flávia Prosdocimi, a peça dirigida por Daniel Belmonte e com Elisabeth Monteiro, Gustavo Barros e Tiago d’Ávila no elenco, estreou em junho deste ano no Sesc Tijuca e agora cumpre temporada que, devido ao sucesso, prosseguirá em cartaz até o fim de agosto no Teatro Gonzaguinha, próximo à Praça Onze, na zona central do Rio de Janeiro. Vale a pena ver e identificar, além dos bons trabalhos de interpretação e da forma ágil como a direção os apresenta, as proximidades e as distâncias em relação à obra de Nelson Rodrigues que talvez seja a referência mais forte dessa potente dramaturgia original.

O texto de “Antologia do Remorso” apresenta muitas similaridades com a obra de Nelson Rodrigues (1912-1980) principalmente se forem considerados para a análise os espetáculos recentes realizados a partir das crônicas desse célebre autor. Sobre os termos crônica e conto, são necessárias algumas ressalvas. Embora a divulgação do espetáculo chame o material original de Flávia Prosdocimi de contos, aos quais não tivemos acesso, deve-se dizer que eles, assim como os de Nelson Rodrigues, chegam ao espectador como se também crônicas fossem. Em termos de literatura, o cotidiano faz parte tanto do gênero crônica como do de conto, mas, no primeiro, o dia a dia é seu tema maior, enquanto, no segundo, o universo complexo do interior humano (assim como no romance) é mais marcante. Nelson Rodrigues, apenas entre 1950 e 1961, escreveu mais de duas mil crônicas em sua coluna diária do jornal carioca Última Hora. Em todas elas, as histórias individuais são apenas cores e formas com as quais o autor carioca desenhou a rotina principalmente do subúrbio da antiga capital da república brasileira. Lá está uma espécie de inventário geral dos múltiplos valores escondidos (e outros notórios) de personagens de todas as classes sociais. Nos espetáculos a partir da obra não-dramatúrgica de Nelson, geralmente o que se faz é uma curadoria a fim de que um tema justifique a justaposição das crônicas escolhidas: o fanatismo religioso, a infidelidade, o futebol, a pederastia, a política, por exemplo. No caso de “Antologia do Remorso”, dos textos escolhidos - “Crime presumido”, “A guarda”, “Silicone”, “Abortado” e “Carnaval” -, embora a questão do remorso, presente inclusive no título, dê unidade para o todo, é possível afirmar que está lá, de forma bem humorada, um roteiro de situações nas quais se revelam os valores de uma parcela representativa da nossa sociedade. Aparentemente, Flávia Prosdocimi, como uma cronista de mão firme, ritmo e criatividade, aparece agora pronta para figurar ao lado dos nossos grandes cronistas vivos, como Luis Fernando Veríssimo, Martha Medeiros, David Coimbra, Arnaldo Jabor, Fernanda Torres entre outros.

A direção de Daniel Belmonte tem três méritos principais. O primeiro é pela curadoria dos textos, escolhidos de forma a oferecer visões diferentes do mesmo tema: o remorso. O espectador há de observar que esse sentimento, em si, não é uma situação dramática, mas uma reação que nasce a partir de um fato consumado e que surge como uma surpresa negativa às crenças do protagonista sobre suas impressões da realidade. Em outras palavras, o remorso é um gosto amargo que fica depois de algo acontecido, a rebarba, a consequência, o que sobra. Partindo de lugares distantes, as cinco histórias citadas não se encontram no ápice, mas no que advém deles, o que é brilhante em termos de dramaturgia cênica. O segundo mérito da direção diz respeito à hierarquização das histórias, isto é, à sensibilidade do encenador em perceber que nem todas elas reverberam do mesmo jeito, mas, ao justapô-las, valorizando a comédia, é mais sábio deixar a mais surpreendente para o final. É o que acontece. A narrativa em quadros, tão batida, sofre os desafios da manutenção da novidade, mas esse Daniel Belmonte conseguiu superar bem o entrave, oferecendo um final que surge ao espetáculo na hora certa. Por fim, nas representações das histórias, os atores, unanimimente em bons trabalhos, aparecem trocando de personagens e garantindo a atenção do público através das carismáticas marcas da comédia farsesca e da certeza de que é preciso partir de lugares confortáveis para então direcionar a fruição para o fim. Como diretor, o jovem Daniel Belmonte é uma revelação.

Elisabeth Monteiro, Tiago d’Ávila e principalmente Gustavo Barros estão em ótimos trabalhos de interpretação. Os tipos apresentados, cujas marcas garantem o ritmo de que a crônica precisa na literatura e a farsa no teatro, surgem rapidamente, evoluindo com graça e carisma. Em uma encenação cujo cenário é unicamente composto por três cadeiras e em figurinos que não são substituídos, é bom observar a grande responsabilidade que o corpo, a voz, as feições e o movimento têm no que diz respeito à expressão. Pelo ótimo desempenho visto, os elogios são enormes. Embora discretas, as participações do cenário e do figurino de Julia Marina são pontuais e contributivas nos mais pequenos detalhes. A iluminação de Tiago e de Fernanda Mantovani aparece muito e agrega vários méritos bem como a trilha sonora do diretor, revelando bem os níveis de cor diferentes que cada quadro parece ter necessitado para se estabelecer sozinho e se relacionar com o todo.

Ainda sem ter feito uma temporada na zona sul do Rio de Janeiro, “Antologia do Remorso” nos lembra de que a cidade não é maravilhosa apenas no percurso entre o Outeiro da Glória e São Conrado. Vale a pena ir ao Teatro Gonzaguinha conhecer esse trabalho de boa literatura e grande teatro.

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Ficha técnica:

Texto: Flávia Prosdocimi
Direção: Daniel Belmonte
Elenco: Elisabeth Monteiro, Gustavo Barros e Tiago d’Ávila
Iluminação: Tiago e Fernanda Mantovani
Cenário e Figurino: Julia Marina
Trilha Sonora: Daniel Belmonte
Direção de movimento: Milene Pimentel
Preparação Vocal: Verônica Machado
Design Gráfico: Samuel Sajo
Redes Sociais: Bruna Jardim
Fotos: Rodrigo Daboit
Visagismo: Rafa Monteiro
Operação de Som: Julianna Firme
Operação de Luz: Tiago Mantovani
Produção: Flávia Prosdocimi e Tiago Mantovani
Assessoria de Imprensa: Duetto Comunicação
Realização: Amoreira Cultural, Nota Jazz Produções Artísticas e SESC

Palavra de Mulher (RJ)

Foto: divulgação

Cartaz de divulgação

Problemas em espetáculo sobre as mulheres

O espetáculo “Palavra de Mulher” apresenta intenções nobres, mas diversos problemas de ordem estética. Escrito e dirigido por Oscar Calixto, a obra tem o mérito de evocar diversas questões pertinentes às lutas das mulheres em favor de relações sociais mais igualitárias, mas cenicamente sobrevive com dificuldade à justaposição de cenas cômicas e dramáticas, aos muitos problemas nas estruturas de cada quadro, às interpretações sem medida e à concepção cambaleante dos figurinos de Wanderley Gomes e de Fabiana Ouverney. Idealizado e interpretado por Shirley Cruz, no elenco, além, dela, também estão Dani Brescianini, Julli Roldão, Luciana Pacheco e Giselle Motta. Da Companhia Contemporânea Mulher de Palavra, a peça está em cartaz no Teatro Cândido Mendes, em Ipanema, na zona sul do Rio de Janeiro.

Estruturada em quadros, a dramaturgia de Oscar Calixto oferece um panorama parcial da situação da mulher nos últimos trezentos anos. No primeiro diálogo, uma dama (Julli Roldão) e uma criada (Luciana Pacheco), no século XVII, conversam sobre as ausências do marido da primeira enquanto a segunda fala sobre o que aprendeu sobre o futuro da mulher. A ação pula para a primeira metade do século XX quando uma esposa (Dani Brescianni) exige do marido (Shirley Cruz) maior liberdade de ação e de pensamento motivada pelos livros feministas que anda lendo. Na última cena, uma entrevistadora (Cruz) recebe Eva (Brescianini), a diretora de uma grande empresa que é mãe de três filhos. No centro da história, além de outras cenas menores, quadros coreografados por Adriana Bandeira marcam bem a articulação de cenas mal escritas em seu universo particular.

Sem optar por uma matriz estética que dê corpo e organize a diversidade do texto, Oscar Calixto oferece quase nada de muito e bastante de pouco. Falta na dramaturgia de todas as cenas, maior reflexão sobre questões relevantes que estejam por trás das situações divididas pelos personagens. O que une os quadros no todo da peça parece ser simplesmente a luta da mulher, mas, ao mesmo tempo em que o texto reclama para si atenção a sua complexidade, oferece em contrapartida um ponto de vista bastante superficial, com maridos traindo ou batendo em mulheres, homens as abandonando ou simplesmente sendo mais irresponsáveis que elas. Sem pontuar especificamente momento algum mas preencher espaços com frases bonitas, a dramaturgia visivelmente almeja lugar de maior relevância, mas traz diversos erros de português e não apresenta uma pesquisa realmente meritosa em termos de pesquisa no campo das artes, indo da comédia a cenas mais dramáticas como se tudo fosse a mesma coisa em termos de narrativa. Só que não é.

A direção do dramaturgo revela um trabalho igualmente sem coesão. Quadros cômicos e as cenas mais dramáticas modificam o lugar da fruição de maneira que nada se aprofunda a contento. Nos intermeios, as coreografias contemporâneas de Adriana Bandeira, que também é assistente do diretor, são talvez o único aspecto que mereça positivo destaque, mas o todo se perde mesmo assim. As interpretações são fora de medida: muitos gritos (principalmente em Shirley Cruz), expressões fortes demais e movimentos bruscos afastam a beleza de um elenco unicamente formado por belas mulheres. Dani Brescianini usa bastante bem as variações de tom e as pausas nos diálogos dramáticos, Julli Roldão apresenta bem marcas de tipos farsescos e Shirley Cruz segura com galhardia o ritmo exigido nesses contextos tão diversos, mas o apresentado no geral é pouco.

O chão coberto de folhas secas, no cenário de Karina Maldonado, e a extrema proximidade com o público do Teatro Cândido Mendes não favorecem as vivas coreografias de Adriana Bandeira, cujos detalhes mínimos acabam ficando visíveis demais negativamente. São boas também as colaborações dos vídeos de Tássia da Hora e de Ricardo Brízio, como também a trilha sonora de Luiz Méliga. Por outro lado, os figurinos de Wanderlay Gomes e de Fabiana Gomes são péssimos. Roupas íntimas só confirmam o estigma de objeto sexual sofrido pelas mulheres que a narrativa parece ter quisto discutir. As bases esvoaçantes, além de enfear as atrizes, levam a narrativa para um contexto trágico-ritualístico que também pouquíssimo se relaciona com a proposta. O pior são as crinolinas e as lingeries à mostra: mal feitas, elas só reforçam os problemas estéticos dessa produção.

Sem expressar fluência no domínio do idioma teatral, “Palavra de Mulher” apresenta-se com o mérito maior de pautar um tema tão caro à contemporaneidade. Em nossa tempo, não há mais lugar para diferenciações de gênero nem de qualquer outro tipo. É bonito identificar essa luta também na programação do teatro carioca. 

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Ficha técnica:
Idealização / Projeto / Prod. Executiva: Shirley Cruz
Texto e Direção: Oscar Calixto
Elenco: Julli Roldão, Luciana Pacheco, Dani Brescianini, Shirley Cruz e Giselle Motta
Assistente de direção / Coreografia: Adriana Bandeira
Figurinos: Wanderley Gomes
Pesquisa e Roupas Íntimas: Fabiana Ouverney
Direção de Produção: Alexandre Almassy
Produção: Thiago Coutinho
Programação Visual: Bruno Pinotti
Fotógrafa: Desiree do Valle
Cenografia: Karina Maldonado
Captação: PM Comunicações
Vídeo Finalização e Pesquisa: Tássia da Hora
Pesquisa Imagem: Fabiano Hermógenes
Videografismo: Ricardo Brízio

segunda-feira, 20 de julho de 2015

Uma Revista do Ano – PoliticaMente Incorretos (RJ)

Foto: divulgação


Elenco em cena

Em ótimo trabalho elenco, elenco apresenta uma Revista bastante engraçada


“Uma Revista do Ano – PoliticaMente Incorretos” apresenta de forma bastante bem humorada fatos da história do Brasil acontecidos entre julho de 2014 e de 2015 além de diversos temas de debates recorrentes nesse período. Escrito por Ana Velloso, com supervisão de Tânia Brandão, o ótimo texto dessa comédia resulta de pesquisa sobre o gênero Teatro de Revista, esse tão popular na primeira metade do século XX no país. Dirigido por Sérgio Módena, o espetáculo, que referencia a produção “A Revista do Ano – O Olimpo Carioca” (2013) do mesmo grupo, tem uma narrativa ágil, irônica e disposta a fazer o público gargalhar ao mesmo tempo que refletir acerca das mazelas da nossa política principalmente. Os excelentes cantores Cristiana Pompeo, Cristiano Gualda, Édio Nunes, Hugo Kerth, Wladimir Pinheiro, além de Ana Velloso, estão no elenco, oferecendo trabalhos de interpretação que dividem os méritos com o texto e com a direção positivamente. A peça está em cartaz, até o próximo dois de agosto, no Teatro de Arena no Espaço SESC Copacabana.

Da abertura da Copa de 2014 até os escândalos da Lava Jato, a dramaturgia de “Uma Revista do Ano – PoliticaMente Incorretos” cobre algumas situações que dominaram o país nos últimos doze meses. Entre os fatos, estão as eleições presidenciais e os escândalos em consequência das delações premiadas. Eles dividem, no texto, lugar com temas como a crise nas manifestações políticas, o aumento da vida online e o crescimento do número de pessoas fanáticas por alimentação mais saudável, por exemplo. A excelente construção das cenas gera o interesse por mais, afinal, há muito para ser falado: do ajuste fiscal aos panelaços, da influência evangélica na novela “Babilônia” a “Game of Thrones”, o material dramatúrgico para o gênero é uma fonte inesgotável e sempre em renovação. Em destaque negativo, estão as justificativas no texto pela sua realização cênica. Algumas cenas são unidas por diálogos entre os personagens em que se retratam atores almejando viabilizar uma Revista, o que informa ao espectador que os quadros são, na verdade, ensaios de um espetáculo que está por vir. Autoexplicativos, esses trechos são desnecessários principalmente porque muito inferiores aos de humor propriamente ditos além do fato de não terem finalização clara no encerramento do espetáculo.

A direção de Sérgio Módena, com colaboração de Gustavo Wabner, tem grandes méritos pelo modo como viabiliza quadros que, em si só, são piadas. Há ainda excelente união com as coreografias de Édio Nunes e com os números musicais dirigidos por Wladimir Pinheiro, esses excelentes em termos de suas relações com o todo. Nas interpretações, Ana Velloso, Cristiana Pompeo, Cristiano Gualda, Édio Nunes, Hugo Kerth e Wladimir Pinheiro participam equilibradamente da narrativa, produzindo um todo orgânico cujos tipos evoluem com graça enquanto o público se lembra do ano que passou, pensa e se diverte com eles. Hugo Kerth se destaca como Milton Cunha, Cristina Pompeo como a Amiga de Yolanda, Ana Velloso como Marina Silva, Wladimir Pinheiro, pela força e pela altíssima beleza de sua voz em todos os seus números musicais. Um excelente conjunto!

A vasta quantidade de objetos e figurinos que aparecem ao longo da narrativa revela a qualidade da produção no cuidado com os muitos detalhes. Adereços simples, porém coerentes com o texto, com a encenação e com o modo como se veem os personagens, garantem o excelente ritmo e também a certeza de que está assistindo a uma produção merecedora de aplausos. Figurinos são assinados por Antônio Medeiros e por Tatiana Rodrigues e adereços por ambos e por Derô Martin. Com colaboração discreta, mas positiva, a iluminação é de Tiago e de Fernanda Mantovani.

Sem vedetes, paetês e apelo sexual, essa revista também aparece com menos referências às produções burlescas e às extravaganzas, mas consegue atingir o público e fazer rir. Que venham outras!

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Ficha técnica:
Texto: Ana Velloso
Direção: Sérgio Módena
Codireção: Gustavo Wabner
Supervisão de Texto:Tânia Brandão
Colaboração de Texto: Vera Novello e Cristiano Gualda
Elenco: Ana Velloso, Cristiana Pompeo, Cristiano Gualda, Édio Nunes, Hugo Kerth e Wladimir Pinheiro
Direção Musical: Wladimir Pinheiro
Coreografia: Édio Nunes
Cenário: Bia Gondomar, Sérgio Módena e Gustavo Wabner
Figurinos e Adereços: Antônio Medeiros e Tatiana Rodrigues
Adereços e Cenotecnia: Derô Martins
Iluminação: Tiago e Fernanda Mantovani
Programação Visual: Cacau Gondomar
Fotografia: Débora Garcia
Assessoria de Imprensa: Duetto Comunicação
Produção: Lúdico Produções Artíticas

Ivon Curi – O ator da canção (RJ)

Foto: divulgação

Leonardo Wagner e Fernando Ceylão

(Mais) Um musical biográfico que deixa muito a desejar

O musical em que se homenageia Ivon Curi (1928-1995) surge quando se celebram vinte anos do falecimento dele que foi um dos cantores mais populares do Brasil durante boa parte do século XX. Como a maioria das muitas outras produções biográficas do tipo em cartaz, essa tem problemas sérios na dramaturgia de Pedro Murad além de em vários outros aspectos que também comprometem a qualidade do espetáculo negativamente. No elenco, Fernando Ceylão interpreta o protagonista de um jeito superficial, mas é dele o mérito por segurar a audiência nos piores momentos da peça pouco dirigida por Lucio Mauro Filho e por Danilo Watanabe. Com mesmo resultado controverso, o talentoso Leonardo Wagner dá vida a um amigo interlocutor, sendo mera escada para os diálogos e solitário pianista nos vinte números musicais cuja modesta direção é de Tim Rescala. “Ivon Curi – O ator da canção”, em cartaz no teatro do Centro Cultural dos Correios, no centro do Rio, não faz jus ao homenageado infelizmente.

Por algum motivo estranho, Pedro Murad optou por construir uma narrativa ficcional para “Ivon Curi – O ator da canção” sem qualquer sucesso infelizmente. Na narrativa da peça, estamos em 2050 quando o bairro de Copacabana está sendo destruído e toda a sua população está migrando para a zona oeste do Rio de Janeiro. Nos escombros do que um dia foi um famoso restaurante, Ivon Curi (Fernando Ceylão) se encontra com suas lembranças. Um velho amigo (Leonardo Wagner), que testemunhou esse período glorioso, está com ele nesse momento doloroso. Os problemas da dramaturgia são óbvios desde o início. Quem iniciou sua carreira no Copacabana Palace nos anos 40 e esteve em vários filmes da Atlântida nos anos 50 (não estamos falando de super heróis) não pode enfrentar os dilemas de um suposto 2050. A situação inicial da narrativa, solicitando muitas concessões poéticas, impõe barreiras enormes à fruição desde a abertura. Difícil!

Sem dedicar-se a qualquer questão mais complexa da vida de Ivon Curi, como sua suposta bi ou homossexualidade e sua relação com a esposa e seus três filhos; como o declínio de sua carreira como cantor com o advento da Jovem Guarda e os nove anos em que ele ficou sem gravar; ou como mais detalhes sobre a venda do verdadeiro Sambão e Sinhá (restaurante-boate que ele dirigiu entre 1968 e 1984 na rua Constante Ramos em Copacabana) para os bicheiros Miro e Maninho (Waldemir e Waldomiro Paes Garcia); ou ainda como novas versões sobre o boato de que sua morte se deu como conseqüência de complicações causadas pelo vírus do AIDS, a dramaturgia desse espetáculo paira em um clima superficial que deixa muito a desejar. Seja porque mobiliza muitos desafios que impedem o bom fluxo da relação palco e plateia, ou seja porque não oferece muito além de uma justaposição de canções recheada por fatos públicos da vida do cantor, o texto da peça é péssimo.

Mais disposto a uma representação estereotipada de Ivon Curi do que aparentemente disposto a dar a ver mais complexidade, Fernando Ceylão apresenta uma figura efeminada, com os ombros pra dentro, quadril projetado pra frente e movimentos ágeis e finos com as mãos. Em sua versão, não há marcas claras dos desafios de uma infância pobre contra um futuro de sucesso, uma juventude cheia de fama na direção contrária a uma maturidade sem reconhecimento da juventude nem todas as questões pertinentes à sexualidade, à família e ao trabalho que uma boa pesquisa poderia ter propiciado na hora de compor o personagem. No entanto, a experiência notória de Ceylão como ator de stand-up comedy proporciona talvez o único ponto positivo de “Ivon Curi – O ator da canção”. Lá pelas tantas, talvez cansado da forma enrijecida com que o personagem foi escrito, o ator encontra, no público, alguns possíveis respiros. Ao incluir algumas pessoas comuns da plateia em seus comentários no desenvolver das cenas, ratificando essas inclusões ao retornar às mesmas várias vezes ao longo da encenação, Ceylão consegue chamar alguma atenção e despertar a audiência do marasmo. O momento em que o afinadíssimo Leonardo Wagner, não mais o personagem, à convite de Fernando, esse também fora do protagonista, interpreta um trecho de “O fantasma da ópera” é, por exemplo, uma das barrigas mais interessantes de todo o espetáculo. Carismáticos, Ceylão e Wagner aproximam o público do palco calorosamente, o que é um feito dadas as péssimas colaborações de todos os outros aspectos.

Nem o cenário de Lívia Cohen, nem o figurino dela e de Clara Cohen ajudam o texto ou a encenação. Os escombros do fictício “Sambão e Sinhá” não apontam para um fato acontecido no meio do século XXI, mas retratam um lugar abandonado antes dos anos de 1950. O branco impecável da camisa do personagem Ivon, ou os cabelos bem penteados e as faces pesadamente maquiadas auxiliam a superficializar a figura, prendendo-a em uma chapa sem qualquer profundidade. Tudo é meramente ilustrativo e diegeticamente pobre. A iluminação de Paulo Denizot não consegue nem beleza nem propicia mobilidade às cenas. Sem destaque, a direção de Tim Rescala consiste basicamente na transformação das canções mais famosas gravadas por Ivon Curi para versões em piano e ajustadas aos limites musicais de Ceylão.

“Rei do Rádio” nos anos 50, autor de cinco entre os dez discos mais vendidos no período, Ivon Curi deu sua última contribuição à arte interpretando o gaúcho homossexual Gaudêncio na “Escolinha do Professor Raimundo” no início dos anos 90. Se as gerações que o conheceram mais de perto não encontram aqui algo relevante de sua vida sobre o qual possam refletir, as mais novas nem de sua história têm aqui muito a conhecer. Uma opção que deixa muito a desejar.

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Ficha técnica:
Texto: Pedro Murad
Direção: Lucio Mauro Filho e Danilo Watanabe
Idealização: Eduardo Barata
Elenco: Fernando Ceylão e Leonardo Wagner
Direção Musical: Tim Rescala
Direção de Movimento: Marina Salomon
Iluminação: Paulo Denizot
Cenário: Clívia Cohen
Figurinos: Clívia Cohen e Clara Cohen
Sound Designer: Branco Ferreira
Programação Visual: Felipe Braga
Fotos, Vídeos e Tradução: Guilherme Viotti
Caracterização: Rodrigo Fuentes
Assistente de Iluminação: Daniel Ramos
Assistente de Direção Musical: Rodrigo Marsillac
Operador de Luz: Rogério Medeiros
Operador de Som: Júnior Brasil
Camareiro e Contrarregra: Maurino Soares
Produção: Barata Comunicação
Direção de Produção: Elaine Moreira
Produção Executiva: Rodrigo Becker
Coordenação / Lei Rouanet: Lílian Santiago
Assessoria de Imprensa: Priscilla Santos
Produção: Bruno Luzes e Carlos Sahium
Realização: Barata Comunicação