quarta-feira, 28 de maio de 2014

Palavra de mulher (RJ)

Tania Alves, Lucinha Lins e Virgínia Rosa
Foto: João Caldas

Mais uma ótima homenagem aos 70 anos de Chico Buarque

“Palavra de mulher” é uma dissertação musical sobre a mulher a partir de canções de Chico Buarque. O resultado é bastante meritoso. A ausência de história que caracteriza uma narrativa é compensada pela beleza da forma como as músicas são interpretadas por Virgínia Rosa, Tania Alves e por Lucinha Lins, todas elas, pessoalmente, ligadas de alguma forma ao trabalho do compositor. Com texto e direção de Fernando Cardoso, o espetáculo ajuda a celebrar os 70 anos de Chico, sendo mais uma excelente em cartaz no Teatro Maison de France no centro do Rio.

As 26 canções de Chico Buarque escolhidas e ordenadas para participarem de “Palavra de mulher” versam sobre facetas diferentes da mulher que bem podem ser lidas por qualquer ser humano indiferente do gênero. Nesse sentido, o espetáculo, ainda que situe a dramaturgia no universo feminino da antessala de um cabaret, atinge o aspecto íntimo que todos conhecem porque todos o têm. O cenário não é um quarto onde essas mulheres recebem homens, mas um lugar onde elas se encontram consigo próprias antes ou depois dos encontros com o mundo lá fora. Porque todos temos muitos dentro de nós, o fato dessas figuras sem nome pairarem como elementos argumentativos dessa dissertação se apresenta como uma interessante qualidade da produção frente à dramaturgia comum, essa que é geralmente através de personagens e de tramas. Ponto para Fernando Cardoso!

Em determinado momento, Tania Alves e Lucinha Lins contam para o público algo especial sobre suas histórias particulares com a obra de Chico Buarque. O feito é excelente esteticamente por vários motivos. Ao falar em primeira pessoa com a plateia, as intérpretes avançam com coragem a barreira entre o palco e a plateia, em negá-la, tampouco sem apagá-la, mas fazendo essa (boa) relação coexistir bravamente. Em nenhum momento, afinal, pensa-se que alguma das três atrizes é prostituta, apesar desse momento confessional e apesar do cenário e do figurino. Depois, ao assumir-se como um espetáculo que celebra o repertório musical de Chico, a peça “deixa tudo em pratos limpos”, resolvendo sua existência na compreensão do público que foi, no fim das contas, antes de tudo, foi justamente ouvir essas canções tão conhecidas e amadas. De um modo geral, o clima se torna por  isso leve, mas não superficial. “Palavra de mulher” é divertido e emocionante sem felizmente ser tolo.

É vibrante o trabalho de Virgínia Rosa ao lado de Tania Alves e de Lucinha Lins, colocando-se de forma discreta, mas pontual. O trio é equilibrado: há a extrema qualidade vocal de Rosa, a sensualidade de Alves e o carisma de Lins, sem que nenhum aspecto inexista em alguma das três positivamente.

A direção musical de Ogair Júnior, os figurinos de Claudio Tovar e a iluminação de Wagner Freire conversam bem com a direção de movimento de Alex Neoral, fazendo com que o tempo passe com delicadeza e elegância. A produção é simples, mas com visível complexidade principalmente pelo intento. O alcance dos objetivos expressa menos a sua nobreza e mais o mérito dos realizadores.

Chico Barque nunca é demais principalmente quando é bem interpretado como é o caso aqui. Ao lado de “O grande circo místico” e de “Todos os musicais de Chico Barque em 90 minutos”, “Palavra de mulher” é uma das ótimas opções para homenagear um dos nossos maiores artistas.

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FICHA TÉCNICA
Concepção, roteiro e direção geral - Fernando Cardoso
Direção musical - Ogair Júnior
Elenco: Lucinha Lins, Tania Alves e Virginia Rosa
Músicos: João Cristal (piano e acordeão), Robertinho Carvalho (contrabaixo) e Ramon Montagner (bateria e percussão)
Iluminação - Wagner Freire
Figurinos – Claudio Tovar e elenco
Direção de movimento: Alex Neoral
Cenografia - Fernando Cardoso
Direção de produção - Fernando Cardoso e Roberto Monteiro
Assessoria de Imprensa – JSPontes Comunicação– João Pontes e Stella Stephany

Philippine (RJ)

O espetáculo tem direção de João Marcelo Pallottino
Foto: Clayton Leite

Belíssima homenagem à Pina Bausch


“Philippine – uma peça para Pina Bausch” é um dos espetáculos mais interessantes no roteiro cultural de dança no Rio de Janeiro. Ao homenagear a coreógrafa alemã, falecida em 2009, a Hospedaria Cia de Teatro fala menos da pessoa de Pina Bausch e muito mais sobre a sua contribuição para a história da arte felizmente. Com um trabalho delicado e bastante nobre, o espetáculo tem direção de João Marcelo Pallottino e esteve em cartaz na Sala Multiuso do Espaço Sesc Copacabana durante o mês de maio.

Como os concretistas e neoconcretistas, o trabalho de Pina Bausch reage ao figuratismo com uma acusação séria. Para artistas como ela, a arte tem função de existir antes de fazer existir o artista. Assim, antes de fazer ver o artista (ou tornar uma pessoa comum em artista), a arte faz ver a si própria, fechando a sua existência no fato puro e simples da sua existência. João Marcelo Pallottino, em “Philippine”(o título faz referência ao nome de Pina Bausch), interessa-se em impor a forma, independente do conteúdo, cortando o tempo com uma lâmina afiada que rasga o sentido e, por isso, se liberta dele. A peça reproduz menos o trabalho de quem homenageia, brotando a partir dele muito mais. Em um mundo em que muitas coisas simplesmente não fazem sentido, os fatos que acontecem precisam ter seu acontecimento valorizado. Excelente contribuição essa da Hospedaria Cia de Teatro.

Dividido em quatro partes, a primeira e a última são melhores, porque apresentam um resultado mais coeso e menos mecânico. Na abertura, uma televisão, situada no centro do palco, exibe um vídeo em que objetos caem das alturas em uma imagem preto e branca, denunciando a coragem dos realizadores de “Philippine” em não se importar com a hierarquia dos sentidos e em deixar a fruição sem ordem aparente. Formalmente, o texto se abre em regime colaborativo com o conteúdo: o espatifamento de uma cadeira é primeiro o fim do sentido "cadeira" e depois o fim do objeto em si. Investir no claro e no escuro, preferir o preto e o branco em uma imagem aparentemente bidimensional são opções que proporcionam um jogo com o espectador de forma a fazê-lo a refletir sobre as diferenças entre a arte e o teatro-dança (ou a dança-teatro). Diferente de todas as artes, a arte cênica, por ser irreprodutível, é uma celebração do momento único que nunca se repete. “Philippine”, como a obra de Pina Bausch, trata bem desse lugar abismal entre o momento e o próximo segundo.

Ana Amélia Vieira, Evandro Manchini, Flávio Pardal, Leandro Fernandes, Ricardo Grings e Symone Strobel se dividem em intérpretes-dançarinos que contribuem tornando objetos em objetos cênicos com suas presenças. O resultado é uma equação equilibrada de formas, cores e de sentidos que conduz a um jogo de sensações tão vital quanto a vida da qual a peça é metáfora.

Mais uma vez o trabalho de sonorização de Daniel Belquer faz a diferença na construção de um excelente projeto. Em “Philippine”, a imagem e o som têm importância tão grande quanto as interpretações como já foi dito, mas o resultado só é equilibradamente positivo porque, assim como as atuações, cada detalhe do som, incluindo a qualidade da recepção, foi pensado e bem realizado. Nisso, há que se elogiar igualmente a iluminação de Ricardo Grings e de Gleydson Lopes, a cenografia de Leo Bungarten (Folguedo Produções) e a trilha sonora da Caeso.

O melhor de “Philippine” é o fato de que não é necessário conhecer Pina Bausch para gostar da peça ou mesmo bem fruí-la. Dentro do ideário da homenageada, a obra existe independente de todo mundo em sua volta, sendo ela própria um mundo paralelo. Parabéns.

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Ficha técnica:
Direção: João Marcelo Pallottino
Criação e Concepção : Hospedaria Cia de Teatro
Elenco: Ana Amélia Vieira, Evandro Manchini, Flávio Pardal, Leandro Fernandes, Ricardo Grings, Symone Strobel
Cenografia : Leo Bungarten/ Folguedo Produções
Iluminação: Ricardo Grings e Gleydson Lopes
Figurino: Paulo Barbosa
Projeto Gráfico: Leandro Fernandes
Fotografia: Clayton Leite
Trilha Sonora: Caeso
Edição de vídeo: Evandro Manchini
Consultoria e Projeto Sonoro: Daniel Belquer
Técnico de Som/ Design : Caeso
Operador de Luz: Gleydson Lopes
Operador de Som: Val Elias
Direção de Montagem/ Palco: Flávio Pardal
Assessoria de imprensa: Lu Nabuco Assessoria em Comunicação
Direção de Produção: Isabel Themudo
Realização: Hospedaria Cia de Teatro

sábado, 17 de maio de 2014

Pesadelo (RJ)

Maria Assunção em cena
Foto: divulgação

Ótimo espetáculo da Cia. Sala Escura

“Pesadelo” é o melhor espetáculo assinado pela Cia. Sala Escura de Teatro e por Iuri Kruschewsky. Os diálogos são tão ágeis quanto as cenas e sua evolução. As músicas entram como um elemento que contribui e não apenas redunda, a escassez dos objetos é declaradamente um efeito simbólico, as interpretações são bastante pontuais e positivas no conjunto e nas partes. Em cartaz no Centro Cultural Municipal Sergio Porto, no Humaitá, a peça encerra a Trilogia dos Sonhos, também composta pelos espetáculos “É culpa da vida que sonhei ou dos sonhos que vivi” e “Memória inventada no sonho de alguém”.

A história começa quando um homem (Bruno Quaresma) se vê preso dentro do estranho apartamento de Marta (Maria Assunção), cuja cabeça é a única parte do corpo que vemos. A princípio, eles foram colegas de classe quando ainda crianças, mas ele sempre a ignorou. Um espécie de jogo bergmaniano começa entre os dois: por mais que ele tente, parece não haver porta de saída dessa casa onde tudo é escuro. Aos poucos, outros personagens vão ficando mais claros ao espectador que conhece a história a partir do protagonista. Aparecem uma prima e a mãe que faleceram na infância, o cachorro perdido há muitos anos e, por fim, a ex-namorada ainda viva. A agilidade dos diálogos e das cenas constróem a sensação de flashes de memória através dos quais pode-se descobrir os antecedentes dramáticos da situação inicial de “Pesadelo”. Em foco, nem o Homem, nem seus conhecidos, mas momentos relevantes, reais sou não, na relação entre eles. De uma forma sutil e inteligente, a narrativa se descoloca de Marta para os outros personagens para, enfim, chegar ao protagonista. O final é excelente tanto do ponto de vista da dramaturgia literária quanto da cênica.

A qualidade do conjunto de interpretações revela os valores da direção por construir uma estrutura que é firme no delineamento de cada personagem, mas também no todo das coreografias, das trocas de cenas, da viabilização dos quadros. No entanto, o destaque para Bruno Quaresma e para Maria Assunção é inevitável. Marta é apresentada com excelente dicção, ritmo e pausas que são ainda mais elogiáveis considerando o fato de que só vemos a intérprete do pescoço para cima. Por outro lado, o protagonista surge com vibrante agilidade, bela e afinada voz nos números musicais, intenções claras e riqueza de detalhes tanto nas cenas solo quanto nas contracenas.

O espetáculo se apresenta a partir de um quadro estético econômico. São poucos os objetos de cena e isso garante as entradas e as saídas rápidas e a boa evolução da narrativa. A preferência natural pelo preto com poucos detalhes em vermelho, no cenário de Flávio Graff e nos figurinos de Elisa Faulhaber, informa ao espectador que seu lugar é nos diálogos e não nos elementos plásticos. O desenho de luz de João Gioia e de Ana Luzia de Simoni garante fluidez, versatilidade e beleza, ilustrando bem os flashes de memória de que fala o texto na ordem do conteúdo. A trilha sonora interpretada ao vivo pelos músicos Daniel Pimenta, Filipe Oliveira, João Medeiros e Pedro Nêgo tem  números rápidos que comentam as cenas, sugerem novos pontos de vista, mas, como tudo, se esvaem naturalmente, ratificando as marcas de coesão e de coerência da peça como um todo bem articulado.

Iuri Kruschewsky se estabelece como autor e como encenador com “Pesadelo” de forma vigorosa e cheia de méritos. A "Trilogia dos Sonhos" termina nessa produção, tratando da consciência de forma mais efetiva do que os demais espetáculos falaram do devaneio, das memórias e do sonho propriamente dito. Vale ver como os pequenos detalhes do texto dramatúrgico e cênico estão imanentes e podem vir à luz se o espectador quiser assim como os mais essenciais. Aplausos.

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Ficha técnica:
Texto e direção: Iuri Kruschewsky
Elenco: Ana Beatriz Macedo, Ariella Braz, Breno Augusto Guimarães, Bruno Quaresma, Maria Assunção, Marianna Pastori, Nayana Carvalho, Patrícia Elizardo e Rodrigo Turazzi
Músicos em Cena: Daniel Pimenta, Filipe Oliveira, João Medeiros e Pedro Nêgo
Direção de Produção: João Braune – Fomenta Produções
Direção Musical: João Medeiros e Pedro Nêgo
Direção de Movimento: Lavínia Bizzotto
Cenário: Flávio Graff
Figurino: Elisa Faulhaber
Iluminação: João Gioia e Ana Luzia de Simoni
Assistente de Cenário: Bruno Lopes
Assistente de Figurino: Anouk Zee Pelino e Mario Surcan
Produção Executiva: Carolina Goulart e Matheus Marques – Fomenta Produções
Efeitos Especiais: Nurder Efeitos EspeciaisCenotécnicos: Humberto Silva e Humberto Oliveira Jr
Programação Visual: Agência EGX
Assessoria de Imprensa: André Gomes - Smart Mídia Comunicação e Assessoria
Realização: Sala Escura de Teatro

sábado, 10 de maio de 2014

Rent (RJ)

Foto: divulgação

Deixa a desejar

“Rent”, produção da CAL e do Mergulho no Musical, é uma realização com poucos méritos infelizmente. Em 1996, na Broadway, o espetáculo veio tirar um atraso de oito anos (desde “O fantasma da ópera”, em 1988) sem um grande musical, marcando uma volta do gênero ao realismo como com “A chorus line”, em 1975. Dirigido por Menelick de Carvalho, a peça original de Jonathan Larson (1960-1996, ele morreu no dia da estreia) não é uma “historinha”, mas uma dissertação sobre o tempo que, democrático, passa para todos indiferente da realidade de cada um. Há a lésbica, o gay e o transexual. O negro que fica com branco, aqueles que se drogam, quem não paga o aluguel, quem não sabe o que fazer, quem faz coisas demais e quem está com AIDS, doença que, na época, significava uma sentença clara de morte física, mas também social. A versão atual, em cartaz na Casa de Artes Laranjeiras, pasteuriza a situação dramática e, infelizmente, faz de “Rent” um tipo de melodrama juvenil monótono. As interpretações de Caio Loki (Angel), Allan Chang (Tom), de Carolina Botelho (Mimi) e, principalmente, de Gabi Porto (Maureen) se destacam positivamente.

Há muitos problemas na dramaturgia cênica, isto é, na forma como o texto chega para quem só assiste a essa versão. Narrada pelo jovem cineasta Mark, a história começa quando, numa noite fria de inverno, os mais pobres sofrem a falta de calefação. Dois dos vários personagens se encontram no drible desse problema: Mimi (Carolina Botelho) vai até a casa de Roger (Ugo Cappelli), seu vizinho, atrás de um fósforo. Os dois se apaixonam e começam a namorar. Citando um exemplo que justifique a falha apontada na direção, quem sai da apresentação atual de “Rent” acha que Roger e Mimi terminam o namoro, alguns meses depois, pelo ciúmes dele em relação a ela com Coffin (André Guedes), o dono do apartamento onde mora. No original, Mimi se afasta de Roger porque, diferente dele, não consegue cuidar de si própria e precisa de alguém que cuide dela. Os dois são soropositivos, mas Mimi não toma AZT nas horas certas e permanece fazendo uso de drogas. Como um gato, ela se afasta de quem ama para morrer. E esse contexto narrativo é muito mais profundo do que as várias DRs que a versão atual expressa.

Outro exemplo: em uma grande cena, Maureen (Gabi Porto), ex-namorada de Mark (Augusto Volcato) e futura namorada de Joanne (Nathalia Serra), está drogada. Seu discurso truncado, cheio de visões fantásticas e repleto de elipses, se diferencia do ritmo narrativo corrente até então, marcando os efeitos da cocaína. Na versão atual, os diversos problemas de som - nem todos os atores têm microfone próprio - e principalmente de dicção fazem com que essa cena não se destaque, mas se misture com as demais, pois nenhum diálogo foi suficientemente claro até o momento. Sem qualquer visão moralista, “Rent” se destacou na história do musical americano por inclusive pautar o uso da droga ilícita como o da legalmente aceita: um lugar de encontro. Sem realmente pontuar a complexidade dos personagens e os conflitos que vêm à tona a partir de suas relações uns com os outros, Menelick de Carvalho perdeu a oportunidade de fazer desse espetáculo algo mais que uma disposição do elenco para o canto.

Além dos destaques, as intepretações são inexpressivas. Ugo Capelli (Roger), Augusto Volcato (Mark), Nathalia Serra (Joanne) e André Guedes (Coffin) deixam ver apenas uma superfície muito rasa dos seus personagens, tornando boa parte de seus números aparentemente mais longos do que belos. Caio Loki (Angel) tem brilhante aparição como Angel, fazendo boa dupla com a carismática e correta interpretação de Tom por Allan Chang. Carolina Botelho merece ter esforço reconhecido em contracenar, mas os melhores momentos de “Rent” são de Gabi Porto em sua versão de Maureen. Cheia de força, com belíssima voz, vibrante agilidade corporal, mas principalmente visível capacidade de prender a atenção do público, a atriz justifica uma excelente atuação.

A produção de “Rent” sofre com as limitações do espaço, mas deixa de tirar bom proveito disso. Quando Larson escreveu um musical sem o elemento da extravaganza (a grandiosidade de cenários que sobem e descem e as coreografias complicadas do jazz), ele estava querendo aproximar a peça do público, sim, mas na ordem da estética (junto dos temas pautados!) e não apenas na relação palco e plateia. Ao espalhar as cenas pelo espaço cênico, colocando a plateia no centro, Menelick exige que apenas uma cena seja vista por vez - porque ou se olha para um lado, ou se olha para o outro. No original, o acontecimento paralelo de várias cenas constrói a sensação de ecossistema, própria do realismo naturalismo ao qual o texto seria lido com muito mais força.

De todos os elementos, o figurino de Maria Penna Firme é o pior usado. A história começa no natal de 1987 e vai até um ano depois em Nova Iorque, nos Estados Unidos, porque é uma peça sobre o tempo (Não é à toa que sua canção-tema é “Seasons of love”). Na versão de Firme, fica muito difícil acompanhar os meses olhando para as roupas dos personagens. Mark usa touca de lã e camisa de flanela tanto no período mais frio do inverno como no mais quente verão americano. Roger usa camiseta em dezembro, casaco em agosto e, depois, camiseta novamente no fim e Tom faz algo próximo disso. Entre as personagens femininas e o coro, a confusão é ainda maior.

É notório que “Rent” é uma produção estudantil, sem fins lucrativos e provavelmente com inúmeros gastos para os realizadores, cujo mérito em fazer deve também ser elogiado, além das interpretações já destacadas de Loki, Chang, Botelho e de Porto. A questão, no entanto, é que, depois dos excelentes “The book of Mormon” e de “A chorus line”, esse último assinado pelo mesmo Menelick de Carvalho, espera-se muito, muito mais.

domingo, 4 de maio de 2014

O grande circo místico (RJ)

Fernando Eiras é o Adminstrador
Foto: divulgação
A melhor de João Fonseca

“O grande circo místico” é a melhor homenagem aos 50 anos do Golpe Militar. A partir do poema de Jorge de Lima, de 1938, e a partir do ballet do Teatro Guaíra, de 1982, o espetáculo atual, ainda com músicas de Edu Lobo e de Chico Buarque, tem texto de Newton Moreno e de Alessandro Toller que, de forma excelente, estabelece firme conversa com o contexto atual. Com ótimos trabalhos de interpretação de Fernando Eiras, Letícia Colin, Gabriel Stuaffer, Ana Baird, Thadeu Torres e de Reiner Tenente, a peça tem grande destaque no cenário de Nello Marrese e no figurino de Carol Lobato. A direção musical de Ernani Maletta é outro ponto alto desse novo espetáculo que já nasce um clássico e está em cartaz no Theatro Net Rio.

Jorge de Lima escreveu o poema em meio à ditadura do Estado Novo. Edu Lobo e Chico Buarque são compositores expoentes da contracultura no Brasil e entregaram a trilha para o Ballet Guaíra, de Curitiba, no fim da ditadura militar, no início dos anos 80. Agora, o país se une para conhecer e celebrar a memória do Golpe de 64, sem dúvida, um dos momentos mais terríveis de nossa história. Assim, o primeiro mérito de “O grande circo místico” é a dramaturgia de Moreno e de Toller que tão bem une as pontas das gêneses diversas desse grande tesouro da cultura nacional. A peça se passa em uma região que se parece com a Itália sem qualquer referência aos italianismos telenovelescos felizmente. E a história de amor do médico Frederico e da bailarina Beatriz acontece antes, durante e depois de algo que se parece com a Segunda Guerra. Em pleno ano de 2014, não é mais necessário usar eufemismos para tratar de assuntos políticos como se usava nos anos 60 e 70. Por isso, sabe-se que usá-los é um gesto puramente estético. Nesse sentido, o contexto narrativo de “O grande circo místico”, ao ser alternativo, é altamente poético e bastante positivo. Quando é declarada a Guerra, Frederico é obrigado a se alistar. No circo, poucos sobram para fazer o show continuar, menos ainda para assistir. Beatriz leva para os anos seguintes um filho no ventre e a certeza de que morreu o seu amor. Não sabe ela que, dou outro lado da batalha, o seu Frederico ainda está vivo.

João Fonseca tem aqui seu o melhor trabalho desde “Tim Maia” e desde “A gota d’água”. Com habilidade e segurança, o primeiro ato é alongado, mais contemplativo, mais lírico, deixando para o segundo as reviravoltas da ação, outro mérito também da dramaturgia. O alargamento do ritmo, próprio do teatro musical, atende às expectativas da plateia (desse gênero) que quer ouvir as canções, mais do que apenas entender a história. Com calma e manifesta experiência, João Fonseca, assistido por Paula Sandroni, oferece os melhores momentos de forma delicada e parcimoniosa, sustentando a ação. As coreografias de Tania Nardini têm o mérito de aparecer discretamente, não concorrendo nem com as músicas, nem com o cenário e com o figurino e, por isso, aparecendo positivamente na medida.

De um modo geral, são poucos os intérpretes que realmente deixam ver a dor em seus personagens, o que pode expressar força. O Administrador (Fernando Eiras) torna a loucura a sua válvula de escape, enquanto, de forma bem discreta, identificamos uma curva dramática em Ana Baird (Mulher Barbada), em Isabel Lobo (Charlote), em Paula Flaibann (Lily Braun) e principalmente em Reiner Tenente (Clown), cujas interpretações conduzem efetivamente a história, principalmente no segundo ato. Gabriel Sauffer e sobretudo Letícia Colin conquistam o público na viabilização dos protagonistas, oferecendo ótimas participações. No elenco de apoio, há um destaque para Felipe Habib e principalmente para Thadeu Torres.

Nello Marrese e Carol Lobato oferecem um trabalho de extrema beleza em “O grande circo místico”. O picadeiro grandioso da abertura dá lugar para trincheiras, enfermarias, cabaret, praças e para outro circo, utilizando elementos mínimos, mas fortes principalmente pela minúcia e delicadeza dos detalhes. No todo, a narrativa da peça é uma farsa, isto é, o espetáculo conta uma história para contar outra. Dentro desse mote, o romantismo que reforça a superfície para dar importância para a profundidade é o tom que pauta a concepção e resulta em acabamento tão excelente. Claro, participam desses méritos, o visagismo de Leopoldo Pacheco e a iluminação de Luiz Paulo Nenen. O maestro João Bittencourt assina os arranjos na versão para teatro desse que é considerados os melhores discos da história da música brasileira pela Folha de São Paulo.

Nesse tipo de história em que uma guerra atravessa a vida dos personagens, eles nada podem fazer a não ser esperar que ela termine. O médico Frederico cuida de seus pacientes, o Administrador vive com o olhar perdido, a bailarina Beatriz dá amparo para os colegas que lhe restaram. Do tarot que abre a narrativa, passando pelo O Senhor dos Passos tatuado no corpo, chegando na bela poesia dos mortos de nariz branco, “O grande circo místico” pode falar também daqueles que se foram esperando a dureza da vida diminuir. Nesse ponto, em cuja dor todos os homens se encontram, essa produção de Maria Siman se apresenta na hora certa, mas também no lugar certo. Frederico Reder, administrador do Theatro Net Rio, já foi (e ainda é) dono do Circo Reder. Como o picadeiro, a vida é redonda. Aplausos!

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Ficha técnica:
Músicas de Edu Lobo & Chico Buarque
Texto: Newton Moreno e Alessandro Toller
Direção: João Fonseca
Direção Musical: Ernani Maletta
Coreografia: Tania Nardini
Produção: Primeira Página Produções

Com Fernando Eiras, Letícia Colin, Gabriel Stauffer, Isabel Lobo, Ana Baird, Reiner Tenente, Paula Flaibann, Marcelo Nogueira, Thadeu Torres, Felipe Habib, Leonardo Senna, Juliana Medella, Leo Abel, Natasha Jascalevich, Luciana Pandolfo, Renan Mattos e Douglas Ramalho

Iluminação: Luiz Paulo Nenen
Figurinos: Carol Lobato
Cenários: Nello Marrese
Direção de Movimento Circense: Leonardo Senna
Diretora Assistente: Paula Sandroni
Desenho de Som: Fernando Lauria
Direção de produção: Maria Siman
Produção Executiva: Luciano Marcelo e Bruna Ayres
Gerente de projetos: Paula Salles
Produtora Associada: Isabel Lobo
Realização: Primeira Página Produções Culturais

O homem da cabeça de papelão (RJ)

Cleiton Rasga interpreta Antenor
Foto: divulgação

Problemas na adaptação

“O homem da cabeça de papelão”, história escrita a partir do conto de João do Rio, tem falhas na adaptação e na direção de João Batista que prejudicam a narrativa. O protagonista Antenor é um homem que, desde criança, tem problemas porque só sabe dizer a verdade. Um dia, cansado de sofrer, ele vai a um relojoeiro e resolve deixar lá a sua cabeça “desregulada”. Em troca, ganha uma de papelão para ser usada durante o conserto da original. Essa cabeça de papelão, porém, revoluciona a vida de Antenor, que passa a ter dúvidas se voltará ou não para buscar a primeira. O conto, assim, situa a história em um realismo fantástico que é essencial para a construção da poesia. Na adaptação, o encontro de Antenor com o Relojoeiro se dá de forma a não ressaltar essas diferenças, antecipando uma profundidade prejudicialmente. Além disso, na direção, as cenas são paradas, longas, expositivas, com um ritmo bastante monótono. A peça integrou a programação do ocupação “Veja a Cena, Ouça a Canção”, do Teatro Dulcina, na Cinelândia, Rio de Janeiro.

Antenor é um personagem que é diferente de todos os demais pela cabeça que tem. Ele só passa a ser próximo aos demais quando assume uma cabeça de papelão emergencialmente. Na versão de João Batista, é apenas conceitualmente que Antenor se difere, pois, na cena, ele está teatralmente igual aos demais. Sai, assim, fora dessa concepção de adaptação o expressionismo da estética da encenação e o realismo fantástico do texto, empobrecendo a obra de João do Rio. Quando a peça revela as proximidades entre Antenor e os demais personagens, deixa de considerar a função do público em fruir a história contada.

Com exceção de Cleiton Rasga e de Sônia Praça (a Mãe), todos os atores empregam uma força dramática dispendiosa. Os tipos criados levam a peça para outro lugar estético, um terceiro, que não encontra coerência nem em si próprio. Praça e Rasga, com alguns momentos de exceção, sustentam um tom mais realista que seria positivo fosse isso uma marca. Nesse sentido, é difícil identificar uma unidade no trabalho de interpretação que possa ser parâmetro firme para qualquer julgamento.

Mauro Leite, assim como a iluminação de Renato Machado, ajuda a criar o expressionismo nos tons dos figurinos e nos desenhos com múltiplos focos, mas inclui Antenor dentro do grupo dos demais, confirmando os problemas da direção. Doris Rollemberg cria um fundo composto de caixas de papelão que meramente ilustra a história e não diz propriamente a que veio. A trilha sonora de Marcelo Alonso Neves é bem interpretada, mas não auxilia no ritmo da narrativa que se torna, nas canções, ainda mais lento.

“O homem da cabeça de papelão”, cujo texto já é um clássico, segue sendo atual devido às constantes notícias de corrupção na política nacional. Nesse espetáculo da Cia. Dramática de Comédia, João do Rio (1881-1921) continua sendo o ponto mais positivo.

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FICHA TÉCNICA:
O HOMEM DA CABEÇA DE PAPELÃO de João do Rio
Direção e adaptação: João Batista
Elenco: Cleiton Rasga, Dudu Salinas, Giselda Mauler, Julia Deccache, Leonardo Miranda, Péricles Amim, Sonia Praça
Cenografia: Doris Rollemberg
Figurinos: Mauro Leite
Iluminação: Renato Machado
Músicas e Direção Musical: Marcelo Alonso Neves
Preparação Vocal e arranjos vocais: Paula Leal

"Mania de explicação" (RJ)

Luana Piovani é Isabel,
a protagonista da história de Adriana Falcão
Foto: Nana Moraes

O banho de cor de Gabriel Villela

“Mania de explicação” é um musical infantil sobre uma menina que gosta de saber o significado das palavras. A partir do livro homônimo de Adriana Falcão, a peça tem dramaturgia assinada também por Luiz Estelitta Lins, direção por Gabriel Villela e direção musical por Ernani Maletta. Além de Luana Piovani no papel de Isabel, a protagonista, no elenco, estão Pablo Ascoli (Vento) e Janaína Azevedo (Árvore) em brilhantes participações. Vale a pena também destacar o colorido intensivo do cenário e do figurino de Villela e, principalmente, a forma como a peça consegue se relacionar bem com as diversas idades. As canções interpretadas ao vivo são de Raul Seixas.

Na versão para teatro de “Mania de explicação”, a história fica em segundo plano. Ou seja, não há fatos, perseguições, cenas de ação que sejam claras ao público infantil. O que poderia ser um convite perigoso à monotonia e ao desinteresse se torna, nas mãos de Villela, um jogo intrigante de cores, de formas e de texturas. O cenário parado do quarto de Isabel é preenchido por inclusões discretas, mas interessantes: portas que se abrem, uma janela por onde entra uma Lagarta (Letícia Medella), uma cama que é também ponte para um mundo de imaginação. Assim, a direção de Gabriel Villela prende a atenção das crianças com um banho de cor que se renova cada vez mais forte. 

Quanto aos adultos, a força de “Mania de explicação” está na beleza das vozes e nas interpretações das canções de Raul Seixas. Diogo Almeida (Fonte), Letícia Medella (Lagarta), Felipe Brum (Centauro), mas principalmente Pablo Ascoli e Janaína Azevedo têm solos e participações excelentes, oferecendo bom equilíbrio entre lirismo e técnica, entre harmonia e particularidade. Luana Piovani emprega na interpretação da protagonista seu carisma, que é vasto, conduzindo o público através dos quadros com habilidade e segurança. No todo, o elenco apresenta trabalho positivo na difícil tarefa de lidar, ao mesmo tempo, com público infantil de Adriana Falcão e adulto de Raul Seixas, atendendo diferentemente a cada um deles, mas igualmente bem. 

A curiosidade sobre o significado das palavras e a possível desolação frente à preguica comum das pessoas em pensar fazem de Isabel um personagem único que se ocupa de si na solidão do seu quarto. “Mania de explicação”, cheio de doçura, pode ser um espetáculo sobre descobrir a beleza que é aprender a fazer-se boa companhia e ser “uma metamorfose ambulante”. A peça está em cartaz no Teatro Tom Jobim do Jardim Botânico, na Gávea. 

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FICHA TÉCNICA
Autor: Adriana Falcão e Luiz Estelitta Lins
Direção, Figurino e Cenografia: Gabriel Villela
Elenco: Luana Piovani, Felipe Brum, Janaina Azevedo, Pablo Ascoli, Letícia Medella e Diogo Almeida
Personagens: Isabel (Luana), Jorge (Felipe), Centauro (Felipe), Mãe de Isabel (Janaína), Pai de Isabel (Pablo), Guarda-Chuva (Pablo), Fonte (Diogo), Árvore (Janaína), Laurinda (Diogo), Lagarta (Letícia), Terra (Letícia), Borboleta (Letícia) e Vento (Pablo).
Design de luz: Paulo Cesar Medeiros
Direção Musical: Ernani Maletta
Direção de Movimento: Kika Freire
Preparação Vocal: Babaya Moraes
Cenotécnico: Mais Cenografia
Assistente De Direção: Ivan Andrade
Adereço de figurino: José Rosa
Adereços Cenário e Figurino: Shicó do Mamulengo
Costureira: Rosângela De Oliveira
Bordadeira: Giovana Vilela
Design gráfico: Fabrício Sacramento
Gravação: Making Off: Gustavo Camarão
Execução Trilha Sonora: Rafael Langoni
Fotos material gráfico: Nana Moraes
Visagismo: André Vital
Assessoria de imprensa: Daniella Cavalcanti
Dir. de Cena/Palco e Prod. Ensaios: Aline Rapadura
Contrarregras: Edilson Risoleta e João Paulo da Mata
Operador de Luz: José de Alcântara
Operador de Som: Fernando Cunha
Consultoria Jurídica: Francis Piovani
Assistente Luana Piovani: Monique Castilho
Produção executiva: Felipe Mussel
Coor. de Produção: Fernando Duarte
Administração Financeira: Karime Khawaja
Direção de Produção: Cássia Vilasbôas
Produção: NOVE Produções Culturais
Realização: Luana Piovani Produções Artísticas
Patrocínio: Itaú e Porto Seguro
Co-patrocínio: Volvo e Bauducco
Transportadora oficial: Gol

quinta-feira, 1 de maio de 2014

O dia em que Sam morreu (RJ)

"O dia em que Sam morreu" é o novo espetáculo
do Armazém Companhia de Teatro
Foto: divulgação

Um espetáculo sobre a ética

“O dia em que Sam morreu” tem o mérito de falar sobre ética sem ser um espetáculo moralista. Ao trazer à baila o assunto, sem se posicionar efetivamente, a nova produção do Armazém Companhia de Teatro sugere que a discussão deva acontecer na plateia, entre o público, cumprindo assim uma função que é paralela e melhor que o teatro ideológico já fora de moda. Contada de forma não linear, a narrativa escrita por Maurício Arruda Mendonça e por Paulo de Moraes se passa quase que inteiramente em um hospital. Da equipe médica frente a um paciente na mesa de cirurgia às relações pessoais desses personagens, tudo é oportunidade para vê-los na sanha pelo poder. Em cartaz no Espaço Armazém, da Fundição Progresso na Lapa, eis aí uma peça que mostra um olhar pessimista sobre a sociedade, mas não menos valoroso.

O cirurgião Benjamin (Otto Jr.) quer uma colocação de chefia no hospital. O Dr. Arthur (Ricardo Martins) quer antecipar a chamada para transplante de coração para a sua esposa, a juíza Samantha (Patrícia Selonk), que, por sua vez, quer o novo coração para continuar vivendo. Sophia (Lisa Eiras) quer o tratamento para o seu pai, Samir (Marcos Martins), que sofre de Alzheimer, e que, um dia, quis viver a sua vida com o circo. Samuel ( Jopa Moraes, em sua estreia como ator) quer mudar o mundo e livrá-lo da corrupção e da desonestidade. Ou seja, sejam lá quais forem os motivos que levam esses personagens a fazerem algo de errado em prol dos próprios interesses, e sejam lá os momentos em que esses interesses ficam claros para o público, em “O dia em que Sam morreu”, todos estão corrompidos. O pai abandona a filha, o doutor é conivente com os erros do chefe, a mulher faz favores sexuais, a outra faz “vista-grossa” para um privilégio, e, assim, do cirurgião que conscientemente erra a operação de seu próprio chefe ao garoto que, num estado de loucura, invade o hospital com uma arma, todos movimentam a reflexão sobre a ética.

As interpretações são vibrantes em conjunto e em individualmente, porque são cheias de marcas que aproximam a ficção do real além da narrativa. Em outras palavras, os personagens se utilizam bem da forma física dos atores de jeito que o resultado não é só um efeito de teatralidade, mas um mérito de casting também. Para citar um exemplo, a cena em que Samual invade o hospital com uma arma, além de renovar a discussão sobre ética que a peça propõe, causa enternecimento diante da ingenuidade do personagem, ainda muito jovem. Essa sensação só tem permissão para acontecer porque o intérprete é realmente alguém com pouca idade, ou seja, não é preciso um esforço do público para aceitar a proposição da peça, mas a narrativa se conta ao natural. O mesmo acontece com Marcos Martins que é um ator mais experiente. Assim, o realismo é um gênero hoje mais difícil de ser viabilizado porque, diferente do século XIX, ele concorre agora com vários outros gêneros trazidos pelo século XX. O neorrealismo de “O dia em que Sam morreu” só é possível pela forma potente com que os signos, incluindo aqueles ligados à interpretação, estão articulados.

Um dos grandes méritos estéticos da peça são o cenário de Carla Berri e de Paulo de Moraes e a trilha sonora interpretada ao vivo por Ricco Viana. De um lado, temos uma situação vazada que oxigena a narrativa sem desrespeitar a hierarquia do essencial em termos de ilustração, de outro temos uma sonorizaçãoo que valoriza a história, mas também parece convocar o espectador à reflexão.

“Sam”, do título, pode ser Samantha, Samir e Samuel e também pode ser os três. O gesto, desde aí, indica à chamada ao pensamento, à tomada de um ponto de vista, a uma posição no que diz respeito à ética, palavra tão essencial nesse mundo de hoje. Parabéns!

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Ficha Técnica
Direção :: Paulo de Moraes
Dramaturgia :: Maurício Arruda Mendonça e Paulo de Moraes
Elenco :: Jopa Moraes, Lisa Eiras, Marcos Martins, Otto Jr., Patrícia Selonk e Ricardo Martins
Iluminação :: Maneco Quinderé
Cenografia :: Paulo de Moraes e Carla Berri
Figurinos :: Rita Murtinho
Direção Musical :: Ricco Viana
Cartaz: Jopa Moraes
Material Gráfico: Jopa Moraes e João Gabriel Monteiro
Produção de vídeos :: José Luiz Jr., João Gabriel Monteiro e Ricco Viana
Assistente de Direção :: José Luiz Jr
Assistente de Iluminação :: Felício Mafra
Assistente de Cenografia :: Rodrigo
Assistente de Figurinos :: Rafaela Rocha
Assistente de Produção :: Iza Lanza
Técnico de Montagem :: Regivaldo Moraes
Preparação Corporal :: Fred Paredes e Rafael Barcellos
Preparação Vocal :: Jane Celeste Guberfain
Produção Executiva :: Flávia Menezes
Produção: Armazém Companhia de Teatro

Garatuja (RJ)

Andréa Dantas é Zefa
Foto: divulgação

Comercial

“Garatuja” é um monólogo cômico que trata do dia a dia de Zefa, uma camareira que também trabalha em outras atividades para sobreviver. Interpretado por Andrea Dantas, a personagem foi abandonada pelo marido Jorge que a trocou pela melhor amiga de Zefa. Enquanto enrola os doces que faz por encomenda, fala via Skype com amigos, lê e-mails e atende o telefone, ela reflete sobre a vida, lembra do casamento e da profissão e preenche o tempo. Com texto escrito por Fernando Duarte, a peça tem o problema de não fazer nem divertir, nem emocionar por vários motivos. Está em cartaz em horário alternativo do Teatro Leblon.

Garatuja é o desenho que as crianças fazem, aquela coleção de rabiscos que nasce de sua incapacidade de coordenar o lápis sobre o papel ou mesmo de representar pictoriamente o que quer devido à tenra idade. O título ilustra bem a história de Zefa, colocando a personagem como alguém que está ainda “no meio do furacão”, tentando entender os últimos acontecimentos de sua vida e se preparar para o futuro. O problema é no como, em termos primeiramente dramatúrgicos, mas depois da ordem da estética, essas informações chegam ao público. Coberto de piadas já conhecidas, frases clichês, situações não articuladas, o texto demora para sugerir uma leitura mais poética da personagem. A inclusão de trechos de textos de Martha Medeiros e de Adriana Falcão também não ajuda a construir um bom objeto de arte, mas deixa claro o tom comercial (e gratuito) da produção infelizmente.

Não é fácil supor que Zefa é uma mulher que está tentando “dar a volta por cima”, porque são muito raros os momentos em que a vemos por baixo. A interpretação de Andrea Dantas não oferece tempo ao espectador para que ele possa identificar a crítica, o embate, o conflito interno da personagem consigo própria. Ao contrário, ao longo da madrugada, Zefa está vestida de sapato alto, pulseiras, colares e faixa no cabelo. Está maquiada e, apesar do péssimo figurino, bela. E, assim, ao final da peça, depois de uma noite de trabalho, ela vai dormir, afastando a história do realismo ao qual outros elementos aparentemente quiseram aproximar. (A direção de fotografia dos vídeos, por exemplo, é suja porque quer realmente parecer um vídeo via Skype.)

Não se entende a concepção de Carol Fonseca para o figurino. Zefa veste, ao longo da peça, uma roupa que a faz parecer um “dálmata” pela oposição de fundo preto e estampa branca ou vice-versa. Para piorar o contexto estético, “Garatuja” tem cenários e adereços que acompanham essa proposta popularesca e superficial na paleta de cores e nas estampas. Nem fazem rir, nem tampouco sugerem alguma reflexão.

Aqui e ali é possível identifica uma vontade, em “Garatuja”, de não parecer mais uma peça sobre relacionamentos e de oferecer algo que seja um pouco mais profundo ao público carioca. Nessa intenção, a proposta é positiva.

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Ficha Técnica:
TEXTO - Fernando Duarte
DIREÇÃO - Beta Leporage
CENÁRIO - Paula Santa Rosa e Rafael Pieri
FIGURINO - Carol Fonseca
PINTURA DE FIGURINO - Cátia Amélia
PROJETO DE LUZ - Renato Machado
TRILHA SONORA - Gabriel Lessa
ASSESSORIA DE IMPRENSA - Kassu Produções
MÍDIA SOCIAL E VIDEO - Chermont BR
DESIGN GRÁFICO - Jaqueline Sampin
FOTOS - Denis Alves
VISAGISMO - Luiz Bellini
VÍDEO - Ana Bolshaw
CAPTAÇÃO DE ÁUDIO - Eduardo Falcão da Rocha
PROJEÇÃO - Antonia Muniz
OPERADOR DE SOM - Gabriel Lessa
OPERADOR DE LUZ - Helio Malvino
COORDENADOR DE PALCO - Cedeli Martinusso
CENOTÉCNICO - Alcino dos Santos
PRÉ-PRODUÇÃO - Luis Fernando Bruno
PRODUÇÃO EXECUTIVA - Jr Fonseca e Juliana Soares
REALIZAÇÃO - Voleio produções

O que acontece quando a coisa acaba (RJ)

Claudia Sardinha e Julia Stockler em cena
Foto: divulgação

Com méritos

“O que acontece quando a coisa acaba” é um drama que conta a história de duas irmãs que se encontram depois de um ano. Uma delas saiu de casa para “ver o mundo” e a outra ficou para cuidar mãe doente. Na primeira cena, a que foi volta para ver como estão as coisas. Interpretado por Claudia Sardinha e por Julia Stockler, que também assinam a dramaturgia, o espetáculo é uma boa oportunidade para ambas atrizes mostrarem seu potencial artístico. A peça está em cartaz no Teatro O Tablado, na Lagoa. 

O roteiro é ingênuo, o que não necessariamente é ruim. Alma (Julia Stockler), a irmã mais velha, não conseguiu suportar a pressão que a doença da mãe fazia sobre o destino dela e da irmã e fugiu. Como nenhuma carta foi respondida, ela volta para saber notícias, chegando sem avisar. Alda (Claudia Sardinha) está envolva em seus afazeres domésticos quando avista a irmã. O diálogo frívolo no início vai dando lugar para conflitos mais profundos aos poucos. Em um ato só, a peça preenche os momentos que antecedem a entrada de Alma no quarto da mãe. Dentro do quarto, há um segredo que a história há de revelar a quem for assistir.

A direção de Felipe Cabral enfrenta bem o desafio de contar a história de “O que acontece quando a coisa acaba”. Nas marcações, é possível identificar o jogo entre as atrizes, a potência nas pausas que sustentam a emoção e prendem a atenção, os movimentos pelo espaço que preenchem bem o tempo da narrativa. O expressionismo é pincelado na cena final sem exageros, vencendo bem o perigo de tornar a história em um melodrama. Felizmente, isso não acontece.

Com iguais méritos, as contribuições das interpretações de Sardinha e de Stockler são diferentes. A força da irmã que vai embora revela uma fraqueza diante dos problemas. A covardia da irmã que fica deixa ver a coragem em enfrentar o destino. Nos trabalhos, essas intenções ficam claras positivamente, com discretas e bem-vindas doses de emoção, mantendo a peça em um bom nível de elegância. As marcas de verdade na encenação conseguem positivamente aproximar a história do além da narrativa, apesar da idade das personagens (criadas pelas atrizes para elas próprias, os personagens parecem ser bem mais velhos), do lugar (o Rio de Janeiro parece um lugar pequeno e pouco habitado) e do tempo transcorrido (um ano apenas entre a partida de Alma e sua volta e não décadas como o drama entre as duas parece supor).

O cenário de Constanza de Córdova é um dos pontos altos do espetáculo, construindo um ambiente neorrealista, que é útil para a percepção da história, além de bonito. A iluminação de Poliana Pinheiro, com as luzes falhando ao longo da narrativa, participa da história ativamente. 

Dentro da proposta, “O que acontece quando a coisa acaba” é um bom espetáculo, porque atinge os objetivos traçados. Vale a pena conhecer o trabalho de Stockler, de Sardinha e de Cabral.

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Ficha técnica:
Texto e atuação: Claudia Sardinha e Julia Stockler
Direção: Felipe Cabral
Direção de Movimento: Marina Magalhães
Cenário: Constanza de Córdova
Figurino: Ana Carolina Lopes
Iluminação: Poliana Pinheiro
Preparação Vocal: Verônica Machado
Fotos e Material de Divulgação/ Teaser: João Atala
Produção: Claudia Sardinha e Julia Stockler