terça-feira, 30 de junho de 2015

O homossexual ou A dificuldade de se expressar (RJ)

Foto: divulgação





Renato Carrera em brilhante interpretação

“O homossexual ou A dificuldade de se expressar” está em cartaz no Teatro de Arena do Espaço SESC Copacabana como parte da Ocupação Copi. O texto foi escrito pelo argentino Raul Damonte Botana (1939-1987), mais conhecido por Copi, escritor, desenhista e performer que viveu na França de 1963 até sua morte. Lançado em 1971, o texto expõe algumas situações-limite vividas por transexuais vitimados pelo preconceito. O humor negro e as situações absurdas pautam a discussão sobre identidade de gênero, vivência da sexualidade e valores morais, temas ainda muito caros à nossa época. Dirigida por Fabiano de Freitas, a montagem traduzida por Giovana Soar e encenada pelo grupo Teatro de Extremos impõe alguns desafios ao texto original, mas é uma ótima oportunidade de conferir o excelente trabalho de interpretação de Renato Carrera. A programação da Ocupação Copi vai até 8 de julho com várias atividades sobre a obra desse artista especial.


Por serem transexuais, Irina (Mauricio Lima) e a Senhora Simpson (Renato Carrera) estão exiladas na Siberia, perto dos Gulags para onde elas seriam fatalmente enviadas caso continuassem na parte europeia da União Soviética. Os Gulags (Administração Geral dos Campos de Trabalho Corretivo) foram campos de concentração criados no século XVII, mas que, de 1934 a 1980, foram o destino final de centenas de milhares de presos políticos do regime comunista russo. Considerado crime pela lei soviética, a homossexualidade foi o motivo da morte de mais de 50mil homens nesses campos. O texto provavelmente foi motivado pelo sucesso dos romances iniciais de Alexander Soljenítsin (1918-2008), um dos sobreviventes, que foi vencedor do Prêmio Nobel de Literatura de 1971.

A peça começa quando a Senhora Simpson descobre que Irina não frequenta as aulas de piano de Madame Garbo (Leonardo Corajo) há seis meses, embora diariamente tenha ficado fora de casa, onde a temperatura chega a 40ºC negativos. Irina, que chama a Senhora Simpson de Mãe, confessa que tem ocupado suas tardes com aventuras sexuais com desconhecidos e que agora está grávida. Madame Garbo, depois de se separar de seu marido, o Oficial Garbenko (Higor Campagnaro), aparece dizendo estar apaixonada pela aluna Irina. Juntos todos analisam a viabilidade de uma fuga para a China, onde também há uma ditadura comunista. A história, enquanto se estabelece por quebras de paradigmas de toda sorte, vai revelando as zonas limites onde esses seres humanos coexistem. Em outras palavras, ao partir de contextos como a troca de sexo e a gravidez, o calor e as baixas temperaturas, o exílio e a perseguição, as relações familiares e o passado obscuro, a narrativa deixa ver o não-lugar dos transexuais. Expulsos de seus corpos inconformes para outros igualmente conflituosos, vão de uma ditadura à outra, fugindo de inimigos que nunca deixam de aparecer e fazendo amigos em quem nunca se pode confiar.

A encenação de Fabiano de Freitas, assistido por Pedro Uchoa, dificulta a fruição do leitor porque devolve ao texto nova carga de absurdo que a dramaturgia, por si só, já tem. As barbas e os pelos nos corpos dos intérpretes criam terceiras dúvidas a respeito dos personagens transexuais. O figurino de Antônio Guedes, mais uma vez composto por uma justaposição de peças de toda ordem, redunda no palco a falta de lógica que os diálogos já defendem. O cenário de Pedro Paulo de Souza, formado por tubos sustentados no teto em redor da arena, nem dá a ver o frio da Sibéria, nem o calor do “esconderijo” que o lar da Senhora Simpson e de Irina representa para elas. Entrecortada, a luz de Renato Machado é positiva por valorizar as relações entre os personagens, mas, como o cenário e o figurino, não define bem o quadro geral. A direção musical de Gustavo Benjão é excelente

Fabiano de Freitas, que faz uma modesta participação como General Pouchkine, tem ótimo trabalho de direção de atores. Higor Campagnaro (Oficial Garbenko) e Leonardo Corajo (Madame Garbo) apresentam construções fortes, com posições firmes e ações claras ao longo da narrativa. Os dois reagem ao jogo de maneira pontual, sustentando em alto nível o ritmo excelente da encenação. Mauricio Lima faz do comportamento autodestrutivo de Irina não um meio de representar a loucura, mas permite que, através dela, o público perceba quão louca é a sua vida. Eis aqui uma belíssima poética! É no trabalho de Renato Carrera (Senhora Simpson) que estão os melhores valores dessa produção. Com habilidade, o ator faz dos sons mais sutis um aberto convite à atenção. Seu corpo, sua voz, seu gestual e seus movimentos estão íntegros na viabilização de uma estrutura sólida através da qual o público conseguirá chegar à complexidade de sua personagem. É vibrante conferir tão potente performance.

Com um passado obscuro e com um futuro igualmente pantanoso, os personagens de “O homossexual ou a dificuldade de se expressar” despertam reflexões essenciais às sociedades que visam se tornar mais humanas e, portanto, menos preconceituosas. O humor negro dos diálogos imagéticos e das situações escatológicas pode fazer vir à tona a insensibilidade diante da tragédia social que Copi denunciou. O título desse espetáculo exige uma reflexão: uma vez que os protagonistas são transexuais (homem em quem o gênero do seu corpo não é o mesmo de quem o habita), a quem se refere o termo “Homossexual” (homem que se interessa sexualmente por pessoa do mesmo gênero)? Não seriam essas nomenclaturas a expressão de um limite para a linguagem entre os homens no pensamento visionário do autor aqui homenageado? Vale a pena conferir a Ocupação Copi. Parabéns!

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Ficha técnica:
Texto: Copi
Direção: Fabiano de Freitas
Tradução: Giovana Soar
Com: Higor Campagnaro, Lenardo Corajo, Mauricio Lima, Renato Carrera e Fabiano de Freitas
Direção de Movimento: Marcia Rubin
Luz: Renato Machado
Figurino: Antônio Guedes
Direção Musical: Gustavo Benjão
Cenário: Pedro Paulo de Souza
Pesquisa Visual: Evee Avila
Assistente de direção: Pedro Uchoa
Gestora de Projetos: Maitê Medeiros
Produtor Assistente: Fellipe Marques
Produção Quintal - Direção Geral: Verônica Prates

Menopausa (RJ)

Foto: divulgação

Rose Abdallah, Pia Manfroni e Rosi Campos


O cenário de Nello Marrese é o melhor dessa comédia de Rodrigo Nogueira

A comédia “Menopausa”, em cartaz no Teatro das Artes, no Shopping da Gávea, é o novo texto de Rodrigo Nogueira com direção de João Fonseca, mesma dupla que assinou a grande produção “Rock’n’Rio – O musical”. Em cena, Rosi Campos, Pia Manfroni e Rose Abdallah interpretam três mulheres que, tendo ficado presas em uma sala de embarque de um aeroporto, acabam se aproximando. A questão da menopausa une os assuntos tratados por elas e o papo produz alguma alteração em suas vidas. Sem grandes momentos, o cenário de Nello Marrese é o melhor dessa produção que fica em cartaz até o fim dessa semana.

O texto de “Menopausa” surge de um argumento de Marilia Toledo e de Emílio Boechat, os mesmos roteiristas que assinam o longa-metragem “Lascados”, dirigido por Vitor Mafra, lançado na primavera de 2014. Na história da peça, o aeroporto foi fechado devido ao clima ruim. Valdete (Rosi Campos) é uma aeromoça quase cinquentona que está sem voar há muito tempo. No passado, ao ajudar um passageiro a pôr o cinto, a personagem ficou entalada entre as poltronas devido ao seu excesso de peso. O presidente da empresa estava no voo e, como castigo, ela ficou “condenada” à função de “destacadora de bilhetes”, sem poder realizar o sonho de viajar para o exterior. Agora seu casamento está acabando porque as mudanças hormonais trazidas pela sua idade são, nessa dramaturgia, a responsável, entre outras coisas, pela perda da libido. Tita (Pia Manfroni) tem quase a mesma idade que a velha amiga Valdete e está prestes a se casar. Acreditando estar grávida, ela se prepara para viajar e contar pessoalmente ao futuro marido a novidade. Também presa na sala de embarque, há a misteriosa Stela (Rose Abdallah) que, primeiro, se irrita com a conversa sonora de Valdete e de Tita, mas depois acaba auxiliando as duas a compreenderem melhor o momento que vivem.

A dramaturgia de “Menopausa” não está estruturada em ações, mas se desenvolve a partir de insights que as personagens vão tendo sobre si próprias. Nesse sentido, toda a primeira parte do espetáculo serve para apresentar duas das três mulheres, arrastando a identidade verdadeira de Stela para o trecho final. Com a ajuda de Tita e de Stela, Valdete avalia a decisão de se separar do marido enquanto resolve tomar uma atitude em relação ao sonho de ir para fora do Brasil. Tita, por sua vez, confessa estar muito insatisfeita com seu namorado e admite que os três meses de atraso de sua menstruação talvez não sejam sinais de gravidez, mas da entrada na menopausa. Nos momentos finais, o espectador saberá quem é Stela e principalmente de que maneira menstruação e menopausa são caros a essa personagem. Depois de sessenta minutos de apresentação, o tema que dá título à comédia terá infelizmente servido de trampolim para alguns momentos mais cômicos, mas a maioria deles terão se apoiado no discreto mérito das comediantes e da direção em fazer graça.

O figurino de Bruno Perlatto e o desenho de luz de Adriana Ortiz colaboram com a narrativa, mas o cenário de Nello Marrese acaba por ser o melhor aspecto de “Menopausa”. Através do excesso sujo de linhas retas e curvas (que tem aparecido nas horrendas construções mais modernas), o ambiente preenche o palco representando a sala de embarque do aeroporto. Partindo do realismo, há pinceladas de brilho nas paredes que poderiam ser capazes de levar a situação dramática a um lugar esteticamente kitsch, mas não consegue. Negativamente a direção de João Fonseca não deu conta de transformar essa conversa superficial em algo mais que não uma comédia de autoajuda. “Menopausa” permanece infelizmente longe do melodrama bem anunciado por Marrese.

Rosi Campos (Valdete) diz bem o texto, Pia Manfroni (Tita) demonstra grande habilidade corporal e Rose Abdallah (Stela) pontual elegância. As três mantêm o ritmo dentro do possível em uma comédia em que os acontecimentos, quando muito, são internos. Em suas interpretações, andar de um lado para o outro acaba sendo alternativa para não ficarem o tempo inteiro sentadas e alternar brigas com amenidades parece ter sido a saída para variações de tom. No todo, eis aqui uma produção meramente comercial que engorda a programação de teatro carioca sem acrescentar nada de relevante.

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FICHA TÉCNICA:
Argumento: Marilia Toledo e Emílio Boechat
De: Rodrigo Nogueira
Direção: João Fonseca
Produção Geral: Sandro Chaim
Elenco: Rosi Campos (Valdete), Pia Manfroni (Tita) e Rose Abdallah (Stela)
Cenografia: Nello Marrese
Figurinista: Bruno Perlatto
Designer de Luz: Adriana Ortiz
Visagista: Dicko Lorenzo
Realização: Chaim XYZ Produções

segunda-feira, 29 de junho de 2015

A geladeira (RJ)

Foto: divulgação

Marcio Vito


Marcio Vito em ótimo monólogo de Copi

“A geladeira” é o monólogo do argentino Raul Damonte Botana (1939-1987), mais conhecido como Copi, que foi um desenhista, romancista, dramaturgo e ator que viveu seus últimos vinte e cinco anos em Paris. Escrito em 1983, o texto foi levado à cena logo em seguida ao seu lançamento por seu próprio autor que, nessa época, havia sido diagnosticado como portador do vírus HIV. A peça trata da solidão e do medo da morte através dos seus contrários: o excesso de companhia e a festa de aniversário. Em cena, a história de L., um ex-modelo que se vê com uma geladeira deixada no meio de sua sala no dia em que completa 50 anos. O objeto é uma metáfora para a AIDS que levou Copi e tantos outros dessa vida, mas também para todas as notícias capazes de lembrar de que essa existência termina quando menos se espera. Essa encenação, no entanto, revela pouco dessa complexidade, investindo muito mais na troca de personagens e no uso dos objetos de cena. No palco da Sala Multiuso do Espaço SESC Copacabana, há em destaque o modo habilidoso com que Marcio Vito interpreta a enorme variedade de figuras, oferecendo a cada uma delas a chance de coexistir ao lado de L.. Esse espetáculo integra o programa da Ocupação Copi cujas atividades sobre o legado desse autor se estendem até o dia 8 de julho. Vale a pena conferir!

Tudo acontece no dia do aniversário de L., em sua casa, logo depois dele se deparar com uma geladeira abandonada no meio de sua sala. Sem saber de onde ela veio, L. não ousa abri-la, nem mesmo tocá-la a princípio. Enquanto descobre sua procedência e decide o que fazer, ele recebe o telefonema de um amigo que mora na Austrália e que requisita seu retorno às passarelas. Depois outro do editor do livro de suas memórias, que é quem lhe adianta o dinheiro do qual ele vive, e que espera dele atitudes mais comerciais e menos verdadeiras. Ao reclamar com a portaria sobre quem permitiu a entrega do eletrodoméstico, L. entra em discussões com os vizinhos, com a governanta e seu marido. Aparecem para uma visita ainda um detetive, seu terapeuta, sua mãe e um rato. Na evolução vertiginosa dessas aparições que atravessam o dia do protagonista, o espectador entra em seu universo. L. foi um referencial de beleza no passado e agora aprende a ficar recluso. Dentro dessa complexidade, é muito bonito identificar o modo como a geladeira parece manchar a rotina do personagem principal, desencadeando uma efervescência de sensações que fazem com que ele modifique o modo de se relacionar com o mundo. E principalmente refletir sobre como esse eletrodoméstico é capaz de ganhar novos significados a partir do contexto narrativo em que ele está envolvido.

Situado bastante próximo do ator e dos objetos de cena, o público do espetáculo tem poucas marcas que associem a geladeira a algo mais. A direção de Thomas Quillardet, que já havia produzido esse mesmo texto também com Marcio Vito em 2007, no Festival de Curitiba, acaba justificando a narrativa pela evolução dos personagens e dos usos dos adereços. Talvez a intenção tenha sido manter a dúvida sobre a existência real desses interlocutores com quem L. conversa. De fato, o jogo estabelecido é interessante, mas o esforço para isso é enorme e a importância nem tanto se a questão for simplesmente a aparição misteriosa de uma geladeira na sala. Lá pelas tantas, o espectador conta quantos objetos ainda não foram tocados em cena e prevê quanto tempo falta para o espetáculo terminar, o que é fatal para o ritmo.

Marcio Vito defende bem sua colaboração à peça. Em performance exuberante, o ator dá vida aos muitos personagens construindo cada um deles com mudanças de tom sutis, mas fundamentais. Pequenas alterações no jeito de olhar, no ritmo de dizer as palavras ou na corporalidade dão conta dos diálogos travados entre duas figuras interpretadas ao mesmo tempo pelo mesmo ator. Quase sem afetação na forma de representar L., Vito parece ter preferido um ponto de vista sobre esse personagem que é mais próximo do público e menos caricatural. A concepção pode ser reveladora. A nova idade e o novo corpo expulsaram esse homem do mundo da moda, mas talvez ele já esteja plenamente conformado com isso (até a peça começar).

Traduzida por Maria-Clara Ferrer, essa versão tem iluminação assinada por Lara Cunha e por Fernanda Mantovani, ambas colaborações adequadas com o desenvolvimento do que parece ter sido a proposta.

A Ocupação Copi começou no dia 11 de junho, abrigando, além de “A geladeira”, a peça “O Homossexual ou A dificuldade de se expressar” e a oficina “O Ator-Travesti – Experimentos sobre o universo de Copi”. Os méritos do projeto são inegáveis. Aplausos!

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Ficha técnica:
Texto: Copi
Tradução: Maria Clara Ferrer
Com: Marcio Vito
Direção: Thomas Quillardet
Assistente de direção: Renata Hardy
Produção de arte: Eloy Machado
Iluminação: Lara Cunha e Fernanda Mantovani
Gestora de Projetos: Maitê Medeiros
Produtor Assistente: Fellipe Marques
Produção Quintal - Direção Geral: Verônica Prates

quinta-feira, 25 de junho de 2015

Estamos indo embora (RJ)


Foto: divulgação

Julia Lund e Márcio Machado


Luiz Felipe Reis estreia no teatro com espetáculo sobre a preservação da espécie

“Estamos indo embora” marca a estreia como dramaturgo e como diretor do jornalista Luiz Felipe Reis, editor de teatro do Segundo Caderno, no jornal O Globo. Constituído pela justaposição de quadros cênicos, o espetáculo trata da possível extinção da vida humana na Terra a partir das ações inconsequentes do homem. Com Márcio Machado e Julia Lund no elenco, o espetáculo encerrou sua primeira temporada no último final de semana no Mezanino do Espaço SESC Copacabana. O projeto nasceu de uma pesquisa que busca relacionar as artes cênicas ao tema do Antropoceno – um termo cunhado pela comunidade científica e que define a era geológica iniciada após a Revolução Industrial. Com mais méritos sociais do que propriamente estéticos, o espetáculo precisa ser visto porque oferece uma reflexão essencial sobre o comportamento do homem quanto à preservação do meio ambiente.

Dois atores cruzam o palco coberto de fumaça branca enquanto se repetem projeções em vídeo de enormes geleiras derretendo. A abertura de “Estamos indo embora” revela, dessa forma, suas intenções: falar sobre o futuro do homem diante das prospecções dos cientistas quanto à vida no planeta Terra. Márcio Machado e Julia Lund interpretam, em seguida, dois cientistas: um disposto a alarmar a humanidade quanto à perigosa mudança climática e o outro preparado para acalmar os ouvintes frente às teorias apocalípticas dos ecologistas. Em termos de análise de dramaturgia, o interessante desse início da peça é identificar como os argumentos se organizam para equilibrar as forças e para anular a possibilidade de um vencedor final na disputa. Em seguida, já sem contornos tão claros, há a fusão das figuras defendidas por Lund e por Machado em um só lugar discursivo. Com participações alternadas, eles já não jogam entre si, mas apenas na exposição das ideias do texto com o público. Nesse trecho, “Estamos indo embora” passa a ser uma catequese sobre como o mundo ficará horrível se cada um (e cada sociedade também) não fizer algo positivo em relação ao meio ambiente. Por fim, Machado e Lund apresentam um homem e uma mulher que conversam sobre um bebê que a personagem dela espera. O diálogo entrecortado e substancialmente preenchido por silêncios constrói um quadro formado pela negação do conflito (ou a mais provável interiorização dele). Em outras palavras, é possível pensar que a humanidade daqueles que fugiam por entre as geleiras na abertura derreteu por completo e só resta, nesses humanos, o vazio particular. (Essa interpretação favorece a peça no sentido de oferecer a ela a chance de ser sobre algo mais que a defesa do meio ambiente.) Situado em algum ponto no futuro nessa cena, possivelmente o fim do século XXI (quando se completarão 500 anos da escritura de “Hamlet” e a população mundial chegar a quinze bilhões), a peça “Estamos indo embora” termina cumprindo uma função mais educativa do que propriamente estética.

No que se refere às interpretações, Márcio Machado e Julia Lund dizem o texto com relativa clareza, construindo as palavras com o que lhes é possível dentro de uma dramaturgia intencionalmente tão fria, tão sem personalidade e tão pouco teatral. Os figurinos de Antônio Guedes auxiliam na articulação dos atores com os vídeos concebidos por Julio Parente, oferecendo um quadro que é coeso e coerente na sua apresentação ao público. A trilha sonora de Luiz Felipe Reis e de Thiago Vivas e a iluminação de Alessandro Boschini agem no mesmo sentido positivamente.

Idealizado pela Polifônica Cia., em “Estamos indo embora”, o desafio do encenador consistiu em envolver elementos poucos dramáticos através de um conceito capaz de criar campo propício para a construção da teatralidade. Por fugir do mais fácil, vencendo essas barreiras e por investir em algo que pudesse ser significativo socialmente, Luiz Felipe Reis está de parabéns. Reflexões como as que esse espetáculo provoca são fundamentais hoje em dia e merecem ser valorizadas também pelo teatro.

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FICHA TÉCNICA
Direção e dramaturgia: Luiz Felipe Reis
Atuação: Julia Lund e Márcio Machado
Interlocução artística e dramatúrgica: Julia Lund e Patrick Sampaio
Criação visual e projeções: Júlio Parente
Direção de movimento: Luar Maria e Toni Rodrigues
Direção musical e sonora: Luiz Felipe Reis e Thiago Vivas
Iluminação: Alessandro Boschini
Figurino: Antônio Guedes
Assistente de figurino: Renata Mota
Cenotécnicos: Fernanda Tomás e José Baltazar
Fotografia: Leo Aversa
Still: Diana Herzog
Programação visual: Jair de Souza Design (Jair de Souza e Rodrigo Barja)
Hairstylist: Anderson Couto
Make: Gabriel Ramos
Direção de Produção: Sérgio Saboya (Galharufa Produções)
Produção Executiva: Maria Albergaria
Idealização, coprodução e realização: Polifônica Cia. (Julia Lund e Luiz Felipe Reis)

Folias do coração (RJ)

Foto: divulgação

Eduardo Cardoso



Formatura em alto estilo

“Folias do coração” foi o espetáculo de formatura de uma das turmas que se graduam, nesse primeiro semestre de 2015, no Bacharelado em Teatro na Casa de Artes de Laranjeiras. A peça é uma adaptação assinada por Geraldo Carneiro do filme “Esse mundo é dos loucos” do (não creditado no programa da peça) francês Philippe de Broca, lançado em 1966. Dos dezesseis atores no elenco, destacam-se os excelentes trabalhos de Samantha Gilbert e de Alice Maria Paiva, mas principalmente os de Eduardo Cardoso, Clarice Paixão e de Mila Carmo. Com direção comportada de Xando Graça, a peça fez curta temporada na Sala Sérgio Britto no Instituto Cal de Arte e Cultura, na Glória, zona sul do Rio de Janeiro, mas há de seguir caminho profissional para além da sala de aula.

“Esse mundo é dos loucos” (“Le Roi de Coeur”, em português “O Rei de Copas”) veio dois anos depois de “O Homem do Rio”, filme de que fala Mario Sergio Conti na sua coluna desta quinta-feira, 25 de junho, no Segundo Caderno do jornal O Globo. Vale lembrar que o italiano Adolpho Celi (1922-1966), ex-marido de Tônia Carreiro e primeiro diretor artístico da célebre companhia Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), está no elenco dos dois filmes. Na história, os moradores de uma pequena localidade da França, no fim da I Guerra Mundial (1914-1918), fugiram apavorados quando souberam que o exército alemão plantou lá uma grande bomba. Para desarmar o explosivo antes de que tudo voe pelos ares, o jovem soldado escocês Charles Plumpick (Alan Bates) é enviado. O problema é que, ao abandonar a cidade, os moradores esqueceram o portão do manicômio aberto de maneira que, ao chegar, o oficial encontra os loucos ocupando as posições sociais vagas. Coroado como o Rei de Copas e apaixonado pela jovem Coquelicot (Geneviève Bujold), o protagonista torna esse filme um clássico para a juventude dos anos 60 quando se pergunta: “quem mesmo são os loucos, os que moram no asilo ou aqueles que criaram as guerras?”

Na versão de Geraldo Carneiro, escrita por encomenda ao grupo Marxmellow International Troupe, levada ao palco em 1983 com Miguel Falabella e Zezé Polessa no elenco, há pequenas modificações. Um pequeno país está dividido. De um lado, o General (Clarice Paixão) está no comando da Presidência da República em uma falsa democracia (como aquela em que o Brasil vivia até 1990). De outro, o Almirante Polidoro da Marinha (Mila Carmo) está tentando tomar o poder. Para conquistar a adesão popular, o General espalha secretamente bombas pela cidade a fim de assumir o heroísmo por ter livrado a população de uma catástrofe. Só que seu plano falha, levando o povo a fugir da capital. O exército rebelde envia então o jovem Martim (Caio Mello) para desamar as bombas, mas, como no filme de Philippe de Broca, ele se depara com os loucos nos papeis de Bispo (Gilberto Goes), Comandante (Evandro Mattei), Nobreza (Marcos Duarte e Alice Maria Paiva), Cafetina (Samantha Gilbert) e, entre outros, de Barbeiro (Eduardo Cardoso). Se, nos anos 60, o filme “Esse mundo é dos loucos” representou algo significativo para a juventude que se lutava contra a Guerra do Vietnã (1955-1975), nos 80, a peça “Folias do coração” falava sobre o modo como a ditadura brasileira se passava por boazinha através da mídia. Mas qual é o apelo dessa história hoje?

A direção de Xando Graça foi firme na viabilização das marcas e no preenchimento do espaço, mas a concepção do espetáculo não ficou suficientemente definida. A movimentação dos atores é clara e o trabalho é preciso, porém o que se vê não valoriza o texto em suas maiores potencialidades. Fica a impressão de que há uma peça dentro da peça, sendo que a segunda (sobre os loucos) atrapalha a primeira (sobre a política). Sem aproveitar-se da poética da insanidade, pontuando o seu lugar na tese de de Broca e na de Carneiro, Graça perdeu a oportunidade de fazer mais que apenas dar aos atores bacharelandos a oportunidade de mostrar o que aprenderam nos anos escolares. Embora não vivamos mais uma ditadura e nem perdurem os ideais da juventude “Paz e Amor”, a dúvida de Charles/Martim ainda tem o seu lugar na contemporaneidade. Enrijecida demais, esse “Folias do coração” não disse claramente a que veio nessa temporada de estreia.

No elenco também formado por Caio Mello (Martim), Estenio Grassi (Bonifácio), Evandro Mattei (General das Flores), Gilberto Goes (Bispo), Jhenifer Emerick (Barbeiro Espião), Lais Regazio (Mestre de Cerimônias), Luiz França (Imediato), Marcus Duarte (Visconde), Marina Loureiro (Colombina), Michele Costa (Ordenança) e por Priscila Gonzaga (Coronel), ficam os excelentes trabalhos de Samantha Gilbert (Cafetina) e de Alice Maria Paiva (Viscondessa), mas principalmente os de Eduardo Cardoso (Barbeiro de Sevilha), Clarice Paixão (Generalíssima) e de Mila Carmo (Almirante Polidoro). Mais que nos demais, nesses últimos, as falas ganham novos possíveis significados pelo ótimo uso dos tons, das intenções e das pausas. As construções se apresentam limpas, ricas e capazes de oferecer ao todo graça e ainda complexidade. Dados os desafios, são seus os méritos maiores. Aplausos.

“Folias do coração” movimenta bem os recursos de cenário e de figurino em colaboração assinada por Adriano Ferreira e por Gustavo Henrique bem como de iluminação por Wilson Reiz. Sem lugar claro o suficiente na construção da narrativa, a direção musical de Edvan Moraes ficou comprometida pela direção de Xando Graça, esse assistido por Gilberto Goes.

À toda turma, devem-se os parabéns pelo esforço dedicado à formação, ao estudo da técnica e ao aperfeiçoamento do talento (que só o tempo há de dizer quem tem). A formatura é um momento de ganhar abraços e de acumular a expectativa para que se tornem grandes dentro da profissão que escolheram. A cidade fugiu e os loucos são aguardados. Bem-vindos!

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Ficha técnica:
Direção: Xando Graça
Texto: Geraldo Carneiro
Assistente de direção: Gilberto Goes
Direção musical: Edvan Moraes
Preparação corporal: Claudia Mele
Cenário e Figurino: Adriano Ferreira & Gustavo Henrique
Iluminação: Wilson Reiz
Fotografia: Alvaro Victor
Projeto Gráfico: Rita Ariani
Assessoria de Imprensa: Ana Gaio
Direção de produção: Marcia Quarti
Assistente de produção: Lucas Rangel
Colaboração na produção: Joyce Martins
Agradecimentos: Isaac Bernat & Karen Lieberman

Elenco:
Alice Maria Paiva (Viscondessa)
Caio Mello (Martim)
Clarice Paixão (Generalíssima)
Eduardo Cardoso (Barbeiro de Sevilha)
Estenio Grassi (Bonifácio)
Evandro Mattei (General das Flores)
Gilberto Goes (Bispo)
Jhenifer Emerick (Barbeiro Espião)
Lais Regazio (Mestre de Cerimônias)
Luiz França (Imediato)
Marcus Duarte (Visconde)
Marina Loureiro (Colombina)
Michele Costa (Ordenança)
Mila Carmo (Almirante Polidoro)
Priscila Gonzaga (Coronel)
Samantha Gilbert (Cafetina)

segunda-feira, 22 de junho de 2015

O olho azul da falecida (RJ)


Foto: Guga Melgar

Rafael Canedo, Tuca Andrada, Helder Agostini e Mário Borges


Uma divertidíssima crítica social


“O olho azul da falecida” (“Loot”, no original) terminou sua feliz primeira temporada no Rio de Janeiro no último domingo, dia 21 de junho, mas voltará para uma segunda na Sala Fernanda Montenegro do Teatro Leblon. Escrito por Joe Orton (1933-1965), o texto lançado em 1965 foi considerado o melhor do teatro londrino em 1966. Essa é a segunda montagem dele assinada pela Cia Limite 151, sucedendo outra de três anos atrás dirigida por José Henrique e com Elcio Romar, Genézio de Barros e Marco Pigossi nos papéis principais. Com as excelentes interpretações de Mário Borges, Tuca Andrada e de Rafael Canedo, além de Gláucia Rodrigues, Helder Agostini e de Johnny Ferro no elenco atual, a montagem atual é dirigida brilhantemente por Sidnei Cruz. Eis aqui uma comédia deliciosa com uma crítica feroz à Igreja Católica, aos valores sociais hipócritas e ao governo público no melhor daquele que também é autor do célebre “Entretendo o Sr. Sloane”, além do recentemente produzido no Rio “O que o mordomo viu”.

O melhor da história é identificar como a crítica social vai se tornando cada vez mais óbvia ao longo da narrativa. Traduzida por Bárbara Heliodora (1923-2015), a peça começa com a diálogo da Enfermeira Fay McMahon e do Viúvo McLeavy sobre os detalhes do sepultamento da falecida. Aí estão dados os valores aparentemente cultivados pelos personagens a partir dos quais eles devem ser julgados: a moral católica, a confiança nas instituições públicas e as relações pessoais como oportunidade para o cumprimento do dever. O espectador fica logo sabendo que há algo de incomum na relação que a Enfermeira tem com seu patrão e nos seus objetivos para com a família. Os rapazes Harold (Hal) McLeavy e seu melhor amigo Dennis aparecem apresentando um contraponto com a geração mais velha. Seus valores são outros: o modo como veem o sexo é mais livre, legalidade e ilegalidade são conceitos difusos e a religião tem outras funções para eles. Pai e Filho McLeavy têm características que lhes trazem problemas: a extrema confiança depositada no governo por parte de um e a incapacidade de mentir por parte de outro. Na outra ponta, McMahon e Dennis se se aproximam também. O elemento catalisador da narrativa é o Investigador Truscott, que chega para investigar um recente assalto ao banco da cidade, mas acaba encontrando informações estranhas acerca da morte da Sra. McLeavy. Quanto mais a história avança, mais engraçados ficam os caminhos encontrados pelos personagens para se salvar. E é nesse contexto de conflito que Joe Orton apresenta a sociedade nessa ótima comédia: com estruturas muito sensíveis para encarar a complexidade contemporânea.

A direção de Sidnei Cruz é esplêndida. É visível que todos os esforços da encenação são dispostos para privilegiar o texto e para dar a oportunidade a Orton de chegar à nós na sua melhor possibilidade. O ritmo fica veloz na medida em que a narrativa abandona a fase de apresentar o contexto e passa a modificá-lo. A articulação dos fatos da narrativa consegue meritosamente o feito de dar importância ao vaudeville, mas ir além: deixar ver a crítica. O mesmo se pode dizer das interpretações. Helder Agostini (Dennis) e Gláucia Rodrigues (Fay McMahon) fazem bons usos das palavras e dão corpos interessante às figuras, mas Tuca Andrada (Truscott), Rafael Canedo (Hal) e principalmente Mário Borges (McLeavy) estão excelentes. No conjunto, a história baila por entre os intérpretes sob o som da dramaturgia e das gargalhadas que o espetáculo tira do público ao longo dos cem minutos que a encenação dura.

O cenário de José Dias, cujo vazado está dentro dos padrões neorrelistas, colabora pouco com os méritos da encenação na medida em que não deixa claro para o espectador onde se passa a história: se o interior ou o exterior da casa, se o quarto de um dos personagens, se a sala. O figurino de Samuel Abrantes participa sem destaque da maior parte dos figurinos, mas atrapalha em Hal e no guarda Meadows (Johnny Ferro), criando entre eles uma relação estética injustificada através da costura de suas roupas.

Em “O olho azul da falecida” a sagacidade subversiva de Orton ataca a família, o luto, a justiça, o casamento e a religião. A comédia trata de roubo e do assassinato em uma trama que mistura farsa com trama policial. Foi uma pena que acabou!

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FICHA TÉCNICA:
Texto – Joe Orton
Tradução – Bárbara Heliodora
Direção – Sidnei Cruz
Cenário – José Dias
Figurinos – Samuel Abrantes
Música original e direção musical – Wagner Campos
Iluminação – Rogério Wiltgen
Adereços – Guilherme Reis e Samuel Abrantes
Assessoria de imprensa – Ana Gaio
Programação visual – João Carlos Guedes
Fotos – Guga Melgar
Produção executiva – Valéria Meirelles
Direção de produção – Edmundo Lippi
Realização - Cia Limite 151

ELENCO:
Tuca Andrada - Truscott
Gláucia Rodrigues – Fay
Rafael Canedo– Harold
Helder Agostini – Dennis
Johnny Ferro – Meadows

Ator convidado
Mário Borges – McLeavy