domingo, 31 de março de 2013

Ah A Humanidade e Outras Boas Intenções (RJ)

Renata Hardy brilha no papel da Porta-voz de uma
companhia aérea
Foto: divulgação

Instalação verbal: um motivo para pensar sobre o cenário

Dirigido por Murilo Hauser, “Ah, A Humanidade e Outras Boas Intenções” tem uma concepção de cenário interessante, mas que se perde na tentativa de ser bom para Artaud, para Ionesco e para um livro de autoajuda. Comparado com certeza não por esse trabalho a Samuel Beckett, o dramaturgo Will Eno justapôs nesse texto cinco peças curtas que, na montagem atual, estão ambientadas no caos plasticamente construído no palco da Casa de Cultura Laura Alvim. Com boas interpretações, um ritmo por vezes bastante pesado e ótimo figurino, o espetáculo foi concebido por Guilherme Weber e por Murilo Hauser, com tradução do segundo. Eis aí uma oportunidade interessante de pensar a respeito da importância do cenário para a fruição da obra cênica na medida em que ela pode contribuir e/ou atrapalhar a narrativa. Produzido pela Quintal Produções (Verônica Prates), o cenário de “Ah, A Humanidade e Outras Boas Intenções” é assinado por Valdy Lopes Jn e por Rafael Faustini. 

Ao entrar no teatro, o espectador se depara com um mundo em destruição, expresso por um poste quase caindo, uma cama de ferro em pé, o telhado de uma casa, uma televisão quebrada e todo um emaranhado de grandes e de pequenos objetos. O cenário de Lopes Jn e de Faustini oferece o elemento desordem como espaço narrativo. A instalação exposta no palco fica bem no início do espetáculo, mas atrapalha nas duas últimas histórias. A avaliação negativa vem do fato das peças partirem de lugares diferentes ainda que possam mirar o mesmo fim: a desolação da flor que nasce em meio ao asfalto. 

As três primeiras cenas são: “Behold the Coach, in a Blazer, Uninsured” (em que um treinador dá explicações numa coletiva de imprensa sobre seus últimos fracassos e planos futuros), “Ladies and Gentlemen, the Rain” (em que um homem e uma mulher gravam separadamente um vídeo para uma agência de relacionamentos) e “Enter the Sportswoman, Gently” (em que a porta-voz de uma empresa área fala com os familiares das vítimas de um acidente recente). Nelas, o espectador fica sabendo aos poucos tanto acerca de quem fala (qual é o personagem) quanto de em qual situação eles se encontram. O discurso de cada um está ora envolto às regras de quem ouve, ora de um mundo paralelo ao seu próprio interior. No meio de frases bem compreensíveis, há devaneios, saídas de escape em que os três se perdem em suas ensimesmadas reflexões, aspirações/frustrações e sentimentos, se esquecendo de que há constantemente quem os ouve (microfones e câmeras), quem tem o poder de lhes julgar. (“Para acabar com o julgamento de Deus”, de Artaud, não é mera coincidência.) Com forte verve surrealista, o cenário é positivo nesses casos, porque antecipa a alternância de sensações, a confluência de registros diferentes, o caos que ainda não foi dominado. Os intervalos na linearidade da fala são tréguas para essas criaturas tensas pela pressão que sentem. No palco, o mundo já acabou e agora deverá vir a bonança. 

A quarta cena, “The Bully Composition” (em que dois fotógrafos tentam reproduzir uma célebre fotografia de guerra), fala das “boas intenções” de Eno. Nesse quadro, em que o cenário (exatamente o mesmo das cenas anteriores) é apenas mera e superficial ilustração, os dois personagens não estão pressionados, sustentam diálogos regulares e lineares e constroem uma situação realista. No desenvolvimento, há o claro esforço em pregar o evangelho da valorização do momento, da vida, das coisas simples. É quando o ritmo do espetáculo cai vertiginosamente, talvez, porque parece que começou um outro espetáculo completamente diferente e muito superficial. 

Na última cena, “Oh, the Humanity” (em que um casal se encontra a caminho seja de um batismo seja de um funeral), o absurdo se estabelece na situação e, por isso, o cenário chega, nesse ponto, a atrapalhar. O teatro do absurdo expressa quão sem lógica é a vida dos seres humanos, joguetes, talvez, na mão de um destino, de um deus, de um controlador qualquer e arbitrário. Marido e Mulher não entendem o que fazem sentados em cadeiras como se fossem dentro de seu próprio carro. O tempo vai passando e ambos se sentem presos nessa situação irregular, maluca, estranha. Daí a necessidade de um cenário regrado e limpo que deixe para as falas a anormalidade, não sendo redundante com elas, mas complementar. 

Ao lado de uma construção extremamente fleumática, pesada e histriônica de Alice Borges, está uma interpretação equilibrada, intensa em detalhes e sensível em intenções de Renata Hardy. Guilherme Weber, Claudio Mendes e Gustavo Arthiddoro estão positivamente comedidos em suas participações. Os figurinos de Carolina Agresta e de Paula Strojer estão positivos ao lado da iluminação de Beto Bruel, ambos revelando pequenas situações, sem expor em demasia, sugerindo mais que evidenciando. 

Nas palavras de Artaud, “Porque não é o homem, mas o mundo que se tornou anormal”, quatro dessas cinco narrativas oferecem algo que vai além do hermético jogo de palavras de Will Eno. Além da excelente atuação de Renata Hardy, “Ah, A Humanidade e Outras Boas Intenções” deixa como tema de casa a reflexão por sobre uma estrutura narrativa que seja sólida na articulação de todos os seus elementos. 

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FICHA TÉCNICA
Texto: Will Eno
Concepção: Guilherme Weber e Murilo Hauser
Direção e Tradução: Murilo Hauser
Revisão de Tradução: Erica e Ursula de Almeida Rego Migon
Atores: Alice Borges, Claudio Mendes, Guilherme Weber, Renata Hardy e Gustavo Arthiddoro
Iluminação: Beto Bruel
Cenário: Valdir Lopes Jn e Rafael Faustini
Figurino: Carolina Agresta e Paula Stroher
Sonoplastia: Murilo Hauser
Design Gráfico: Julia
Fotos: João Julio Mello
Assessoria de Imprensa: Daniella Cavalcanti
Produzido por: Verônica Prates - Quintal Produções
Equipe Quintal: Camila Camuso e Maria Mendes
Administração, Controle Financeiro e Prestação de Contas: Verônica Prates

quinta-feira, 28 de março de 2013

Isto é o que ela pensa (SP)

Denise Weinberg protagoniza texto de
Alan Ayckbourn
Foto: divulgação

Para além da realidade, a reflexão

Talvez o mais interessante de “Isto é o que ela pensa” seja observar a linha tênue que divide tanto a história quanto quem a ouve. No primeiro caso, o desafio (nada difícil de se ultrapassar) seja observar o limite que separa a vida real da personagem Susan do mundo que a mente dela criou, talvez, como forma de escape para o enfrentamento da realidade. No segundo (esse, sim, um obstáculo), está a reflexão acerca do que é cômico e, por isso, risível, e do que é patológico e, por isso, sério. Diferente do humor negro do americano Nick Silver, o britânico Alan Ayckbourn, que escreveu “Woman in Mind”, em 1985, não confere ao jogo de palavras o tom da piada e quem assiste se sente convidado a rir da encenação por ele prevista. Dessa forma, quem entende a diferença entre loucura e doença, finca os pés no chão e se compadece do sofrimento da protagonista. Do outro lado, estão aqueles que se divertem despretenciosamente das maluquices da mãe de família(s). Em cartaz no Centro Cultural do Banco do Brasil, a montagem paulista é o terceiro espetáculo de Ayckbourn assinado pelo diretor Alexandre Tenório. Antes dele, do mesmo autor, vieram “A Serpente no Jardim” e “Assombrando Júlia”. 

Na plateia, não há o grupo dos certos e nem o dos errados, mas, como em toda boa obra de arte, “Isto que ela pensa” proporciona diversos níveis de fruição. A peça começa quando Susan acorda de um desmaio nos fundos de sua casa. Sem querer, ela pisara em um ancinho, fazendo com que o cabo batesse em sua testa sem feri-la externamente. É um médico substituto (Dr. Bill) quem lhe acorda, pois, segundo ele, seu médico “oficial” está em férias (a existência de um médico anterior a Bill prova que Susan sofre de um mal anterior ao acidente com o ancinho.) As primeiras palavras do doutor são incompreensíveis para Susan e para o público, o que evidencia aí o gênero narrativo do texto de Ayckbourn: o neorrealismo. Dentro da cabeça de Susan, o espectador vê aquilo que só ela vê, ou seja, o mundo de Susan passa a ser também o da fruição, o que ratifica o gênero narrativo apontado. Para a audiência, Susan acessa duas realidades paralelas e, por vezes, concomitantes: uma que existe independente dela (o seu marido Gerald, o filho Rick, cunhada Muriel e médico substituto Bill) e outra que existe apenas para si (o marido Andy, a filha Lucy e o irmão Tony). A primeira realidade não vê a segunda, mas a segunda, através de Susan, vê a primeira, de jeito que nós vemos as duas, tal como Susan. Dentre as muitas possibilidades de interpretação, há duas essenciais: 1) entender que a família imaginária existe por opção de Susan (nesse caso, Susan é agente); e 2) entender que a família ficcional existe sem a participação consciente da protagonista (Susan como paciente). De qualquer forma, em dado momento, ela mostra querer se livrar primeiro de uma e, depois, de ambas sem sucesso nas duas tentativas. Na evolução da narrativa, as duas se misturam até chegar o ápice. Eis, então, a certeza de que a personagem central da trama é uma anti-heroína, isto é, não é alguém que busca algo, mas que foge ou sofre de algo. (O personagem Leon Carmelo, de “Os Mamutes”, texto de Jô Bilac, tem a mesma característica. Arandir, de “O beijo no asfalto”, de Nelson Rodrigues, igualmente.) Exposta a chave de compreensão do texto, passemos à análise da encenação. 

Desperdiçar as gags cômicas do texto de Ayckbourn seria resistir ao texto e superficionalizá-lo. Felizmente, Tenório não o faz, embora seja possível notar que o diretor vai um pouco além. Denise Weinberg (Susan) está um tanto quanto trêmula em sua construção, nervosa, descontrolada, o que negativamente prenuncia um grau de loucura (ou de doença) da personagem que poderia passar menos perceptível. As ações de Clara Carvalho (Muriel) e as reações de Weinberg e de Mário César Camargo (Gerald) em relação a ela (Carvalho) também, em alguns momentos, parecem se aproveitar da comédia para ganhar o riso nem tão sugestivo dramaturgicamente. A Lucy de Clarissa Rockenbach, por sua vez, é rasa e parece ter sido construída pela égide do melodrama infelizmente. Bastante positivas são as construções de Camargo, Mário Borges (Bill), Flávio Faustinoni (Tony), Francisco Brêtas (Andy) e de Eduardo Muniz (Rick), porque, concordando com o realismo do texto, deixam o ritmo da história correr mais livremente, mais próxima do real além da narrativa, com menos entraves. De um modo geral, vale que o elenco está bem, de forma que as distorções citadas não chegam a prejudicar a estrutura da cena bem dirigida por Tenório. 

Bastante positivos são enlaces feitos entre as concepções de figurino (Cássio Brasil), cenário, iluminação (Domingos Quintiliano) e de direção musical (Miguel Briamonte). Coordenado e traduzido por Eduardo Muniz, o projeto é um todo coeso e coerente, que desperta interesse, apresentando alto empenho estético em todos os seus elementos, o que é bastante elogioso. 

A criação consciente ou inconsciente de mundos paralelos que funcionam como refúgio para o mundo do entorno do ser humano é cada vez mais tema para obras de arte no campo do teatro, do cinema e das artes visuais. No caso narrativo, talvez esteja aí uma saída para a tragédia contemporânea e a instauração de um hiperrealismo que vai além de Beckett e do teatro do absurdo. Por isso, deve ser, mais do que visto, pensado. 

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Ficha Técnica
‘Isso É O Que Ela Pensa’ (Woman in Mind), de Alan Ayckbourn

Direção: Alexandre Tenório
Iluminação: Domingos Quintiliano
Figurinos: Cássio Brasil
Direção Musical: Miguel Briamonte
Programação Visual: Paulo Falzoni
Fotos: Ligia Jardim
Coordenação De Produção: Eduardo Muniz
Realização: Maria Gorda Produções

Elenco:
Denise Weinberg
Clara Carvalho
Clarissa Rockenbach
Eduardo Muniz
Francisco Bretas
Flavio Faustinoni
Mário Borges
Mário César Camargo

quarta-feira, 27 de março de 2013

As mulheres de Grey Gardens (RJ)

Soraya Ravenle e Suely Franco
garantem bom divertimento apesar do texto ruim
Foto: divulgação
Superficial

A pior coisa de “As mulheres de Grey Gardens – O musical” é o texto. Escrito por Doug Wright (cujo musical anterior foi “A pequena sereia”), com músicas de Scott Frankel e letras de Michael Korie, um trio inexperiente naquele inverno de 2006, a produção fez temporadas fora da Broadway e depois dentro dela, permanecendo apenas um ano em cartaz. Dividido em dois atos, “Grey Gardens” parte do belíssimo documentário de 1975, dos irmãos Albert e David Maysles, mas não chega “a seus pés” infelizmente (assista ao documentário completo e legendado, clicando aqui). No processo de re-hierarquização dos signos, um dos elementos fundamentais da versão cinematográfica, a saber, a relação simbiótica entre mãe e filha, não foi valorizado no texto do musical. Talvez, atendendo apenas ao público norte-americano, as escolhas feitas se justiquem por lá, mas, com certeza, não nessas paragens. O amor dos americanos pela família Kennedy e sua realeza não chega até nós que expulsamos a nossa família real tão logo pudemos, no fim do século XIX. Se, nos Estados Unidos, a mansão “Grey Gardens”, hoje restaurada, foi um símbolo da decadência da aristocracia americana, no Brasil, o documentário é sobre a história de amor entre mãe e filha: ambas completamente descoladas da realidade, vivendo em um mundo paralelo, brigando e fazendo as pazes imediatamente, num processo constante de repulsa e de paixão intermitente que exala humanidade e, por isso, nos aproxima enquanto seres humanos, filhos de alguéns e, talvez, também pais de alguéns. Produzido por Jonas Calmon Klabin, a versão brasileira do espetáculo tem como mérito maior o de convidar o Brasil para conhecer mais de perto essa bela história que, infelizmente, a peça em cartaz na Sala Baden Powell pouco conta. 

Sem sucesso, a construção dramatúrgica de “Grey Gardens" tentou fazer algo parecido com o que foi realizado com o famoso “The sound of music” (“A Noviça Rebelde”). Nos anos 50, a Broadway comprou os direitos de Maria Von Trapp, que tinha escrito um livro contando a sua história (e que já tinha virado dois filmes alemães). De posse dos fatos biográficos, os produtores mudaram tudo de lugar: diminuíram o número de filhos para 7, jogaram a história para 1939 (ano da invasão dos nazistas na Áustria), colocaram o Capitão como um herói e a Noviça como uma mocinha e apresentaram uma linda história sobre uma família que se salva, cantando ao atravessar as alpes, fugindo do nazismo, numa  bela manhã de sol. No entanto, qualquer um que se aventure a pesquisar mais a fundo a história da família Trapp vai descobrir que as coisas aconteceram de forma muito diferente do que o musical de Richard Rodgers e de Oscar Hammerstein II conta. O mesmo acontece com a história de Big Edith e de Little Edie, a mãe e a filha Beale, respectivamente tia e prima da ex-primeira dama americana Jacqueline Kennedy. Assim, os autores de "Grey Gardens" criaram um primeiro ato, acontecido em 1941, que é quase que totalmente ficcional, e que só tem duas serventias: 1) informar ao público que os Beales são parentes próximos de Jackie Bouvie (Depois Jackie Kennedy Onassis); e 2) sugerir a época de ouro da família no exato momento em que aquele mundo começa a decair. Nesse sentido, a única função real do primeiro ato é contextualizar o segundo, quando encontramos, 32 anos depois, Big Edith e Little Edie na mesma casa, só que em total ruína financeira, sanitária e psicológica. (A intenção dos autores lembra positivamente de Erico Verissimo no magistral “O tempo e o vento”, em que o romancista gaúcho construiu o Rio Grande do Sul ideal, imaginário e épico em dois volumes, para, em seguida, destruir o Estado e seu povo, tijolo por tijolo, nos cinco volumes finais da grande obra.) 

Consideradas as intenções dos autores, a avaliação é que o texto do primeiro ato não cumpre a sua função de ser oposição para o segundo, assim como o do segundo em ser oposição para o primeiro. “As mulheres de Grey Gardens – O Musical” parece, por isso, duas peças justapostas e mal escritas. De um lado, temos uma mãe que, vilã, destrói o casamento da filha sem qualquer profundidade. De outro, temos uma mãe lúcida que é vítima da insanidade da filha, de quem ela cuida. Ou seja, nem lá, nem cá, mãe e filha estão próximas, estão parceiras no “crime de existir” em um mundo sem lugar para fantasia que as alimenta. Olhando para a história real, sabemos que nem mesmo houve um romance entre Joe Kennedy (Pierre Baitelli) e Little Edie (Carol Puntel), muito menos a vilania da mãe em separar os dois. Mãe e filha não se afastam uma da outra por conta própria, pois são almas gêmeas inseparáveis e vítimas de suas próprias escolhas por mais que tentem jogar uma para outra a culpa de suas mazelas anos a seguir. Da mesma forma, a questão do divórcio entre Big Edith (Soraia Ravenle) e o Senhor Beale já estava acertada desde o início dos anos 30, e a beleza da personagem Big Edith é justamente o seu apreço pela própria liberdade. Esses pontos de vista, que garantiriam a profundidade que o novo musical americano (e "Quase Normal" é uma referência nesse sentido) tem trazido nas últimas décadas, foram dispensados infelizmente.

A vontade de ser livre versus o compromisso vital de manterem-se juntas assumido entre mãe e filha são opostos que se atraem e que caracterizam as duas personagens protagonistas. Como já se disse, nada disso é visto no musical dirigido por Wolf Maya, assistido por Rafaela Amado. Suely Franco, uma excelente intérprete, traz energia para a Big Edith no segundo ato, mas, por não oferecer-lhe loucura, contribui negativamente com a superficialização indicada na dramaturgia. Soraya Ravenle, porque canta excelentemente bem, é ponto definitivo para a produção de “Grey Gardens” no Brasil. No entanto, na mesma medida em que seu personagem (Big Edith) no primeiro ato não lhe oferece os instrumentos necessários para se mostrar de forma mais profunda e contraditória, a sua função no segundo (Little Edie) parece ser apenas cantar e pouco além disso, ficando extremamente apagada diante do histriônico cenário de Bia Junqueira e da energia de Suely Franco. Em termos de interpretação, destaca-se positivamente a pequena participação do Senhor Bouvier (pai de Big Edith/Sandro Christopher), porque cheia de força, excelente dicção e ótimo uso de pausas e de entonações; e negativamente, as construções de Carol Puntel para Little Edie e de Danilo Timm para Jerry, ainda mais superficiais do que parecem ser os personagens no texto. 

Com uma trilha sonora associada a Soundheim, as músicas são mais estranhas aos ouvidos daqui acostumados aos velhos hits dos musicais tradicionais do repertório norte-americano. Com direção musical de Carlos Bauzys e de Daniel Rocha, o espetáculo, do ponto de vista das canções, é bem realizado, proporcionando ao público o convívio com canções que nos remetem aos dias de ouro da mansão Grey Gardens positivamente. 

É brilhante o trabalho de iluminação de Luiz Paulo Nenen e de figurino de Marta Reis. Leveza, elegância e boas caracterizações, tanto de tempo, como de lugar e de clima, os dois trabalhos cumprem o seu papel de forma elogiosa. O mesmo não se pode dizer do cenário de Bia Junqueira, nem tampouco dos vídeos e de seus usos. Grey Gardens, no primeiro ato, está mais para uma mansão “de novos ricos” do que para a aristocracia americana “cuja marca é a responsabilidade” (citando uma fala do texto). No segundo ato, em relação direta à montanha de “Dias Felizes” de Beckett, a pilha de lixo afasta o espetáculo do realismo, ficando no meio do caminho entre o expressionismo e a tragédia contemporânea. Os vídeos são ainda piores, com mais marcas de superficialidade, remetendo à animação infantil. 

“Grey Gardens” foi indicado a vários prêmios e ganhou alguns no ano de seu lançamento nos Estados Unidos. Talvez, seu caso seja uma evidência interessante de que troféus não são garantia de presença de valores ou de ausência deles, mas apenas um fato que, em alguma medida, pode ser relevante e, em outra, não. (O excelente musical “Chicago”, por exemplo, não ganhou os muitos prêmios merecidos em 1975 porque concorreu no mesmo ano em que “A Chorus Line”. O filme “O Mágico de Oz” passou pelo mesmo problema em 1939, ano em que “...E o vento levou” ganhou todos os Oscar que pode). Em suma, no caso da produção brasileira, não fosse Soraya Ravenle e Suely Franco nos papéis títulos, teríamos um grande problema que, por elas, mas também pela presença de mais alguns, foi positivamente amenizado. 

PS.: Um elogio merecido à Assessoria de Imprensa de Daniella Cavalcanti e de Clarissa Braga pelo envio da ficha técnica completa no release. O nome disso é valorização de todos os profissionais envolvidos, o que prova a ciência de ambas de que, independente do resultado de uma avaliação estética, esta sempre pessoal e, por isso, subjetiva, o ato de fazer teatro nesse país, com todas as suas dificuldades, sempre merece aplauso nome por nome. Parabéns! 

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FICHA TÉCNICA
Direção: Wolf Maya
Direção Musical: Carlos Bauzys e Daniel Rocha
Texto Doug Wright |Melodias Scott Frankel | Letras Michael Korie
Versão Brasileira: Jonas Calmon Klabin
Versões Adicionais: Claudio Botelho

ELENCO
Protagonista: Soraya Ravenle (Edith mãe primeiro ato e Edie ou Pequena Edith no segundo ato)
Atriz Convidada: Suely Franco (Edith mãe no segundo ato)
Elenco: Carol Puntel (Edie ou Pequena Edith no primeiro ato), Guilherme Terra (Gould), Sandro Christopher (Major Bouvier),Pierre Baitelli (Joseph Patrick Kennedy Jr, stand-in para Jerry), Jorge Maya (Brooks e Norman Vincent Peale), Danilo Timm(Jerry, stand-in para Joseph Patrick Kennedy Jr, Gould, Major Bouvier e Brooks) e as crianças Raquel Bonfante (Jaqueline Kennedy) e Sofia Viamonte (Princesa Lee), Mirna Rubim (stand-in para Edith mãe no primeiro e segundo ato e Edie ou Pequena Edith no segundo) e Thuany Parente (stand-in para Edie ou Pequena Edith no primeiro ato, Jaqueline Kennedy e Princesa Lee).

ORQUESTRA
Regência: Juliano Dutra
Orquestra: Inah Kurrels (violino), Janaina Salles (cello), Levi Chaves e Marco Tulio alternando (palheta 1: flautim, flauta, flauta alto, clarinete e sax alto), Marco Moreira Chiquinho (palheta 2: clarinete, flauta, sax soprano, sax tenor e clarone), Naílson Simões (trompete e flugel), Waleska Beltrami e Priscila Viana alternando (trompa), Marcelo Farias (pianista), Raul d’Oliveira(baixo) e Tiago Calderano (bateria e percussão)
Músicos substitutos da orquestra: Anderson Pequeno (violino), Beto Bonfim (bateria e percussão), Gilberto Junior e Alex Freitas alternando (palheta 2: clarinete, flauta, sax soprano, sax tenor e clarone), Orlando Walter (trompete e flugel) e Priscilla Azevedo (pianista)

EQUIPE DE CRIAÇÃO
Cenografia: Bia Junqueira
Iluminação: Luiz Paulo Nenen
Figurino: Marta Reis
Coreografia: Marcia Rubin
Designer de Som: Gabriel D'Angelo
Preparação Vocal: Mirna Rubim e Carlos Bauzys
Identidade Visual: Debora Bensusan e Tânia Grillo
Assessoria de Imprensa: Daniella Cavalcanti
Produção: Jonas Calmon Klabin

EQUIPE DE DIREÇÃO
Diretora assistente: Rafaela Amado
Assistentes de direção adicionais: Gustavo Klein e Lia Racy

EQUIPE DE DIREÇÃO MUSICAL
Copista e editoração: Daniel Rocha
Programação de teclados: Heberth Souza
Pianistas ensaiadores: Marcelo Farias e Priscilla Azevedo

EQUIPE DE VERSÃO E TEXTO
Tradução do texto: Tatiana Aragão e Jonas Calmon Klabin
Versão para “Will You”(“Você”): Marya Bravo
Colaboradores da versão e adaptação brasileira: Marya Bravo, Noé Klabin, Soraya Ravenle e Wolf Maya

EQUIPE DE CENOGRAFIA E VÍDEO
Concepção Imagens Projeção Bia Junqueira e John Fitzgerald
Direção de vídeo projeção: John Fitzgerald
Assistente de cenografia: Bia Kaysel
Assistente de montagem: Julia De Francesco
Lay-out 3D: Henrique Mourthe
Produção de objetos: Manu Cerqueira
Design e Animação:
-Motion: Felipe Duarte, Camila Moraes, Lilian Gorini e Renato Brandão
-3D: Henrique Mourthe e Renato Brandão
Projeção Mapeada:
-Consultoria técnica: Gabriela Costa de Castro
-Programação: Marlus Araujo
-Assistente: Rafael Drelich
Assistente de vídeo projeção: Lilian Gorini
Operadores de projeção: Caio Chacal e Carlos Gabriel
Adereços: Alex Grilli
Cenotécnicos responsáveis: Robson Silva Alves e Lemoel Silva Alves
Painel de boca de cena: Denis Nascimento e Jorge Ferreira Silva

EQUIPE DE ILUMINAÇÃO
Iluminadora assistente: Daniela Sanches
Operador de luz: Daniela Sanches e Eduardo Nobre
Operadores de canhão (estagiários): Carlos Deonisio e Raissa Teo
Montagem de luz: Eduardo Nobre, Genilson Barbosa e Walace Furtado

EQUIPE DE FIGURINO E VISAGISMO
Visagismo: Flavio Priscott
Maquiagem: Daniel Reggio
Equipe de figurino: Rafael Viana
Assistente de figurino: Eduardo Leão
Alta costura: Ana Maria Amaro
Alfaiataria: Antonio Foicinh
O broche de Edie foi reproduzido do original por Sonia Cabrera

EQUIPE DE SOM
Designers de som associados: Martim Crawford e “PePe” Pedro Paulo Monnerat
Sonoplastia: Maloca Estudio
Operador de som: “PePe” Pedro Paulo Monnerat
Microfonista: Augusto D’Angelo
Assistente técnico de som: Daniel Lages

EQUIPE DE IDENTIDADE VISUAL E REGISTRO
Fotografia artística: Luiz Paulo Nenen
Making of e Registro videográfico: Andarilho Filmes
Fotografias adicionais: Arthur Seixas, João Clavio e John Fitzgerald
Criação do site: André Vieira
Assistente de Identidade visual: Tatiana Bond

EQUIPE DE ASSESSORIA DE IMPRENSA
Assistente de assessoria de imprensa: Fernanda Miranda
Estagiária: Clarissa Braga
Lista de convidados: Evandro Rius

EQUIPE DE PALCO
Diretor de palco: Carlos Elias
Maquinista: João Paulo da Mata
Contrarregra: Patrick Silva
Assistente de contrarregra: Leandro Jacinto
Camareiras: Luci Moreira, Ligia Soares e Cleidimar dos Santos
Limpeza apoio: Dna. Dora

EQUIPE DO TEATRO MUNICIPAL SALA BADEN POWELL
Administração: Grace Rial
Secretário teatral: Fábio Anderson
Assistente administrativo: Priscila Bezerra
Bilheteira: Célia Silva
Técnicos de som: Naldo Neto e Thiago Tavares
Técnicos de luz: Sérgio de Oliveira e Well Ribeiro
Contrarregras: Alexandre Araujo e William Alves

EQUIPE DE ADMINISTRAÇÃO
Coordenação Administrativa e Financeira: Cristiane Cavalcante
Coordenação Administrativa e Financeira de pré-produção: Angélica Neves
Coordenação de Comunicação: Natalie Kneit
Consultoria: Cristina Bueno
Contabilidade: Paulo Cezar Mendes
Assessoria Jurídica: Dionísio, Hollanda e Bodas Sociedade de Advogados

EQUIPE DE PRODUÇÃO
Direção de Produção: Tathiana Mourão
Produção Executiva: Lia Racy
Coordenador de Produção: Thiago Páschoa
Produtores Associados: André Vieira e César Augusto
Produtor Operacional: Tiago Morenno
Assistentes de produção: Marcos Pereira e Tabil Volski
Estagiária de produção: Sheila Cardozo

Baseado no filme “Grey Gardens” de David Maysles, Albert Maysles, Ellen Hovde, Muffie Mayer e Susan Froemke.

A produção original da Broadway é assinada por East of Doheny, Staunch Entertainment, Randall L. Wreghitt/Mort Swinsky, Michael Alden, Edwin W. Schloss, todos em associação com o Playwright Horizons.

Grey Gardens foi desenvolvido com o apoio do Sundance Institute.

Vencedores do 7o Prêmio APTR de Teatro (RJ)

O momento mais emocionante da noite: o beijo entre
as grandes atrizes Camila Amado e Fernanda Montenegro
Foto: divulgação

A homenagem de quem divide a plateia com Fernanda Montenegro

Fernanda Montenegro foi a atriz homenageada na entrega do 7o Prêmio APTR de Teatro, a maior comenda das artes cênicas do Brasil atualmente. No ano em que a Associação dos Produtores de Teatro do Rio de Janeiro completa 10 anos de longa e árdua caminhada e muitas conquistas, a festa de comemoração contou com a reunião da classe artística no Teatro Imperator, do Méier, zona norte do Rio de Janeiro. Para mim, que vim de fora há pouco mais de um ano, é uma honra aplaudir, em média, cinco vezes por semana todos esses talentosos profissionais, do palco ou atrás dele, mas sobretudo dividir com eles o lugar da plateia numa noite de reconhecimento maior que de premiação. 

Em se tratando de Fernanda Montenegro, muitas coisas belas foram ditas na noite de segunda-feira (25 de março). Eu, cá com meus botões, guardei uma delas para esse texto. Com uma quantidade imensa de prêmios nacionais e internacionais, cuja respeitabilidade deles faz dela alguém incomparável; um currículo maciço e invejável, mas sobretudo uma sabedoria que parece ter sido reservada para poucos, o que torna suas falas momentos de grande expectativa para os muitos ouvintes; Fernanda Montenegro, pra mim, tem, além de tudo isso, o mérito de ser um excelente público de teatro. Numa lista imensa de grandes atrizes e atores brasileiros que que estão ao lado da “Fernandona” nesse pódio merecido dos mais-mais do teatro nacional, ela continuaria se destacando como a profissional que, com mais frequência, aplaude seus colegas, confere seus trabalhos, acompanha a grade de programação de teatro de sua cidade, abre-se para o novo, sentindo o prazer imenso de VER teatro. Se os produtores da APTR a homenagearam e também os atores com seus discursos, fica aqui, nessas palavras, a minha humilde homenagem a quem, como eu, faz parte regularmente das plateias cariocas. Essa é uma honra que só o é porque é banal. Orgulhosamente, banal, pois dividir o lugar do público com Fernanda Montenegro é ainda melhor justamente porque não é raro. 

*

Confira abaixo os vencedores do 7o Prêmio APTR de Teatro:

Melhor Autor:
Carla Faour - Obsessão

Melhor Direção:

Bruce Gomlevsky - O Homem Travesseiro

Melhor Cenografia:
Breu - Aurora dos Campos, Maria Silvia Siqueira Campos e Miwa Yanagizawa

Melhor Figurino:
Valsa n. 6 - Teka Fichiski

Melhor Iluminação:
A Marca da Água, A Primeira Vista, Édipo Rei e O Outro Van Gogh - Maneco Quinderé

Ator em papel protagonista:
Gregório Duvivier – Uma noite na lua

Atriz em papel protagonista:
Vanessa Gerbeli – Quase Normal

Ator em papel coadjuvante:
Tonico Pereira – A Volta ao Lar e O Homem Travesseiro

Atriz em papel coadjuvante:
Simone Spoladore – Depois da Queda

Categoria Especial:
Marcela Altberg (cast de musicais)

Melhor Espetáculo:
O Homem Travesseiro

Melhor Música:
Era uma vez... Grimm – Tim Rescala

Melhor Produção
Sarau Agencia de Cultura - Gonzagão - A Lenda
Gávea Filmes - O Desaparecimento do Elefante

Confirma aqui a lista completa dos indicados.

Jurados: Bárbara Heliodora, Daniel Schenker, Lionel Fischer, Macksen Luis, Mauro Ferreira, Norma Thiré, Rafael Teixeira, Rodrigo Monteiro e Tânia Brandão.

terça-feira, 26 de março de 2013

Caminos Invisibles (SP)

Elenco é formado por atores de origem andina
Foto: divulgação

Peça ajuda a "limpar nossas lentes" para olharmos melhor para nossas origens

A questão mais problemática da peça “Caminos Invisibles” é o fato dela se apresentar como um melodrama clássico, apesar de constar no release ser um "documentário cênico/performance multimídia". Há mocinhos, há bandidos, corrupção, esperança e fé, longas viagens, muitas dificuldades,  clímax e redenção. Num país que presencia, em pleno século XXI, o trabalho escravo (e a CPI para tratar desse assunto acabou sendo encerrada sem nenhum relatório, o que favorece os ruralistas escravocratas), o tema é de fundamental importância. No entanto, devido à forma como se dá a narrativa (o gênero como melhor se dá a ver a peça), o assunto perde a sua força, superficializa-se e se arrasta, transformando infelizmente uma hora em sessenta longos minutos. Protagonizado pela autora e diretora Carina Cassuscelli, a peça é a nova montagem da Companhia Nova de Teatro, que reúne no elenco atores oriundos do Brasil e de outros países da América Latina. 

A partir de uma bela cena de ritual xamã, o espetáculo começa quando é anunciado à protagonista Maria que ela tem dois caminhos a seguir: um visível, em que o trabalho será seguido de dinheiro, mas também de muitas dificuldades; e um invisível, em que o trabalho trará a ela outras recompensas, menos materiais e mais duradouras. Ela opta pelo primeiro e parte, junto de outras conterrâneas, para o Brasil, onde lhe é oferecido trabalho, alimentação e moradia. Quase aos moldes tradicionais de Glória Perez, Maria é encarcerada em uma fábrica clandestina que produz peças de roupa para lojas a varejo. O setor, que alimenta a classe média ascendente no país, se farta da exploração do trabalho dos imigrantes ilegais sob pena de extradição. Um movimento político nasce em meio às personagens operárias e, em seguida, vem o desfecho da história. Interrompido por altos discursos ideológicos, que, por vezes, são bastante cansativos (ainda que valorosos do ponto de vista político), o melodrama, que emocionaria a plateia brasileira nos anos sessenta, hoje, atinge apenas aos telespectadores da Televisa e poucos além. 

O elenco, composto em sua maioria por pessoas estrangeiras, faz brilhar no palco as feições que raramente são vistas nos palcos daqui. O material humano, assim, usado para narrar a história parece ser fonte profunda para o “teatro da memória”, estudado pelo argentino Jorge Dubatti e, no Brasil, pesquisado sobretudo pelo grupo paulista Teatro da Vertigem, cujas marcas de lugar são pontos de partida para a narrativa sobre o lugar. Em cena, no palco da Sala Multiuso do Sesc Copacabana, estão pessoas que têm uma história para contar, e uma história muito mais profunda que o melodrama poderia viabilizar. Acaba-se, por fim, identificando trabalhos de interpretações vazios, inexpressivos, superficiais, sem qualquer ponto positivo nesse campo infelizmente. O potencial permanece, mas não foi bem usado. 

Em compensação, o trabalho estético (a direção artística é de Lenerson Polonini) é excelente: os figurinos da diretora são excelentes (sobretudo aqueles que remetem às origens dos personagens), a presença das máquinas de costura é forte, a sonoridade das músicas, da manutenção do idioma andino em solo brasileiro e do significado de cada gesto compõe, no todo do quadro visível, um belo trabalho que merece aplausos. A música ao vivo é igualmente outro fator positivo que equilibra as negativas (porque redundantes) inserções em vídeo.

O Brasil tem o péssimo comportamento de se voltar muito mais rapidamente para os Estados Unidos e para a Europa do que para seus vizinhos da América do Sul. O maior país e o único a falar português no continente ainda insiste em negar a sua raiz latina, valorizando olhos azuis e peles claras e se esquecendo de sua origem indígena. “Caminos Invisibles”, que ganhou na Itália o prêmio Teresa Pomodoro de Teatro da Inclusão, é uma obra que, apesar de suas dificuldades, ajuda a “limpar as lentes” do nosso olhar por sobre nós mesmos. É, por isso, um trabalho que merece ser visto. 

*

Ficha técnica:
Direção e dramaturgia: Carina Casuscelli.
Direção artística e iluminação: Lenerson Polonini
Atores performers: Carina Casuscelli, Rosa Freitas, Cléo Moraes, Camila dos Anjos, Juan Cusicanki e Giuliano Pallos.
Músicos: Javier Aquino, Élio Flores, Oscar Astilla e Freddy Wara.
Figurinos: Carina Casuscelli
Vídeos e documentação audiovisual: Cristian Cancino
Câmera performer: Giuliano Conti
Participação especial: Conjunto Autoctono “Jach'a Sicuris de Italaque”
Direção musical: Wilson Sukorski
Fotos: Acauã Fonseca e Henrique Oda.
Concepção espacial e produção: Carina Casuscelli e Lenerson Polonini
Realização: Companhia Nova de Teatro

quinta-feira, 21 de março de 2013

Uma história oficial (RJ)

Gênero conhecido pelos trabalhos de Bertolt Brecht
recebe atualização da Cortejo Companhia de Teatro
Foto: divulgação

O épico da história não oficial

“Uma história oficial” é um espetáculo mais interessante do ponto de vista da forma do que realmente da história em si. E isso, nesse caso, é excelente. Escrito por Rodrigo Portella e por Tairone Vale, e dirigido pelo primeiro, a nova produção da Cortejo Companhia de Teatro é feita de imagens exuberantes e estruturada com um movimento que é raro na narrativa cênica. A história, no entanto, ainda que bastante bem contada, fica aquém do ato de contar, esse, sim, a estrela da noite. O drama ideológico sob o clima da opressão traz personagens ricos, com profundidade vislumbrável, mas seu melhor, enquanto ficção, é observar como os atos se dão a ver na cena do grupo mineiro-fluminense. A peça está em cartaz no Teatro da Casa de Cultura Laura Alvim. 

O release informa que o grupo percorre uma trajetória na literatura de realismo fantástico, sobretudo em Gabriel García Márquez, e isso explica algumas opções estéticas da encenação. Ocorre aí um motivo riquíssimo para análise entre teatro e literatura (e o gêneros cênico-narrativos estão a milhas de distância de terem sido estudados como os literários infelizmente). O primeiro ponto é que, na literatura, o leitor lê uma página depois da outra, de forma que tem em mãos o presente dos personagens, mas também o seu passado e o seu futuro na medida em que vai vendo quantas páginas já foram lidas e quantas ainda faltam ler. No teatro, isso não acontece. Uma cena ocupa o lugar da outra, de forma que seria como se, lida uma folha, tudo o que tivesse escrito nela se apagasse e, na mesma página, outro conteúdo fosse escrito. Não há passado e nem futuro no teatro, apenas o presente, uma vez que uma cena acontece exatamente no mesmo lugar onde aconteceu a anterior. O segundo aspecto é que, em literatura, realismo fantástico é uma variação do realismo em que eventos estranhos acontecem tão bem fundamentados por toda a maquinaria realista que passam a ser encarados pelos personagens da obra como normais. Ou seja, o fantástico está apenas nos olhos do leitor e, não, nos olhos dos personagens. “Uma história oficial” não parte do realismo e, portanto, não pode chegar, enquanto espetáculo cênico, a ser uma obra realista fantástica. O gênero aqui é outro.

Quatro performers são vistos quando as luzes acendem sobre um cone e é cruzada uma linha entre o que é teatro e o que não é teatro. Esses performers (meio atores, meio personagens) dividem-se em personagens: a Mulher Grávida (Lívia Gomes), a Menina (Bruna Portella), o Escravo (Tales Coutinho) e o Vendedor de Bíblias (Tairone Vale). Assim, eles começam a criar uma história. No grupo, há um líder, isto é, alguém que parece dar as ordens, liderando os demais em como a história deverá acontecer. Esse é justamente quem, dada a narrativa, será o primeiro opressor. É interessante notar que, embora, em determinado momento, a história já tenha começado a ser narrada, os performers continuam atuando, falando entre si, tomando decisões a respeito do rumo da história, agindo paralelamente. Ou seja, o melhor gênero para ler a peça “Uma história oficial” é o teatro épico (ou didático), mais conhecido pelos trabalhos de Bertolt Brecht. A partir daí, o jeito de narrar ganha o lugar de destaque que, afinal, faz força para merecer. 

É bastante rica a forma como os objetos em cena (o cenário e a iluminação são de Rodrigo Portella e os figurinos de Babi Crivellari
) e a trilha sonora dominam o espaço cênico, dividem o palco, constroem lugares e estruturam imagens belas. Com eles, os personagens ganham vida, ambiência e um pouco mais de cor que a ausência proposital de nomes não lhes dá. Dentre as quatro construções, há apenas uma que é vítima sem ter se conformado com o estado de sê-lo. É o caso da Menina que, na interpretação de Bruna Portella, positivamente se diferencia dos demais por não usar o tom monocorde na fala e abusar da emoção sempre que possível. O resultado é magnífico. O Vendedor de Bíblias é o opressor por natureza. O Escravo, de oprimido, vira opressor. A Mulher Grávida é o exato oposto do Vendedor, estando, assim, ao seu lado. Todos esses personagens sustentam a heroína, são-lhe base e, agindo com menos ênfases, amarram o quadro geral de forma suficientemente sólida para permanecer no gênero e, por isso, bastante positiva. 

O aponte para metalinguagem, isto é, a força para que vejamos a história ao lado do jeito como ela está sendo criada, explica o porquê desse tipo de produção ser chamada também de didática. Sua função é convocar a audiência para que ela perceba conscientemente os instrumentos do discurso que são usados para agregar desavisados, dividindo a sociedade, muitas vezes, em opressores e oprimidos. O adjetivo “oficial” no título da peça aponta para o seu oposto. Nessa produção, que por tudo isso é bem-vinda à programação de teatro da Cidade Maravilhosa, há uma outra história a ser contada. Aquela que existe, mas geralmente fica por trás, normalmente calada e escondida. Vale a pena, agora, vê-la e aplaudi-la. 

*

Ficha técnica:
Elenco: 
Tales Coutinho, Lívia Gomes, Bruna Portella e Tairone Vale.
Texto: Rodrigo Portella e Tairone Vale
Direção: Rodrigo Portella

Assistência de direção: Túlio Cássio

Concepção de som e Trilha Original: Lucas Soares
Figurino e Caracterização: Babi Crivellari

Cenografia e desenho de luz: Rodrigo Portella
Direção de movimento: Marco Marinho

Preparação corporal: Túlio Cássio e João Luis Cesário
Orientação Vocal: Leandro Rocha
Cenotécnico: Coréllio Rosa

Operador de som: Luan Vieira

Músicos: Rafael Castro (acordeon), Anderson “Fofão”Guimarães (percussão), Marco Aurélio de Oliveira (trompete), Lucas Soares (violões e guitarra)

Gravação e mixagem: Carlos Henrique Pereira/Estúdio Nave
Produção Executiva: Daiverson Machado

Assistência de Produção: Letícia Barros

Arte Gráfica: Zaqueu Coelho

Fotos: Zaqueu Coelho, Fernanda Rezende, Filipe Matias, Marina Costa (Olho de Peixe), Túlio Cássio

Direção de Produção: Ana Loureiro/Aqui tem Cultura

quarta-feira, 20 de março de 2013

Casar pra quê? (RJ)

Comédia de costumes dirigida por Eri Johnson tem texto
do ator Alessandro Anes
Foto: Marcello Sá
Sem se propor a muito, uma comédia com resultado positivo

“Casar pra quê?”, apesar de ser mais uma entre zilhões de comédias cujo tema é a diferença entre homens e mulheres e cujo formato percorre o casamento, avançando pelos problemas que enfrenta qualquer jovem casal, oferece como ponto de partida da análise a interessante diferença na construção dos personagens. Pedro Paulo (Alessandro Anes) e Ana Lúcia (Michelle Martins) ocupam respectivamente as posições de protagonista e de antagonista, mas dividem alternadamente na forma os lugares de mocinho e de bandido no esquema realista. Dirigido por Eri Johnson, o espetáculo, feito a partir do texto de Anes, está em cartaz no Teatro Leblon, zona sul do Rio de Janeiro. 

Enquanto na forma, o personagem de Pedro Paulo concretiza a figura do bandido: sendo o homem que não ajuda a mulher, aquele que é sem coração, que gosta de sair com os amigos e manter a sua vida de solteiro, o infantil na relação, quem fala mais palavrões e quem grita mais, é possível identificar no conceito o mesmo tipo de peso negativo sobre a personagem de Ana Lúcia. É ela, afinal, quem aprisiona, que se expõe menos, que gosta de dar a última palavra e que tem mais vezes mau humor. Nesse sentido, a função do marido, nessa ficção cênica, parece o de levar o público para dentro do palco, garantindo-lhe divertimento. O da esposa, em contrapartida, é transmitir ao público a tarefa de refletir quando o espetáculo terminar. 

Pedro Paulo e Ana Lúcia se conhecem em um bairro do Rio de Janeiro que é longe do Leblon onde ela está (não se sabe se ela realmente mora lá). Não está clara também a classe social de algum dos personagens, embora saiba-se que nenhum deles use corretamente a língua portuguesa ou tenha viajado de avião antes de se conhecerem. Assim, a identificação com o público é positivamente facilitada, com todos os elementos (cenário, figurino, trilha sonora e iluminação) agindo livremente em favor da comédia, como corretamente exige o gênero. 

Alessandro Anes e Michelle Martins apresentam boas interpretações dentro do que parece que lhes foi proposto pela direção de Johnson. O casal é meritosamente responsável pelo não muito além do que se espera. Propondo-se a pouco, “Casar pra quê?” oferece um saldo positivo a quem foi unicamente para gargalhar, o que é positivo.

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Ficha técnica:

Texto: Alessandro Anes
Direção: Eri Johnson
Elenco: Alessandro Anes e Michelle Martins

Daniel Boaventura Ao Vivo (RJ)

Daniel Boaventura diverte o público mais exigente

Foto: divulgação

Do fraque às calças jeans, dos musicais ao pop: Daniel Boaventura 

Aos moldes de Bibi Ferreira, Claudia Netto e de Gottsha e Alessandra Verney, Daniel Boaventura, em cartaz em “A Família Addams”, faz um show para celebrar a sua carreira e brindar os seus fãs com canções que marcaram época. No palco do Vivo Rio, o ator parece interpretar o Frank Sinatra brasileiro, dando vida a melodias em inglês e em italiano que definem uma cultura musical infelizmente não tão valorizada hoje como já o fora outrora. Começando com um estilo formal, mais voltado para o clássico da música americana, o espetáculo “Daniel Boaventura Ao Vivo” vai se tornando mais popular ao longo do tempo. Do fraque às calças jeans, o cantor contagia o público e enobrece a música brasileira ao se apresentar, mesmo cantando o estrangeiro, como um profissional de primeira grandeza. 

Além do próprio Sinatra, Boaventura traz no repertório standards da música norte-americana, com releituras de sucessos tais como nas vozes de Louie Prima, Frankie Valli, Joe Cocker, Sammy Davis Jr., Elvis Presley, Barry White e de Abba, despertando positivamente a identificação imediata do público. Canções italianas como “Champagne”, “Amore Scusami” e “Mambo Italiano” também estão inclusas para a alegria das famílias que encheram o espaço. 

Lembrado por suas participações em musicais como “Company”, “Vitor ou Vitória”, “A Bela e a Fera”, “Chicago” e “My fair lady”, Daniel Boaventura, ao lado da também atriz e cantora Sara Sarres, interpreta uma canção de “O fantasma da Ópera”, outro de seus grandes musicais no currículo. O resultado coroa com chave de ouro a adultez do Brasil no ramo nos grandes espetáculos. 

Além de grande talento e treinada técnica, Boaventura tem excelente carisma, convocando o público para estar ao seu lado e de sua orquestra no palco. O show é entretenimento da melhor qualidade. Aplausos!

terça-feira, 19 de março de 2013

Também queria te dizer (RJ)

Emílio Orciollo Netto celebra 23 anos de carreira com
texto de Martha Medeiros
Foto: divulgação

Quando a conversa toma o lugar da solidão

Interpretada por Emílio Orciollo Netto, a questão problemática de “Também queria te dizer” é a concepção. Assim como o monólogo interpretado por Ana Beatriz Nogueira, a peça que agora está em cartaz no Centro Cultural Midrash, no bairro Leblon, é uma adaptação para o palco do livro “Tudo o que queria te dizer”, de Martha Medeiros. As duas produções têm direção de Victor Garcia Peralta, mas o conceito das montagens é diferente. Enquanto lá o interlocutor é ausente e o personagem se aproveita do momento de solidão da escrita da carta para deixar seus pensamentos e emoções fluírem, aqui, ao longo das seis cenas, Orciollo Netto “fala” com alguém que está próximo a ele. Mesmo sozinho em cena, há marcas de uma relação proxêmica (proximidades e distâncias de um ator em relação a outro na cena teatral), de forma que os personagens podem agredir e serem agredidos, perguntar e responder com trocas imediatas de sensações. A solidão, que humaniza os personagens na construção de Nogueira, é inexistente no caso de Orciollo ou, ao menos, mais difícil de ser apreendida. 

São seis cartas, todas elas escritas por homens em diferentes situações: um paciente em um hospital, um adolescente arrependido, um artista plástico, um padre já falecido, um profissional que pede demissão e um marido que vai embora (não nessa ordem). O conflito fica claro aos poucos para o público, uma vez que só quem escreve e a quem se dirige a carta sabem qual é o assunto em questão. A plateia, então, que deveria agir apenas como voyer, assistindo a um contexto da qual ela não faz parte, é requisitada como participante do discurso. O monólogo, assim, revela não o ser humano, mas a história que liga duas pessoas ou mais, pois os personagens de Orciollo se dirigem ao público diretamente como interlocutores e não apenas como ouvintes, testemunhas ou como meros comparsas no crime de “se abrir”. 

Emílio Orciollo Netto, dentro desta concepção, está bem. O ator usa de seu corpo e de várias ferramentas acumuladas ao longo de sua carreira (movimentos de olhar, pausas, gestos, tonos musculares, etc) para dialogar. Nesse sentido, suas construções interrogam, julgam, xingam, afirmam, seduzem, declaram decisões, confessam crimes, expõem segredos nunca dantes revelados e, nesse quadro, vem à superfície, na evolução das cartas, menos a pessoa do ator e mais as idiossincrasias de cada personagem. O jogo de pretensões, de quem parece querer mostrar mais os artifícios de que se usa para se transmutar, do que realmente contar uma história, acaba por, infelizmente, esfriar a plateia, talvez, mais disposta à narrativa do que ao narrador. 

A concepção, positivamente nesse caso, também se dá a ver na integração dos demais elementos do espetáculo. Enquanto a peça interpretada por Nogueira usa de um fundo escuro e nada mais, a de Orciollo explora o espaço realista de um dos personagens: uma oficina de trabalho de um artista plástico. O cenário de Miguel Pinto Guimarães, um dos arquitetos mais importantes do país, mostra a sua inteligência quando, não por qualquer motivo, posiciona estrategicamente um catálogo de obras de E. Hopper, um dos pintores realistas norte-americanos conhecidos pelo trato do tema da solidão. Na parede, há a alusão ao quadro expressionista “O Grito”, de E. Munch, deixando claro que os interlocutores não são apenas os próprios, mas os mesmos vistos do ponto de vista dos autores das cartas em suas deformações emocionais. De forma também positiva, a iluminação de Luciano Xavier compõe ambientes enquanto a trilha sonora de Plínio Profeta ratifica situações nesse ambiente realista-expressionista. 

Produzido sem patrocínios para comemorar os 23 anos de carreira artística de Orciollo Netto, “Também queria te dizer”, além de ser um espetáculo interessante, é ponto de partida para uma boa reflexão sobre arte, discurso e sobre narrativa. Sendo, nas palavras do ator, que escreve também, ele próprio, uma carta ao seu público, um presente, acaba por, de fato, merecer a presença do público que deve lhe aplaudir. 

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FICHA TÉCNICA:
Texto: Martha Medeiros
Ator: Emilio Orciollo Netto
Direção: Victor Garcia Peralta
Direção de Produção: Maria Siman
Assistente de direção: Leo Paes Leme
Trilha sonora: Plínio Profeta
Cenário: Miguel Pinto Guimarães
Figurino: Emilio Orciollo Netto e Victor Garcia Peralta
Iluminação: Luciano Xavier
Assessoria de Imprensa: Lu Nabuco Assessoria em Comunicação
Produção executiva: Joana D´Aguiar
Realização: Orciollo Netto Produções e Primeira Página Produções

segunda-feira, 18 de março de 2013

Até o sol nascer (RJ)

Letícia Birkheuer estreia como atriz de teatro
no Solar de Botafogo
Foto: divulgação

Dramaturgo e diretor não se entendem

O mais interessante na análise de “Até o sol nascer” é reparar que, embora tenha sido escrito e dirigido pela mesma pessoa, nota-se no resultado final uma discrepância negativa. O Lucianno Maza que escreveu o texto, em 2007, não parece ser o mesmo Lucianno Maza que dirigiu o espetáculo, agora, em cartaz no Solar de Botafogo. O texto realista foi prejudicado ao receber uma encenação contemporânea: na medida em que o ritmo ficou pesado, as interpretações passaram a ter mais responsabilidades. Em se tratando da estreante Letícia Birkheuer e do pouco experiente Giuliano Candiago, a produção deixa a desejar ainda que tenha alguns méritos. 

Uma modelo decadente, a personagem Glória Heinroth (Birkheuer) chama para o seu flat um michê. No meio da madrugada, John (Candiago) e sua cliente conversam após o sexo (profissional), evidenciando as distâncias e as proximidades entre as duas figuras enquanto esperam o sol nascer. John cobra para ficar, Glória paga para ter companhia. Ele é pobre e tem sonhos de uma vida melhor. Ela é rica e está desiludida da vida. Ambos guardam em si relações paralelas, mas opostas, em relação ao sucesso e ao amor. 

Apesar de estar coberto de clichês e de ter final bastante previsível (inclusive pelo título, que pré-anuncia quando a narrativa terminará), os diálogos do dramaturgo Maza estão bem construídos: há perguntas no lugar de respostas, o jogo é próximo do real além da narrativa, as falas deixam visíveis traços da personalidade dos personagens sem descrições óbvias nem apresentações rasteiras. O problema essencial da narrativa cênica está na encenação. 

O realismo precisa correr solto para ser o que é. No momento em que o público precisa “imaginar” um flat onde há escuridão e ripas brancas (uma delas no centro do palco, atrapalhando a visibilidade do público), uma estante onde há uma passarela, uma capa de revista onde há alvura, garrafas, copos e taças onde há objetos brancos, gasta-se um tempo e uma energia que deveriam estar unicamente dispostas à história. Além disso, a movimentação, tanto a gestual quanto a proxêmica, é marcada demais, composta de partituras quase coreografadas, o que também afasta o leitor do essencial: a narrativa. Utilizando uma metáfora, quanto mais informação houver na “fotografia”, mais pixels haverá e mais tempo ela demorará para fazer download. Dentro desse panorama, o quadro de Maza é pesado e cansativo e, por isso, prejudicial. 

Considerando as relativas inexperiências de Birkeuer e de Candiago, é possível encontrar bons trabalhos de interpretação. O trabalho da atriz carece, sobretudo, de maior estudo de voz que lhe faça despertar para as potencialidades dos diversos níveis de entonação possíveis e para as belezas dos tempos, das pausas, dos silêncios na viabilização de um discurso realista. Candiago, que oferece um resultado mais meritoso que a colega, carece de maior desenvoltura corporal que lhe dê mais segurança e liberdade na movimentação. 

É bastante interessante o trabalho de iluminação de Renato Machado que, apesar de não realista, é coerente com a proposta do diretor, que é o que se analisa aqui. O bom uso dos focos dá movimento  à história que os outros quesitos não fazem. Igualmente positivo é o figurino de Lenny Niemeyer que valoriza Birkeuer e que define Candiago, cada um em seus personagens. 

“Até o sol nascer” tem como principal mérito o de ser uma produção bem intencionada, no sentido de arregimentar os seus elementos de forma coesa, apesar de equivocada. Dramaturgo e diretor têm concepções opostas, o que é prejudicial, mas é possível identificar, em ambos trabalhos, o cuidado no que diz respeito aos detalhes. Dá-se, assim, as boas vindas a quem está começando já com expresso respeito ao ofício teatral. 

*

Ficha Técnica:

Texto e direção: Lucianno Maza
Elenco: Giuliano Candiago e Leticia Birkheuer
Assistente de direção: Caesar Moura
Direção de movimento: Stela Guz
Arquitetura Cênica: Fernando Alexim
Figurino: Lenny Niemeyer
Iluminação: Renato Machado
Trilha sonora: Rodrigo Marçal
Preparação vocal: Jane Celeste
Make-up e fotografia: Fernando Torquatto
Programação Visual: Duddu Rodrigues
Assessoria de imprensa: Kassu Produções
Assistentes de produção: Ailime Cortat e Jenny Mezencio
Produção executiva: Leticia Napole
Direção de produção: Deborah Aguiar
Coordenação de produção: Giuliano Candiago

A Entrevista (SP)

Priscila Fantin e Herson Capri em espetáculo dirigido
por Susana Garcia
Foto: Caio Gallucci

Boa dissertação teatral sobre a verdade

“A Entrevista” surpreende positivamente. A história de um jornalista político (Herson Capri) que é designado para entrevistar uma atriz de novelas (Priscila Fantin) pode não cheirar bem a narizes preconceituosos, corações fechados e a mentes bitoladas. Fazendo votos de que essa seja uma raça em extinção, em cartaz no Teatro das Artes do Shopping da Gávea, eis uma peça interessante, com um roteiro corajoso, bem dirigida, bem interpretada e sobretudo bastante bem produzida (Sandro Chaim). Com direção de Susana Garcia, o enredo oferece possibilidades de aprofundamento a quem não quer ficar apenas na superficialidade do elenco mais conhecido por seus trabalhos na televisão, promovendo um debate interessante acerca das marcas de verdade e de realidade que podem estar propositalmente escondidas quando duas pessoas desconhecidas trocam uma conversa. 

Baseado no filme homônimo dirigido por Theo Van Gogh (1957-2004, bisneto do irmão do famoso pintor) e lançado em 2003, o texto narra o encontro de Pedro Pierre com Mariah. Ele, um cinquentão bem apessoado, é um correspondente de guerra que não é interessado no mundo das celebridades e ela, ainda dentro dos vinte anos, é responsável por 67 pontos no ibope da atual novela do horário nobre da principal emissora do país. Ou seja, enquanto o encontro é uma obrigação para ele, para ela é mero passatempo, não ficando claro, a princípio, o porquê dela, uma verdadeira estrela, aceitar o mau humor dele. É quando, a partir dessas perguntas sem respostas, o público age no sentido de dar sentido para o que está vendo e, disposto, começa a desvelar (tirar os véus) dos acordos discursivos que ambos parecem fazer. 

A disposição vem da boa interpretação de Capri e de Fantin. Ambos trabalhos não oferecem grandes desafios aos intérpretes e é mérito da direção de Garcia não permitir que nenhum dos dois faça além do que lhes é requerido. Trata-se de um drama realista (é excelente encontrar encenadores sem medo do realismo hoje em dia!) e que, por isso, para funcionar, precisa estar com toda a sua estrutura voltada única e exclusivamente para a narração, sem interpretações histriônicas ou cenários/desenhos de luz/trilha sonora ou figurinos que apareçam mais que o necessário. Mariah, a personagem de Fantin, depende, para sobreviver, de ganhar jogos que ela estabelece com seus fãs. Seu ego está, pois, nessas pequenas vitórias diárias. Nesse sentido, o encontro com o jornalista Pedro Pierre é desafiador para ela, porque ele não é seu fã. Diante das contradições que a estrela apresenta naturalmente, o entrevistador encontra-se refletido na busca sedenta por algo que lhe dê sentido para continuar vivendo. Segredos são revelados, uma batalha se estabelece. E o melhor do texto de Holman, brilhantemente traduzido e adaptado por Euclydes Marinho, está em corajosamente anunciar, no final, um vencedor. 

Como já se disse, o cenário (Flávio Graff), o figurino (Kika Lopes), a trilha sonora original (Alexandre Elias) e a iluminação (Paulo César Medeiros) cumprem muito bem os seus papéis, mantendo-se discretos e, com isso, apontando a atenção do espectador para a narrativa, sem desviar o foco. Apenas, em se tratando da relação palco e plateia do Teatro das Artes, o posicionamento de um travelling cenográfico no proscênio prejudica a visão do público em vários momentos. 

Herson Capri, mas sobretudo Priscila Fantin demonstram bom jogo de cena, uso de vários níveis na entonação, na relação proxêmica (relação entre um ator e outro) e na movimentação pelo espaço. Bem articulados, todos os elementos que narram “A Entrevista” constituem o mérito dessa produção participante meritosamente do projeto Vivo EnCena. Fica, até quando é possível, a dúvida sobre o que é verdade e o que não é. Para alguns, a interrogação vai além do espetáculo, depois dos aplausos. Por isso, parabéns!

A família Addams (SP)

Cláudio Botelho assina excelente versão
nacional de espetáculo americano
Foto: divulgação

Imperdível!

 Os americanos sabem fazer musical como ninguém no mundo. (Por sua vez, ninguém ganha do Brasil em chanchadas: “A Revista do Ano”, “As Mimosas da Praça Tiradentes”, “Porta dos Fundos”, “TV Pirata” e várias histórias debochadas de todo e qualquer assunto por mais ou menos sério que ele possa ser.) Uma produção estadunidense, “A Família Addams”, embora tenha sido feita no Brasil, tem como principais assinaturas as de profissionais que são de lá, que vivem e que moram na Broadway (Nova Iorque). Logo, o idioma português e os atores do Brasil não fazem do espetáculo um produto nacional, mas, além de Policarpo Quaresma, quem lá quer saber disso? O que importa mesmo é que, em cartaz no Vivo Rio, está um espetáculo de primeiríssima grandeza para se ver e rever muitas vezes, aplaudindo sua excelência em todos os quesitos, sem deixar nada a desejar a não ser o gostinho de quero mais. 

Cláudio Botelho, responsável pela versão brasileira, da peça cujo texto é de Marshall Brickman e de Rick Elice, música e letras de Andrew Lippa, coreografias originais de Sergio Trujillo e cuja direção original é de Jerry Zaks, Phelim Mcdermott e de Juliam Crouch, tem os seus melhores momentos em “Dancei” e em “Feliz, Triste”, além, claro, dos números de abertura e de encerramento tanto do primeiro como do segundo ato. Botelho comprovadamente entende de musicais como poucos no Brasil, mas nem sempre o material base de que ele parte fornece ao encenador tantas possibilidades de acerto. Aqui, a impressão que se têm é de que se trata de uma versão totalmente original tamanha a naturalidade com que as palavras em português parecem caber na música, nos diálogos e nos movimentos que, no Brasil, foram brilhantemente adaptados pela coreógrafa Fernanda Chamma. O todo é coeso, ágil, engendrado ascendentemente, disposto a não deixar o público “respirar”, a atenção se esvanecer e o ápice se afastar. Efeitos especiais (Gregory Meeh) alimentam a sanha do público em cada nova cena, manipulados com exata perfeição, elegância e, sobretudo, inteligência. Os cenários e figurinos de Mcdermott e de Crouch, auxiliados pelo desenho de luz de Natasha Katz, se movimentam pelo palco com graça, enchendo os olhos, narrando a história e presenteando a audiência com momentos de sublime entretenimento em que se esquece do mundo lá fora e se vibra embevecido pelo mundo ficcional que se descortina na cena musical. 

Daniel Boaventura e Marisa Orth brilham como Gomez e Mortícia Addams, o casal apaixonado que se encontra na iminência do casamento de sua única filha, Wandinha (Laura Lobo). Dando a ver uma construção que abusa da extrema elegância, de expressões delicadas (e raras) e um marcado tom aristocrático, Orth está excelente em sua performance. Boaventura, com voz inigualável, proporciona um Gomez latino: forte, sensual, dramático e fiel. Os olhos quase sempre semicerrados e a embocadura semiaberta valorizam os tons mais graves, sem prejudicar a dicção. O personagem, assim, entre homem e menino, ganha o público com extremo carisma. Positivas são também as participações de Laura Lobo, Gustavo Daneluz (Feioso), Wellington Nogueira (Mal), Beto Sargentelli (Lucas), Rogério Guedes (Tropeço) e Iná de Carvalho/Keila Bueno (Vovó). Mas dois destaques se fazem necessários: Paula Capovilla e Claudio Galvan “roubam” a cena respectivamente como Alice e Fester em excelentes atuações. Galvan mostra-se à vontade, coeso, natural em cena, proporcionando momentos bastantes especiais na encenação como no número “A Lua e Eu”. Capovilla, com linda voz, protagonizando os momentos cômicos, deixa o público se divertir enquanto exibe uma Sra. Beineke enrijecida, mas ainda sensível por sua vez. 

Com um grupo de excelentes bailarinos e bailarinas, cantores e cantoras, em que se acrescentam os músicos dirigidos por Vânia Pajares e regidos por Márcio Telles, “A Família Addams”, depois de meritosa temporada em São Paulo, está infelizmente prestes a encerrar estadia na Cidade Maravilhosa. Quem ainda não desfrutou desse privilégio, é bom que não perca tempo. 

*

Ficha técnica:

Elenco:
Morticia Addams – Marisa Orth
Gomez Addams – Daniel Boaventura
 Tio Fester– Claudio Galvan
Vovó – Iná de Carvalho
Wandinha Addams – Laura Lobo
Feioso Addams – Gustavo Daneluz e Matheus Lustoza
Tropeço – Rogério Guedes
Mal Beineke – Wellington Nogueira
Alice Beineke – Paula Capovilla
Lucas Beineke – Beto Sargentelli

e

Andressa Andreatto, Fabi Bang, Felipe Abrahão, Kauê Braga, Marcelo Vasquez, Marisol Marcondes, Milena Lopes, Ricardo Vieira, Thais Garcia e Will Anderson

PIT COVER
Andreia Vitfer

PIT SINGER
Nick Vila Maior

SWINGS
Dani Calicchio, Fernando Marianno, Keila Bueno e Vandson Paiva

Assistente de Dance Captain – Fernando Marianno
Dance Captain – Thais Garcia