domingo, 31 de julho de 2016

Terra papagalli (RJ)

Curta nossa página no Facebook: www.facebook.com/criticateatral
Siga-nos no Instagram: @criticateatral
Foto: divulgação

Daniel Belmonte, Victor Albuquerque, André Rosa, Jojo Rodrigues, Tomaz Nogueira e Sarah Lessa


Ótimo conjunto de elenco em divertida aula de história

“Terra Papagalli”, com direção de Marcello Valle, é a versão teatral do livro homônimo de José Roberto Torero e de Marcus Aurelius Pimenta. A dramaturgia, assinada por André Vieira, Daniel Belmonte e pelo diretor, é ponto de partida para a encenação em que onze atores dão vida a Cosme Fernandes, português que, tendo sido degredado da Europa, veio junto com a frota de Cabral para a terra que futuramente seria conhecida como Brasil. A vida dele entre os índios e os europeus, contada no livro e na peça em uma mistura de fatos reais e fictícios, apresenta um interessantíssimo ponto de vista da história do país desse período um tanto obscuro. Além de Vieira e de Belmonte, no elenco composto de ótimos trabalhos, estão também André Rosa, Felipe Frazão, João Marcelo Iglesias, Jojo Rodrigues, Rômulo Chindelar, Sarah Lessa, Thiago Chagas, Tomaz Nogueira e Victor Albuquerque. A montagem fica em cartaz até o dia 7 de agosto no Teatro de Arena do Espaço SESC Copacabana.

Narrativa histórica
Publicado em 1997, o livro “Terra Papagalli”, narrado em primeira pessoa, se organiza nos dez mandamentos para se bem viver no Terra dos Papagaios. Português de origem judaica, o ex-seminarista Cosme Fernandes, quando tinha mais ou menos vinte anos, foi expulso da Europa devido a um caso de amor. Assim, preso à expedição de Cabral na aventura do descobrimento de um novo caminho para as Índias, ele acabou reconstruindo sua vida entre os índios e os europeus que passaram a conviver no que depois se chamou Brasil.

A chegada de Cristóvão Colombo, em 1492, ao outro lado do Oceano Atlântico apimentou a disputa de Portugal e Espanha pela posse das Ilhas Canárias e da costa africana. O Papa Alexandre VI, vendo-se ameaçado pela França quanto ao governo de Nápoles, intermediou a divisão dos trajetos recém descobertos. De início, em 1493, as primeiras cem léguas pertenceriam a Portugal. Um ano depois, em Tordesilhas, um novo tratado foi feito e, a partir dele, Dom João ganhava 370 léguas a partir das Ilhas Canárias, que eram da Espanha. Coube, assim, ao inexperiente navegador Pedro Alvares Cabral comandar uma expedição que fizesse o reconhecimento desse novo terreno desconhecido oficialmente. (Há uma teoria de que, em 1498, o navegador Duarte Pacheco já teria feito uma viagem secreta ao Brasil em nome da coroa portuguesa.)

Expulsos os mouros e convertidos ao catolicismo (à força pela Inquisição) os judeus, os “indianos” precisavam também abraçar a “fé verdadeira”, concedendo, como já tinham feito os outros povos, seus bens à coroa (seja essa de Portugal, de Castela ou de Aragão). Diferente deles, porém, assim como aos africanos, aos índios não bastava assumir uma nova crença. Considerados de uma raça inferior, eles eram escravizados e vendidos como se fossem animais. (Antes de morrer, em 1504, a Rainha Isabel de Castela mandou prender Colombo por essa prática considerada indigna. Os outros monarcas do século XVI, no entanto, não seguiram o seu exemplo, pautados inclusive pela falta de consenso dos teólogos do Vaticano em relação ao tema.) Além do tráfico de pau-brasil, então, a venda de índios engordava os cofres ibéricos.

Na se sabe ao certo quando exatamente Cosme Fernandes veio para o Brasil, mas historiadores acreditam que, em 1502, ele já estava morando em uma região batizada de Cananeia, no litoral sul de São Paulo. Assim como a coroa espanhola, Portugal não havia permitido a vinda de mulheres para os povos d`além mar, o que se foi acontecer na época das Capitanias Hereditárias. Dessa forma, além das famílias nativas das regiões, os europeus que se estabeleceram por aqui formaram novas famílias, dando início à miscigenação. Na narrativa de José Roberto Torero e de Marcus Aurelius Pimenta, o protagonista teve várias esposas e muitos filhos. A enorme respeitabilidade (e força militar) de Cosme, trinta anos depois de ter chegado ao Brasil, torna esse argumento ainda mais plausível do que suas necessidades sexuais e sua liberdade moral-religiosa. 

Em 1531, com a chegada de Martim Afonso de Souza, Cosme Fernandes, também chamado de Bacharel da Cananeia, é visto como um dos europeus mais importantes do Brasil ao lado de Diogo Álvares Correa, João Ramalho e de Antônio Rodrigues. Uma batalha entre o novo governo e suas tropas, essas que tinham auxílio de espanhóis e de franceses – ambos, mais que o portugueses, conheciam melhor a vida por aqui –, se travou. Dono de centenas de escravos e aliado de diversos caciques, Cosme venceu a batalha, expulsando os portugueses da Vila de São Vicente. A contemporaneidade desconhece o paradeiro final do Bacharel, embora reconheça nele uma biografia capaz de dar conta da complexa identidade da formação do que hoje se conhece como “povo brasileiro”.

Diferente do que acontece no livro, na peça “Terra Papagali”, o espectador não sabe onde e quando a história vai terminar enquanto lha assiste. Por mais interessante que a narrativa adaptada pode ser, lá pelas tantas, com vários atores, e todos eles aparentemente da mesma idade, interpretando o mesmo personagem, vem o cansaço. As cenas finais, tão boas quanto as primeiras, não vencem o desafio do ritmo por causa disso. O monólogo final em defesa das tribos indígenas que ainda hoje sofrem no país, por mais essencial que seja na construção de um mundo mais humano, esteticamente surge em um contexto debilitado, que lhe é prejudicial. Mesmo assim, os méritos da dramaturgia precisam ser valorizados e aplaudidos sobretudo no que diz respeito à encenação.

Ótimo conjunto de elenco
A direção de Marcelo Valle, com codireção de Danilo Moraes e direção de movimento de Dani Cavanellas, organiza a narrativa em um jogo muito interessante entre os atores. O espetáculo, atendendo às características da obra na qual se baseia, é irônico sem fazer disso uma proposta menos séria. A ficcionalização da história, ganhando contornos bastante válidos pela corporalidade dos intérpretes, surge como um elemento capaz de potencializar a importância histórica do todo positivamente. Cada novo quadro surge no palco com enorme criatividade e força em uma articulação que só não é melhor pelo enrubescimento do ritmo da dramaturgia como já se apontou.

Todos os trabalhos de interpretação são bastante bons. João Marcelo Iglesias, Jojo Rodrigues, Rômulo Chindelar, Sarah Lessa, Tomaz Nogueira, Daniel Belmonte, mas principalmente André Vieira, Victor Albuquerque e Thiago Chagas e sobretudo Felipe Frazão e André Rosa se destacam em trabalhos vigorosos, cheios de força, intensidade e equilíbrio. Em uma encenação em que todos os atores permanecem quase inteiramente em cena de alguma forma, a coesão das interpretações fica ainda mais responsável pela qualidade do todo. Isso acontece aqui, o que reforça as justificativas para o aplauso ao conjunto.

O cenário de Júlia Deccache e de Carla Ferraz, a luz de Maurício Fuziyama e de Renato Machado, a música original e a direção musical de Rodrigo Lima estão plenamente unidos em quadro estruturado com poucos elementos, mas valorosos sobretudo na viabilização do bom rimo inicial. O figurino, os adereços e o visagismo de Othon Spenner vencem o desafio de providenciar o jogo na caracterização dos diversos personagens, mas destacando a relação estética deles entre si, todos partes de um só espetáculo com sólida concepção.

“Terra Papagalli”, produzido por André Vieira e por Bruno Fagotti, vale a pena ser visto sobretudo por aqueles que reconhecem a importância do conhecimento da história para a compreensão do presente. Divertido e qualificado!

*

Ficha técnica:
Texto original: José Roberto Torero e Marcus Aurelius Pimenta
Adaptação: André Vieira, Daniel Belmonte e Marcelo Valle
Direção: Marcelo Valle
Codireção: Danilo Moraes
Direção de movimento: Dani Cavanellas
Elenco: André Rosa, André Vieira, Daniel Belmonte, Felipe Frazão, João Marcelo Iglesias, Jojo Rodrigues, Rômulo Chindelar, Sarah Lessa, Thiago Chagas, Tomaz Nogueira e Victor Albuquerque
Treinamento de coro: Fabianna Mello e Souza
Workshop vocal: Davi Guilhermme
Iluminação: Maurício Fuziyama e Renato Machado
Cenário: Júlia Deccache e Carla Ferraz
Música original e direção musical: Rodrigo Lim
Figurino, adereços e visagismo: Othon Spennr
Projeto gráfico: Bruno Dante
Fotografia: LuCa Ayres
Assessoria de imprensa: Breno Motta
Produção: André Vieira e Bruno Fagotti

Passional (RJ)

Curta nossa página no Facebook: www.facebook.com/criticateatral
Siga-nos no Instagram: @criticateatral
Foto: J.Keise


Karen Mota, Bruno Quaresma e Anna Sant`Anna

Modesto

“Passional” é o novo bom espetáculo dirigido por Renato Livera. O texto escrito por Alexandre Mota, Danielle Heule, Rafael Sardão e pelo diretor narra a história de um escritor chamado Eugênio por quem duas mulheres se apaixonam: Miranda, a dona de seu bar preferido; e Lavínia, uma dançarina. O relacionamento entre eles – coberto de expectativas e de frustrações – é pautado pela movimentos ocasionados pela paixão. Com Anna Sant´Anna, Karen Mota e Bruno Quaresma em bons trabalhos de interpretação, o espetáculo finaliza hoje a sua primeira temporada no Teatro I do SESC Tijuca, na zona norte do Rio de Janeiro.

Estória simples e sem grandes pretensões
O bloqueio criativo de Eugênio (Bruno Quaresma) para finalizar seu novo romance e, assim, cumprir um contrato previamente firmado com uma editora, termina quando ele conhece Lavínia (Karen Mota). Ela é uma dançarina contratada para dançar no bar onde trabalha a garçonete Miranda (Anna Sant´Anna). O relacionamento entre Eugênio e Lavínia nasce e se estabelece intermediado por Miranda que tem sobre eles algum poder. Ao longo da peça, o jogo de expectativas e de frustrações vai sendo lugar onde se vê de que maneira o destino dos personagens será modificado pelo encontro entre eles.

“Passional”, relativamente modesto nas intenções e nos resultados, oferece uma estória simples e sem grandes pretensões positivamente. Os diálogos são bem construídos e deixam ver cenas que estruturam uma boa narrativa. A direção de Renato Livera, assistida por Elder Gattely, se apresenta a partir de articulações interessantes entre os quadros em um ritmo que acaba sendo o melhor de todo o trabalho. A movimentação dos atores, na troca de panoramas, revela um ótimo uso do espaço cênico esse preenchido de modo austero pelo cenário e de maneira potente pela iluminação de Renato Machado.

Sem nenhum arroubo estético
Não há interpretações relevantes, mas Anna Sant´Anna, Karen Mota e Bruno Quaresma contribuem para o todo sem desméritos dentro das possibilidades que o texto e a direção parecem ter-lhes oferecido. O figurino de Ticiana Passos, com elementos que visivelmente procuram se conter dentro de uma estrutura limitada, também não protagonizam, mas cumprem seu papel.

“Passional”, sem nenhum arroubo estético, faz uma passagem mediana pela programação teatral carioca sem correr grandes riscos.

*

Ficha técnica:
Texto: Alexandre Mota, Danielle Heule, Rafael Sardão e Renato Livera
Direção: Renato Livera
Elenco: Anna Sant´Anna, Karen Mota e Bruno Quaresma
Diretor assistente: Elder Gattely
Figurino: Ticiana Passos
Iluminação: Renato Machado
Operação de luz: Roberto Macedo
Operação de som: Mariana Amaral
Assessoria de imprensa: Gabriela Mota
Programação Visual: Leonardo Pires
Produção Executiva: Karen Mota
Direção de Produção: Anna Sant`Anna

sexta-feira, 29 de julho de 2016

Lady Christiny (RJ)

Curta nossa página no Facebook: www.facebook.com/criticateatral
Siga-nos no Instagram: @criticateatral
Foto: divulgação


Alexandre Lino


Monólogo controverso


“Lady Christiny” é o controverso monólogo escrito por Daniel Porto, dirigido por Maria Maya e interpretado por Alexandre Lino que o idealizou. A peça é baseada na vida real da personagem homônima, uma transexual cujo nome de batismo era Celso Marinaldo da Silva (1956-2006). A história foi antes contada no curta-documentário de mesmo nome dirigido por Lino em 2005. Em cena, a vida de Lady Christiny é narrada em primeira pessoa, com acréscimos na dramaturgia e participação de vídeos, revelando um panorama muito complexo. Ele negativamente perde melhores oportunidades de contribuir para uma sociedade menos intolerante. O espetáculo fica em cartaz no Teatro II do congelante SESC Tijuca na zona norte do Rio de Janeiro até o próximo domingo, dia 31 de julho.

Peça depõe contra quem diz elogiar
Antes de mais nada, vale ressaltar que a presente análise versa sobre o monólogo “Lady Christiny” e não sobre o personagem que o inspirou. Nesse sentido, a avaliação a seguir parte de um objeto estético e que não tem intenção de inferir qualquer julgamento a respeito nem de Lady Christiny, nem de seus familiares e suas opiniões pessoais.

O modo como a dramaturgia de “Lady Christiny” se estrutura é bastante controverso. De um lado, na fala em primeira pessoa, há a narrativa do “eu” por meio da qual a personagem se constrói diante do espectador. De outro, há a inevitável apresentação do “tu” e do “ele”, isto é, o para quem o personagem fala e a partir de qual lugar no mundo essa posição se dá. Nesse monólogo, a articulação desses três níveis gera um todo que desfavorece demais a personagem que aparentemente é homenageada. Em outras palavras, a peça depõe contra quem, a princípio, diz elogiar.

Sobre o primeiro nível, aquele em que se vê a narrativa da vida do personagem por ele próprio, sabe-se que Celso conheceu Célia quando ambos eram adolescentes e que, apaixonados, fugiram de casa para se casar. Dessa união, nasceram dois filhos – Kathya Alessandra e seu irmão – que vieram ao mundo antes da maioridade do pai. Aos vinte três anos, tendo gravado quatro discos de músicas românticas e vencido vários concursos de calouros inclusive na televisão, Celso se apaixonou por Claudio, que era seu fã e frequentava sua casa. Percebendo o sentimento que nascia entre seu marido e o amigo dele, Célia convidou o segundo para morar com sua família, pedindo apenas a Celso que não se divorciasse dela. Segundo Lady Christiny, essa foi a primeira vez que sentiu atração sexual por outro homem.

O relacionamento entre Celso e Claudio entrou em crise quando Célia revelou ao marido que o namorado dele a cortejava também. Para ela, isso era sinal de que o único meio dos dois permanecerem juntos era Celso adquirir uma identidade feminina que pudesse manter o desejo sexual de Claudio que, para ela, era heterossexual. A partir disso, Celso começou uma jornada de redesignação de gênero, transformando-se, com a ajuda de hormônios e de silicone, em Christiny. O relacionamento com Claudio durou quartorze anos e terminou quando se descobriu que esse cortejava Kathya Alessandra. Oficialmente, o casamento entre Celso/Christiny e Célia nunca se desfez.

Em segundo nível, o monólogo “Lady Christiny” revela ainda a opinião da personagem-título sobre si mesma e o mundo no qual essa avaliação acontece: o “tu” e o “ele”. Ao longo de todo o texto, é nítido que, para a personagem e também para sua filha, cuja imagem aparece por meio da reprodução de um trecho do documentário fílmico, o mundo se divide entre homens e mulheres e em heterossexuais e homossexuais. Em nenhum lugar do texto, a parece a palavra transexual, bem como seu conceito como também não o de qualquer outro. E essa abordagem anuncia uma visão de sociedade que hoje é muito limitada.

Ao longo da peça, a personagem Lady Christiny faz inúmeras críticas ao comportamento que ela julga ser dos homossexuais: a promiscuidade, a afetação, a falta de valores. Segundo ela, citando suas palavras, a sociedade está certa em ter preconceito contra os gays dado o modo como eles se apresentam ao mundo. “Quando eu vejo dois homens se beijando na rua, eu tenho vontade de tacar uma lâmpada na cabeça deles!” – diz, se referindo à terrível agressão que, na vida real, um casal gay sofreu na Avenida Paulista, em 2010. Afirmando-se como uma “travesti comportada”, ela aponta solenemente para o outro de cuja identidade orgulhosamente se separa.

Esse contexto se ratifica em outros lugares da dramaturgia. A personagem Kathya se refere ao pai como “ele” e ensina seu filho a chamar o avô de Vô Chris. Lady Christiny, aparecendo no vídeo com o corpo fisicamente identificável com o de uma mulher, chama a si própria de “homem”. E afirma que voltaria atrás em sua transformação em mulher se pudesse. Ao final, afirma se orgulhar de conhecer as mulheres melhor que todo mundo. Desse modo e por tudo isso, o discurso oral da peça, na sua oposição entre o “eu” e os “outros”, os homens e as mulheres, os homossexuais e os heterossexuais, vai a falência quando o discurso imagético é muito mais complexo. Em outras palavras, se, de um lado, o monólogo vê o mundo dividido em dois, de outro, tem-se uma realidade em que várias partes se encontram e se misturam.

Em síntese, o espetáculo “Lady Christiny” acaba por narrar a história de uma personagem aprisionada em padrões de identidade de gênero que não atendiam à complexidade de seus impulsos naturais. Suas ideias de família e suas opiniões sobre bom comportamento, fazendo pleno sentido no âmbito da reflexão racional, esbarravam na incapacidade (ou impossibilidade) de incluir posturas não previamente determinadas e que fossem mais de acordo com sua própria história. Quando Christiny e Kathya revelam que, se estivessem no lugar de Célia, não tolerariam a abertura do relacionamento para incluir Claudio e que, fosse Célia quem se anunciasse como lésbica, não aceitariam sua “opção”, seus preconceitos contra si próprias e suas histórias oferecem uma visão mais digna de pena do que de homenagem na contemporaneidade.

Espetáculo perde oportunidades preciosas
Vestindo um figurino masculino com, na maquiagem, leves realces mais femininos, Alexandre Lino interpreta o monólogo sentado atrás de um microfone. Gestos sutis mais afetados e alguns agudos na entonação vocal dão pistas de um personagem não facilmente identificável com homem heterossexual. Assim, a versão teatral de Lady Christiny, em oposição ao modo como a personagem aparece no vídeo-documentário, antevê por justaposição (e não de maneira mais articulada) o modo como ela se transformou.

A qualidade da interpretação de Lino, porém, esbarra na concepção do espetáculo, que é dele também, essa por sua vez aparentemente não melhorada pela dramaturgia de Daniel Porto e pela direção de Maria Maya. O modo controverso com que “Lady Christiny” mistura homenagem com crítica deixa unicamente nas mãos do espectador a responsabilidade pela compreensão da peça. Isso faz com que, no público, aconteça um outro espetáculo. Toda vez que uma parcela da plateia ri daquilo que a outra considera um horror fica nítida a conjuntura social problemática em que vivemos. Considerados os inúmeros casos de machismo, homofobia e de transfobia que o Brasil vergonhosamente apresenta, a simples pauta dessa problemática, sem posição mais clara contra ela, deixa a desejar.

“Lady Christiny”, com bela iluminação de Renato Machado, perde a chance essencial de se posicionar de maneira mais clara, contributiva e necessária para um mundo com menos intolerância.

*

FICHA TÉCNICA
Texto: Daniel Porto
Direção: Maria Maya
Elenco: Alexandre Lino
Iluminação: Renato Machado
Direção de Arte: Tatiana Brescia
Programação Visual: Guilherme Lopes Moura
Fotografia: Janderson Pires
Webdesign: Mariana Martins
Videografismo e Assessoria geral: Renato Krueger
Assessoria de Imprensa: Minas de Ideias
Produção Executiva: Equipe Cineteatro Produções
Preparação Vocal: Gina Martins
Realização: SESC
Idealização e Direção de Produção: Alexandre Lino
Um projeto da Documental Cia.

quinta-feira, 28 de julho de 2016

O Musical Mamonas (SP)

Curta nossa página no Facebook: www.facebook.com/criticateatral
Siga-nos no Instagram: @criticateatral

Foto: divulgação

Adriano Tunes, Ruy Brissac, Arthur Ienzura, Yudi Tamashiro e Elcio Bonazzi

Delicioso reencontro com Mamonas Assassinas

“O Musical Mamonas” é o divertido espetáculo que celebra a trajetória artística da banda “Mamonas Assassinas”, cujos jovens integrantes morreram em um terrível acidente aéreo na noite de 2 de março de 1996. Os músicos Samuel Reoli, Sérgio Reoli, Júlio Rasec, Bento Hinoto e Dinho são interpretados respectivamente por Elcio Bonazzi, Arthur Ienzura, Adriano Tunes, Yudi Tamashiro e Ruy Brissac, com vibrante destaque para o último, esse em um dos melhores trabalhos de interpretação do ano no Rio de Janeiro. A montagem conta ainda com vários outros intérpretes em personagens coadjuvantes, mas vale citar Bernardo Berro e Patrick Amstalden pelo modo exuberante com que eles atraem o público para suas engraçadas construções. Com texto de Walter Daguerre, direção de José Possi Neto, direção musical de Miguel Briamonte e coreografia de Vanessa Guillen, a produção investe menos na biografia dos homenageados e nos detalhes de sua carreira meteórica e mais no trato de sua estética. Com isso, oferece ao público de hoje a chance de conhecer a alegria de suas canções e àqueles que se lembram delas de reviver aquele período. O espetáculo está em cartaz até 28 de agosto no Theatro Net Rio, em Copacabana.

A marca de uma época
Foi uma carreira curta, mas de enorme repercussão. Os cinco jovens se conheceram na cidade paulista de Guarulhos e, entre o fim dos anos 80 e início dos anos 90, chegaram a constituir uma banda de rock progressivo chamada Utopia cujo único disco vendeu menos de cem cópias. Por estímulo do produtor Rick Bonadio, os músicos Samuel Reoli, Sérgio Reoli, Júlio Rasec, Bento Hinoto e Dinho acreditaram no humor que naturalmente aparecia nos intervalos das apresentações e, com ele, reformularam a estética do grupo. Assim nasceu “Mamonas Assassinas”. Lançado no fim de 1995, o disco com quartorze músicas e menos de quarenta minutos vendeu três milhões de cópias. “Vira Vira” e “Pelados em Santos” ficaram em segundo e terceiro lugar entre as músicas mais tocadas do país, perdendo apenas para “Take a bow”, de Madonna.

Na noite de sábado, dia 2 de março de 1996, após um show em Brasília, a banda estava a caminho de casa. No dia seguinte, partiria para shows em Portugal. Sem velocidade necessária, por volta das 23h15min, o jatinho não conseguiu pousar em Cumbica e, ao arremeter, virou para a esquerda ao invés de para a direita, chocando-se na Serra da Cantareira. Os destroços do avião foram encontrados na manhã do dia seguinte. Os nove passageiros morreram: cinco músicos, dois membros da produção e os dois pilotos. Vinte anos depois, a responsabilidade é atribuída, de maneira nebulosa, aos problemas de comunicação entre a aeronave e o controle aéreo.

Naquele domingo, o Brasil amanheceu em choque. O enorme sucesso, o imenso carisma e a jovialidade (eles tinham entre 22 e 28 anos) dos integrantes versus a brutalidade do acidente entristeceu o país. Para piorar, rádio, televisão e jornais exploraram incessantemente um conjunto de situações bizarras que podiam dar a perceber que eles e seus familiares sentiam a premonição da tragédia. Entre elas, uma declaração de Júlio Rasec, gravada na véspera do acidente, em que ele revelava que havia sonhado com a queda do avião. E um brinde de Dinho, antes do show em Brasília: “Vamos comemorar! Vai ser nosso último show!” – dizia ele. Por volta de sessenta e cinco mil pessoas estiveram no velório.

Em “O Musical Mamonas”, o texto de Walter Daguerre, desde a primeira cena, tem o mérito de não se afeiçoar ao tom documental. A peça começa com os cinco músicos entediados entre os anjos do céu sendo chamados pelo Arcanjo Gabriel para voltar à Terra a fim de espantar o mal do politicamente correto. É assim que os personagens começam a ensaiar um musical em sua própria homenagem, pulando tempos e procurando se divertir. Essas marcas contextualizam o que está por vir e contornam problemas relacionados aos direitos das biografias, mantendo a narrativa tão animada quanto comercial.

As canções dos "Mamonas Assassinas” ainda podem ser acusadas de muitas coisas: capitalistas, homofóbicas, machistas, emburrecedoras, desbocadas. Seu alcance no fim dos anos 90 (e que, de algum modo, se estende até hoje) revela, no entanto, todo um conceito estético complexo que dá conta daquela época. Na música, assim como nas artes visuais, na literatura, no teatro e no cinema, o mundo vivia uma nova onda pop marcada pelo movimento yuppie, pelo amplo acesso à televisão, pelo fim das ditaduras, pela falência do socialismo. Essa efervescência de cores, formas, texturas e de padrões, da moda à política, do neoliberalismo econômico às religiões pentecostais, abriu espaço para a explosão de referências culturais cujo fechamento começa com a queda das Torres Gêmeas e se aperta ainda mais agora com os últimos atentados terroristas. Cantar “Jumento Celestino”, “Robocop Gay” e “Lá vem o alemão” hoje, junto com todas as outras, é sentir o gostinho do riso livre e politicamente despretensioso  no qual temas adultos e infantis se encontravam com genialidade e muita graça. E sentir saudades dessa época!

O brilho de Ruy Brissac
A direção de José Possi Neto, a direção musical de Miguel Briamonte e a coreografia de Vanessa Guillen sustentam e maneira elogiável a narrativa. A articulação das cenas, plenamente assumida pela proposta de um grupo de anjos ensaiando na Terra um musical em sua própria homenagem, providencia ritmo coeso, coerente e principalmente engraçado. Da dramaturgia ao modo como esses elementos contribuem com o desenvolver do espetáculo, os momentos mais densos ficam dispensáveis por motivos óbvios: o horrível final é muito conhecido por todos. Nesse sentido, a força da encenação de “O Musical Mamonas” não se dá como nos espetáculos tradicionais em que os heróis são medidos pelo tamanho de seus desafios e por suas capacidades de transpô-los. Aqui, como um todo, a história age contra o baixo astral daquilo que já se sabe. E é justamente no mérito de fazer o público se esquecer, por alguns momentos, do que houve, que Daguerre, Possi, Briamonte e que Guillen chegam ao sucesso.

Rafael Aragão, Marco Azevedo, Nina Sato, André Luiz Odin, Vanessa Mello, Reginaldo Sama e Gabriela Germano ao lado de Maria Clara Manesco e principalmente de Patrick Amstalden (Rick Bonadio) e de Bernardo Berro (Rafael, Jô Soares e Faustão) brilham nos papeis menores. Amstalden e Berro, em vigoroso destaque, levantam o ritmo toda vez que entram em cena, encantando o público com vibrante carisma em excelentes construções cômicas.

Elcio Bonazzi (Samuel Reoli), Arthur Ienzura (Sérgio Reoli), Adriano Tunes (Júlio Rasec) ao lado de Yudi Tamashiro (Bento Hinoto) e principalmente de Ruy Brissac (Dinho) trazem de volta a alegria dos "Mamonas Assassinas” ao público brasileiro com exuberância. Tamashiro e sobretudo Brissac oferecem vitalidade ao todo positivamente. Esse último, pela qualidade vocal e dos movimentos corporais, fica ao lado de Tiago Abravanel, Emílio Dantas Laila Garin e de Tacy Campos que recentemente interpretaram Tim Maia, Cazuza, Elis Regina e Cássia Eller no Rio de Janeiro.

O espetáculo tem ainda ótimas contribuições do figurino de Fábio Namatame e do desenho de som de Gabriel D’Angelo, reforçando a estética coberta de referências da cultura pop: dos personagens de desenho animado à abstrações, do pagode ao rock pesado. Nello Marrese, Wagner Freire e Anderson Bueno assinam o cenário, a luz e o visagismo sem grandes colaborações.

O delicioso “O Musical Mamonas” faz ótima participação na grade de programação carioca nesse inverno. É maravilhoso poder não só se reencontrar com essas canções como revisitar um episódio rápido e marcante da história mais recente da nossa cultura. Aplausos!

*

Ficha Técnica:
Texto - Walter Daguerre
Direção Geral - José Possi Neto
Direção Musical - Miguel Briamonte
Elenco
Ruy Brissac – Dinho/ Adriano Tunes – Julio/ Yudi Tamashiro – Bento
Elcio Bonazzi – Samuel/ Arthur Ienzura – Sergio/ Rafael Aragão – Cover Dinho/ Patrick Amstalden – Rick Bonadio
Ensemble:
Vanessa Mello / Nina Sato / Gabriela Germano / Maria Clara Manesco
Marco Azevedo / Reginaldo Sama / Bernardo Berro / Andre Luiz Odin
Coreografia – Vanessa Guillen
Cenário - Nello Marrese
Figurinos - Fabio Namatame
Designer de Maquiagem e Cabelo – Anderson Bueno
Designer de Luz - Wagner Freire
Designer de som - Gabriel D’Angelo
PRODUTORES ASSOCIADOS - Rose Dalney, Márcio Sam e Túlio Rivadávia
Apresentado por Ministério da Cultura e Banco do Brasil Seguridade.
Patrocinado por Banco do Brasil Seguridade e realizado por MINIATURA 9

um nome para romeu e julieta (RJ)

Curta nossa página no Facebook: www.facebook.com/criticateatral
Siga-nos no Instagram: @criticateatral

Foto: divulgação


Diogo Liberano e Carolina Ferman

Clássico “Romeu e Julieta” de volta à programação teatral carioca em ótima montagem

“um nome para romeu e julieta” é a versão adaptada e dirigida por Dani Lossant para o original de William Shakespeare. A montagem, que tem Andrêas Gatto, Daniel Chagas, Márcio Machado e Morena Cattoni ao lado de Diogo Liberano e de Carolina Ferman nos papéis títulos, tem, entre vários méritos, o de ter um excelente conjunto de atuações. A versão, resumindo o clássico, não se exime de contemplar suas citações mais célebres, privilegiando o ritmo no esforço em manter viva a estória já muito conhecida. A ótima montagem está em cartaz até o dia 31 de julho no Teatro de Arena da CAIXA CULTURAL. Vale a pena revisitar esse que é um dos clássicos mais belos da história.

Possíveis inspirações de Shakespeare
Há várias teorias sobre as inspirações de William Shakespeare (1562-1616) para escrever “Romeu e Julieta”. Uma delas, célebre pelas pesquisas de Peter Ackroyd e de Clare Asquith, é histórica. Essa começa com a morte do 2º conde de Southampton (1545-1581), quando seu filho (o 3º conde) Henry Wriothesley (1573-1624) passou a ser favorecido por William Cecil, o Barão Burghley (1520-1598), um dos homens mais poderosos da Inglaterra no período elisabetano. Wriothesley, de quem Shakespeare era amigo a ponto de dedicar-lhe os poemas “Venus e Adonis” e “O estupro de Lucrécia”, era filho de Mary Browne (1552-1607), que por sua vez era filha do Visconde de Montagu (1528-1592). O católico Montagu, leia-se Montéquio, por ter apoiado os governos dos irmãos Edward VI e de Mary I e por ter liderado uma expedição a Roma a fim de reestabelecer o catolicismo na Inglaterra, havia sido banido da corte com a ascensão da irmã protestante Elizabeth I ao trono em 1558.

Consta que uma primeira versão de “Romeu e Julieta” se apresentou no segundo casamento do Visconde Montéquio com Magdalena Dacre (1538-1608) em 15 de julho de 1558, quatro meses antes do início do reinado de Elizabeth I. Essa teria sido escrita pelo célebre dramaturgo George Gascoigne (1535-1577) com base em uma novela do italiano Matteo Bandello (1485-1561), publicada em 1554. Bandello teria se baseado em Xenofonte de Éfeso (séc. II e III a. C.), Ovídio (43 a.C–17 d. C.), Dante Alighieri (1265-1321), Masuccio Salernitano (1410-1475) e em Luigi da Porto (1485-1529). Além da versão de Gascoigne, é possível que Shakespeare conhecesse a de Bandello pela tradução desse para o francês por Pierre Boaistuau (1517-1566) (“Histórias trágicas”, de 1559) e para o inglês por Arthur Brooke (? – 1563) (“Tragicall Historye of Romeus and Juliet”, 1562). Vários teóricos comentam que a versão de Shakespeare é, assim, uma homenagem do bardo à família de seu amigo Southampton. (Vale lembrar que “A megera domada” foi inspirada em “The supposes”, de 1566, escrita por Gascoigne.)

O conflito entre Wriothesley e Cecil começou, em 1591, quando o primeiro, com dezenove anos, se negou a casar-se com Elizabeth de Vere (1575-1627), com dezesseis, apesar do seu dote de 5 mil libras já pagos. Ela era filha do 17º conde de Oxford e neta por parte de mãe de Cecil. Para piorar, Wriothesley aparece, por volta de 1594, apaixonado por Elizabeth Vernon, dama de honra de Elisabeth I. Ela era prima do 2º conde de Essex, amigo de Southampton e de Shakespeare. Os dois se casaram em 30 de agosto de 1598, 26 dias após a morte de William Cecil, quando Vernon já estava grávida. Elizabeth I, em favor de Burghley e de Oxford, mandou o jovem casal católico para a prisão de Fleet, onde provavelmente nasceu Lady Penelope Wriothesley, em novembro. Depois de sua soltura, Southampton e Essex estavam juntos em uma rebelião contra a já idosa rainha em favor de seu tio Jaime VI da Escócia, esse que viria a se tornar, em 1603, Jaime I, novo rei da Inglaterra.

“Romeu e Julieta”, escrito entre 1594 e 1596, faz célebres referências às dificuldades do conde e da condessa de Southampton contra todos aqueles que não queriam a sua união. Na história, o jovem Romeu da casa dos Montéquio se apaixona por Julieta Capuleto, mas as duas famílias são históricas rivais na cidade medieval de Verona, na Itália. Frei Lourenço, confessor de ambos, planejando colaborar com a paz na cidade, os casa em segredo. Logo depois da cerimônia, porém, Romeu se envolve em uma briga e mata Teobaldo, primo de Julieta. (Elizabeth de Vere, que foi rejeitada por Southampton, nasceu no Castelo Theobalds, palácio do século XV que, no reinado de Elizabeth I, passou a ser de William Cecil.) Por isso, ele é banido, partindo para Mântua. Em Verona, os Capuleto decidem pelo casamento de Julieta com o nobre Conde Páris, sem saber que ela já estava casada. Frei Lourenço, para resolver a situação, sugere que, na véspera do casamento, a jovem beba uma poção que lhe dará aparência de morta por 48 horas. E manda um mensageiro a Mântua para explicar tudo a Romeu. Uma peste impede que a verdade chegue ao jovem Montéquio que, desesperado com a notícia da morte de Julieta, compra um veneno e volta para visitar o túmulo de Julieta. Lá ele se mata e, quando Julieta acorda, ao ver o corpo do marido, apunhala-se, morrendo também.

A enorme beleza dos versos de Shakespeare fez dessa história uma das mais famosas na cultura ocidental. Mesmo quem já a conhece muito bem se encanta com sua força. As referências históricas que essa análise ofereceu podem deixar tudo ainda mais interessante se se lembrar que Penelope Wriothesley (1598-1667), a primeira filha de Wriothesley e de Vernon, se casou com o 2º Barão Spencer (1591-1636), antepassado da Lady Diana Spencer (1961-1997), a princesa de Gales. Isso faz do atual Príncipe William e de seus filhos os descendentes de Romeu e Julieta.

A versão de Dani Lossant
“um nome para romeu e julieta”, de Dani Lossant, resume o original de Shakespeare, reduzindo as falas e concentrando as ações, mas mantendo as marcas mais célebres. Como já feito muitas vezes pelo teatro e pelo cinema anteriormente, essa medida aproxima a narrativa do público contemporâneo também pelo uso de expressões do cotidiano. O título faz referência ao diálogo da cena do balcão, uma das mais famosas da história do teatro ocidental, em que Julieta se pergunta sobre se a rosa teria outro perfume se assim não fosse chamada. Está, nos nomes Montéquio e Capuleto, o ódio entre suas famílias, não nas pessoas.

Na direção assistida por Davi Palmeira, o palco em arena abre espaço para as ações, promovendo franco encontro entre os personagens e a nobre responsabilidade da imaginação do público, esse que precisa imaginar os cenários e perceber o jogo de troca de papeis entre os atores. Se, de um lado, o falar permanece empolado em alguns trechos, intenções mais naturalistas podem ser vistas em outros. Essa alternância, garantindo momentos mais cômicos e leves sem abdicar dos mais trágicos e pesados, é um recurso positivo que tem méritos no ótimo uso aqui.

O chão onde os atores pisam é preenchido graficamente ao longo da encenação. Utilizando giz de cera, os atores escrevem palavras e trechos de poemas (da poetisa portuguesa Florbela Espanca inclusive), além de estabelecer relações como a direção de determinados lugares e o local de outros. Tudo isso, corroborando com a reflexão proposta pelo título, oferece leituras sobre a importância das palavras, sua durabilidade e sobre a importância da linguagem na construção das identidades e das vidas.

Os figurinos de Luci Vilanova, em mais uma de tantas explorações de gravatas que inundam o teatro carioca, faz sutis alusões às célebres oposições em azul e vermelho para os Montéquio e Capuleto sem muita criatividade. Por outro lado, a trilha sonora original de Luciano Corrêa e principalmente a iluminação de Daniela Sanchez fazem excelentes contribuições, potencializando de modo inteligente e belo o panorama geral.

Ótimo conjunto de atuações
O melhor de “um nome para romeu e julieta” é a qualidade dos trabalhos de interpretação. Andrêas Gatto, Daniel Chagas, Márcio Machado e Morena Cattoni se alternam em vários personagens, mantendo a força em seus diálogos e consequentemente das cenas. Diogo Liberano e Carolina Ferman, que interpretam os protagonistas, permitem-se, através de suas construções, deixarem-se levar pelo aspecto trágico que faz com que toda a vida de Romeu e Julieta se modifique em alguns dias. Suscetíveis ao sentimento que os configura nessa narrativa ficcional, eles se entregam ao destino, seja esse inicialmente bom ou depois ruim. E seus intérpretes oferecem ao espectador meios de compreender isso, se emocionar com eles e de experimentar a linda poesia dessa trajetória. Excelente!

Vale a pena ver o espetáculo!

*

Ficha Técnica:
um nome para romeu e julieta - a partir do original "Romeu e Julieta", de William Shakespeare (tradução Onestaldo Pennafort)
Direção, adaptação e concepção espacial: Dani Lossant
Colaboração dramatúrgica: Diogo Liberano
Diretor Assistente: Davi Palmeira
Elenco: Andrêas Gatto, Carolina Ferman, Daniel Chagas, Diogo Liberano, Márcio Machado e Morena Cattoni
Iluminação: Daniela Sanchez
Assistente de Iluminação: Katia Barreto
Figurinos: Luci Vilanova
Trilha Original: Luciano Corrêa
Fotos: Anna Clara Carvalho
Design gráfico: André Coelho
Mídias Sociais: Teo Pasquini
Assessoria de Imprensa: Aquela que Divulga
Direção de Produção: Luísa Barros
Produção Executiva: Alice Stepansky
Mobilização de Recursos: Marcela Rosário
Produtor Associado: Diogo Liberano
Realização: Capitão Comunicação e Cultura

sábado, 23 de julho de 2016

Gata em telhado de zinco quente (SP)

Curta nossa página no Facebook: www.facebook.com/criticateatral
Siga-nos no Instagram: @criticateatral

Foto: divulgação

Zécarlos Machado e Bárbara Paz



A volta de Eduardo Tolentino de Araújo ao Rio de Janeiro


A montagem do paulista Grupo TAPA de “Gata em telhado de zinco quente”, do norte-americano Tennessee Williams, é a mais nova ótima versão desse clássico no Brasil. Escrita em 1955, ela ficou famosa no mundo pela adaptação cinematográfica em que Elizabeth Taylor e Paul Newman interpretavam o jovem casal Maggie e Brick. Por não ter filhos, eles sofriam a comparação com o irmão dele na disputa sobre quem ficaria com a herança da família. No original, porém, há muito mais do que isso. Entre seus temas, está a capacidade de cada um de conviver com os próprios segredos e com os dos outros por muito tempo. O diretor Eduardo Tolentino de Araújo brilhou por aqui, em 2014, com o seu “12 homens e uma sentença”. Agora, de novo em ótimo trabalho, ele dirige Zécarlos Machado, André Garolli, Fernanda Viacava e Noemi Marinho, em grandes atuações, ao lado dos protagonistas Bárbara Paz e Augusto Zacchi, ela em excelente interpretação e ele em péssima. A peça fica em cartaz até o dia 21 de agosto no Centro Cultural do Banco do Brasil, na zona central do Rio de Janeiro.

Excelente texto de Tennessee Williams
A expressão “gata em teto de zinco quente” faz parte do vocabulário do sul dos Estados Unidos, tendo sido usada desde o início do século XIX para descrever a habilidade em se manter estável em situações de conflito. Na peça “Cat on a hot tin roof”, a imagem de um gato deitado no telhado de metal sob o sol escaldante, em que se pergunta sobre até quando ele aguentará o calor, abre o panorama geral onde se encontram os personagens.

Na estória original de Tennessee Williams (1911-1983), em uma grande fazenda de algodão no Mississipi, uma família está reunida para comemorar o aniversário do patriarca (Zécarlos Machado). Os irmãos Brick (Augusto Zacchi), com sua esposa Maggie (Bárbara Paz); e Gooper (André Garolli), com sua esposa Mae (Fernanda Viacava) e seus cinco filhos, acabaram de almoçar com sua Mãe (Noemi Marinho) e o homenageado. A peça, que nessa versão (como no texto) acontece toda dentro do quarto de Brick e de Maggie, começa quando ela entra para trocar o vestido recém sujo por um dos filhos de Gooper. Ela relata ao marido o que aconteceu na mesa: seus cunhados fizeram de tudo para agradar o sogro Paizão (Big Daddy), esse que visivelmente, segundo Maggie, gosta mais de Brick, seu primogênito, apesar desse não ter filhos.

Toda a narrativa se passa na metade de um dia de maneira que o tempo da estória e o de sua representação são os mesmos. Mas, aos poucos, vão ficando claros alguns antecedentes dramáticos. No passado, Brick fez algum sucesso como jogador de futebol, mas seguiu carreira como comentarista esportivo. Na madrugada anterior, de acordo com jornais do dia, ele quebrou o tornozelo quando tentava saltar na quadra da escola, expondo a público sua debilidade física. Essa se deve sobretudo à prática do alcoolismo, iniciada imediatamente depois da morte de seu fiel parceiro Skipper, que é quando também Brick e Maggie começaram a dormir separados e nunca mais tiveram qualquer relação sexual.

Assim, embora o título principalmente em português privilegie a personagem Maggie, é em Brick que toda a história de “Cat on a hot tin roof” acontece. Seu isolamento impõe a todos os demais personagens, a começar pelo de sua esposa, uma recondução de seus caminhos. Os fatos dele não ter tido filhos, de ter melhor se dedicado a uma (agora abandonada) carreira nos esportes e de ser alcoólatra dão a Gooper e sua família esperanças quanto à herança do Paizão, cuja morte por câncer pode acontecer em breve. Por seu turno, Paizão, aparentemente rejuvenescido no dia de seu aniversário, exige explicações sobre a saúde de seu filho preferido. Qual a verdadeira relação entre a morte de Skipper, o alcoolismo de Brick e a infertilidade do casal?

Na versão cinematográfica dirigida por Richard Brooks, lançada em 1958, questões que dizem respeito à amizade entre Skipper e Brick, que põem em dúvida a orientação sexual principalmente do segundo, são reduzidas à infidelidade de Maggie com quem Skipper teria se relacionado. Isso, e também a modificação do terceiro ato para um final feliz, desagradou Williams, então, já autor de “À margem da vida” (1944) e de “Um bonde chamado desejo” (1947), dentre muitas outras peças. Mantida nas versões teatrais, paira no palco, mesmo nessa versão de Augusto Cesar, o peso dos segredos no enfrentamento do presente. Nas palavras de Maggie, a vitória de uma gata em telhado de zinco quente é se manter.

“Cat on a hot tin roof” deu a Williams um Prêmio Pulitzer de Dramaturgia. Em sua estreia na Broadway, em março de 1955, a montagem dirigida por Elia Kazan ganhou indicações ao Tony de Melhor Direção, Melhor Atriz (Bárbara Bel Geedes) e de Melhor Espetáculo (quem ganhou foi “O diário de Anne Frank”) sem vencer nenhum. A versão cinematográfica foi indicada aos Oscar de Melhor Atriz (Taylor), Ator (Newman), Roteiro adaptado, Fotografia em cor, Direção e de Melhor Filme, mas não ganhou nenhum também. No Brasil, ficaram célebres as montagens teatrais dirigidas por Maurice Vaneau, em 1956, com Cacilda Becker e Walmor Chagas; por Paulo José, em 1976, com Tereza Rachel e Antônio Fagundes; por Kiko Jaess, em 1978, com Cleo Ventura e João Paulo Adour; e a por Moacyr Goes, em 1998, com Vera Fischer e Floriano Peixoto. A atual produção, de Cesar Baccan, estreou no último 5 de maio no CCBB de São Paulo.

O brilho da direção de Eduardo Tolentino de Araújo e seus atores aqui
A direção de Eduardo Tolentino de Araújo, como aconteceu em “12 homens e uma sentença”, articula bem grandes intérpretes e texto majestoso. Nessa dramaturgia, Tennessee Williams disfarça, nos diálogos, os referentes necessários para se compreender a situação a partir de sua complexidade. Desse modo, na medida em que eles vão sendo menos requisitados, o ritmo naturalmente melhora até que o clima vai ficando devastador. É como se um sol vagarosamente fosse aquecendo o telhado até o ponto em que mesmo uma tempestade não conseguisse esfriá-lo, mas talvez o deixasse ainda mais insuportável. Fazendo com que os atores explorem as palavras e as imagens do texto, ele oferece, de um modo geral, riquíssimo repertório de expressões que garantem a tensão sobre a qual se dá todo o conflito. A movimentação e sobretudo o jeito como os quadros foram articulados nessa montagem – que se dá sem intervalos – revelam criatividade, mas mais do que isso profundidade no trato. Tudo isso nutre convívio nobilíssimo entre o célebre autor, o palco e o público, feito que precisa ser valorizado.

André Garolli (Gooper), Fernanda Viacava (Mae) e Noemi Marinho (Mãezona) estão em ótimos trabalhos, aproveitando as oportunidades que têm com máxima potência. Eles colaboram bastante principalmente na terceira parte da peça com os méritos de toda a obra, recheando de segundos sentidos suas menores expressões. Elas garantem a força do panorama geral positivamente.

A interpretação de Augusto Zacchi, já elogiado aqui por sua participação em “Chuva Constante”, dada a responsabilidade de Brick na viabilização de toda a narrativa, é o único problema da montagem. Nela há o disfarce da carência de conteúdo pela apatia. Não há uma só frase, em toda a extensão do espetáculo, que seja dita de modo íntegro. Revelam-se as palavras de Tennessee Williams, mas não se vê qualquer pesquisa nem em sua entonação, nem nas expressões faciais. Nos momentos de êxtase, os rompantes do personagem possibilitam melhor dicção, mas a alternância entre nada e tudo empobrece sua colaboração. Desse modo, as contracenas de Zachi com Zécarlos Machado e com Bárbara Paz ficam muito prejudicadas.

Zécarlos Machado (Paizão) brilha em um dos personagens mais ricos de “Gata em telhado de zinco quente”. No texto, Big Daddy é um grosseirão do sul cujo sucesso financeiro não lhe trouxe qualquer requinte. Por outro lado, por ter herdado a fazenda dos seus antigos patrões – o casal homossexual Jack Straw e Peter Ochello –, seu ponto de vista sobre o tema torna essa dramaturgia de sessenta anos atrás muito à frente de seu tempo positivamente. E Machado dá vida a essa complexidade de maneira excelente. Força e delicadeza, masculinidade e sensibilidade se veem no personagem que achava que ia morrer, mas se descobre mais vivo que seu filho ainda jovem.

Bárbara Paz, mais uma vez, apresenta uma atuação irreparável. Sua Maggie equilibra sensualidade e medo, poder e fraqueza, abrindo as portas desse Tennessee Williams ao público e, com habilidade, abandonando-o lá como bem quis o dramaturgo no diálogo final. Como um vulcão explodindo desejo sexual e pela maternidade, a personagem interpretada tão bem por essa atriz revela as nuances de um casal que é metáfora para a visão de sociedade do autor. Excelente!

Ótima pedida na grade de programação teatral carioca!
Pela primeira vez assinando um figurino para teatro, Glória Kalil estreia em “Gato em telhado de zinco quente” como se já tivesse experiência nessa especificidade da função. Com elegância, suas modelagens conferem ao espetáculo altíssimo valor estético. No entanto, são os usos das cores que merecem ser mais elogiados. A preferencia por meios-tons se articula com o cenário em algodão e em madeira de Ana Mara Abreu e de Alexandre Toro com intimidade. O quadro geral, em que se valoriza a iluminação azul e âmbar de Nelson Ferreira, fica quase inteiramente champagne: exatamente no meio do caminho entre o ouro, o prata e o bronze. O sentido é claro. Sem coragem, flerta-se perigosamente, disfarçando a verdade. Eis o conceito de “mendacity” (tendência a mentir) que foi traduzido aqui para “falsidade” de cujo nojo Brick diz sentir ao justificar seu comportamento. A supervisão musical e o desenho de som de Marcelo Pellegrini são outros dois excelentes usos que a peça faz na construção do seu discurso.

Eis uma ótima pedida na programação teatral do Rio de Janeiro. A ver!

*

FICHA TÉCNICA
Patrocínio: Banco do Brasil
Realização: Centro Cultural Banco do Brasil
Texto: Tennessee Williams
Tradução: Augusto Cesar
Direção: Eduardo Tolentino de Araujo

Elenco / Personagem:
Bárbara Paz / Maggie
Augusto Zacchi / Brick
Fernanda Viacava / Mae
Noemi Marinho / Mãezona
André Garolli / Gooper
Zécarlos Machado / Paizão

Figurino: Gloria Kalil
Cenário: Ana Mara Abreu e Alexandre Toro
Iluminação: Nelson Ferreira
Cenotécnicos: Jorge Ferreira e Denis Nascimento
Supervisão Musical e Sound Design: Marcelo Pellegrini
Produção Musical: Surdina
Hair Stylist: Ricardo Rodrigues
Fotos: Ronaldo Gutierrez
Arte: Rafael Branco
Produção Executiva: Paloma Galasso
Produção Geral: Cesar Baccan / Baccan Produções
Idealização: Grupo TAPA
Assessoria de Imprensa: JSPontes Comunicação – João Pontes e Stella Stephany

quarta-feira, 20 de julho de 2016

Tudo o que há Flora (RJ)

Curta nossa página no Facebook: www.facebook.com/criticateatral
Siga-nos no Instagram: @criticateatral

Foto: divulgação


Thiago Marinho, Leila Savary e Lucas Drummond

Primeiro espetáculo da Nossa! Cia. de Atores é excelente!


“Tudo o que há Flora”, um dos melhores espetáculos em cartaz no Rio de Janeiro, é a primeira produção da Nossa! Cia. de Atores. Com belíssimo texto escrito por Luiza Prado, a montagem é dirigida por Daniel Herz, esse mais uma vez em excelente trabalho. No elenco, Lucas Drummond, Thiago Marinho, Jorge Renato e Leila Savary, com destaque para essa última, dão vida a uma situação absurda que pode desvendar a solidão no mundo contemporâneo. Antônio Guedes, Fernando Mello da Costa, Aurélio de Simoni e Pablo Paleologo são outros grandes nomes cujos elogios às contribuições se estendem ao figurino, cenário, iluminação e à trilha sonora aqui. A temporada vai até o dia 24 de julho no Teatro III do Centro Cultural do Banco do Brasil. Imperdível.

Excelente dramaturgia!
Um rebuscado jogo de palavras apresenta os personagens. Flora (Leila Savary) é casada com Armando (Jorge Renato), mas ele não está em casa. Em sua ausência, ela recebe seus dois amantes (Lucas Drummond e Thiago Marinho), que são irmãos. Quando a peça começa, um fica sabendo da existência do outro e, durante quase toda a narrativa, há uma disputa entre ambos sobre quem ficará com a protagonista, cujo marido está para chegar. O modo como o discurso acontece no interior de cada diálogo, porém, vai deixando mais claras algumas pistas preciosas que revelam que nem tudo é como parece. E é esse o maior mérito de “Tudo o que há Flora”.

Tratam-se de diálogos quase barrocos. Lembrar e esquecer, presença e ausência, ação e inércia e muitas outras oposições similares vão enredando o espectador nas falas. Ele se diverte com algo que, de início, talvez não consiga reconhecer com facilidade, o que mantém seu interesse para além de todos os ótimos aspectos visuais em sua frente. No final, a problemática ficará clara. Flora luta contra a solidão que é consequência de um acontecimento trágico. Afogada na convivência doméstica com um aspirador e uma enceradeira, ela foge do luto.

De um modo muito inteligente, a dramaturgia original de “Tudo o que há Flora”, de Luiza Prado, conversa com o belíssimo texto de “Luisa se estrella contra su casa”, do argentino Ariel Farace. Essa peça já se apresentou algumas vezes no país, cumprindo uma pequena temporada no Festival Dois Pontos em março do ano passado. O portenho, em que a protagonista conversa com o sapólio Odex, investe mais na linha existencialista de Clarice Lispector. Prado vai para o absurdo.

Desde Martin Esslin, sabe-se que absurdo é um termo teórico pouco consensual que tenta unir dramaturgias diferentes a partir do modo como elas propõem uma leitura sobre a falta de lógica no mundo. As situações, desvinculadas do padrão realista, se eximem de organizações de causa e de efeito e fazem disso uma metáfora. Prado, inegavelmente muito inspirada no romeno Eugène Ionesco (1909-1984), não faz da comédia um alívio para o drama, mas um meio pelo qual ele é potencializado. Daí, em termos de dramaturgia, eis um grande motivo para o sucesso que o seu texto tem feito desde que “Tudo o que há Flora” estreou.

Leila Savary brilha!
Na direção, Daniel Herz valoriza cada informação em um amplo processo de exploração de seus níveis semânticos. As entradas, as saídas e as presenças de cada personagem são cobertas de propostas que, com coragem, se abrem com força à cena. A peça não é fácil, mas a falta de acessibilidade é compensada pela enorme beleza dos quadros. Dessa maneira, quando os pontos conseguem ser de um modo geral unidos, o resultado é belíssimo.

O ritmo, outro grande mérito de Herz, é garantido sobretudo pelo nobre conjunto de atuações. Jorge Renato (o marido Armando), nas oportunidades mais modestas que tem, ressalta o elogio à valorização dos detalhes. Lucas Drummond e Thiago Marinhom (os Amantes), em ótimo jogo entre si, são a base essencial sobre a qual vai Leila Savary (Flora) brilhar. Nesse trio, os movimentos de corpo e de voz agem de modo a elevar os valores estéticos da obra a partir de intenções ricamente exploradas. Savary, em precioso destaque, articula suas expressões em sublime alternância, o que, no âmbito das interpretações, faz a sua parte na viabilização das oposições já elogiadas na dramaturgia. Excelente!

O sucesso “Tudo o que há Flora” passa pelas inteligentes contribuições do figurino de Antônio Guedes, do cenário de Fernando Mello da Costa, da iluminação de Aurélio de Simoni e da trilha sonora de Pablo Paleologo. Cada um desses elementos, nas suas amplas possibilidades, colabora com a construção de um quadro cheio de profundidade cuja beleza é fácil de ver.

Sucesso!
A Nossa! Cia. de Atores, em sua primeira produção, permite ao Rio de Janeiro se orgulhar de seus jovens realizadores. O espetáculo é digno dos vários elogios que tem recebido da crítica e do sucesso de bilheteria. Parabéns!

*

FICHA TÉCNICA: Tudo o que há Flora
Texto: Luiza Prado
Direção: Daniel Herz
Elenco: Leila Savary, Lucas Drummond e Thiago Marinho
Ator convidado: Jorge Medina
Produção: Palavra Z Produções Culturais
Coprodução: Raposo Produções
Direção de Produção: Bruno Mariozz
Figurino: Antônio Guedes
Cenário: Fernando Mello da Costa
Iluminação: Aurélio de Simoni
Trilha Sonora: Pablo Paleologo
Supervisão de Movimento: Janice Botelho
Visagismo: Talita Bildeman
Fotografia e Vídeo: Paulo Henrique Costa Blanca
Idealização: Nossa! Cia. de Atores

Então... (RJ)

Curta nossa página no Facebook: www.facebook.com/criticateatral
Siga-nos no Instagram: @criticateatral

Foto: divulgação


Beth Berardo, Clara Santhana, Michel Robin e Gabriel Bulcão

A luta da direção de Isaac Bernat em texto sobre a família

Em “Então...”, vê-se um enorme esforço da direção de Isaac Bernat em tornar o texto de Michel Robin interessante. No entanto, os bons movimentos de cena e a estética que valoriza a obra não são o bastante para a montagem sobreviver. A dramaturgia, inspirada na vida do seu autor, se organiza em quadros em que pais e filhos vivem situações diversas, como crescimento, envelhecimento, escolhas das profissões, lembranças do passado, ancestralidade e descendência, por exemplo. A articulação das cenas não consegue, porém, se sustentar apenas pela justaposição. Além de Robin, Beth Berardo, Clara Santhana e Gabriel Bulcão dão vida a Pai, Mãe e a Filhos, com destaque positivo para os trabalhos do primeiro e da terceira. O espetáculo fica em cartaz até 21 de agosto no Teatro do Centro Cultural da Justiça Federal, na Cinelândia, zona central do Rio de Janeiro.

Dramaturgia fechada demais
Há quatro figuras em cena: o Pai (Michel Robin), a Mãe (Beth Berardo), a Filha (Clara Santhana) e o Filho (Gabriel Bulcão). A partir de uma constante troca de nomes próprios que os personagens usam para se referir uns aos outros, que inclusive acontece no interior de cada cena, pode-se perceber que não se tratam dos mesmos personagens na peça inteira apesar de cada posição ser sempre interpretada pelo mesmo ator. Por outro lado, há várias características que, ao se repetirem quadro após quadro, permitem pensar que, sim, são as mesmas pessoas e tudo compõe uma só história ao longo de toda a encenação. Assim, em “Então...”, há dois movimentos concomitantes. No primeiro, um núcleo específico quer ser metáfora para todas as famílias. No segundo, em oposição, várias famílias querem dar a ver possíveis marcas que podem (querer) estruturar a ideia de uma família que seja comum. 

Esse jogo, que teoricamente parece interessante, impede que o espectador se entregue ao espetáculo. Permanece-se negativamente tentando unir pontos, compreender o que está vendo, digerir a proposta. Lá pelas tantas, o cansaço vence e todos os méritos que possam ser encontrados na direção de Isaac Bernat e nos demais elementos que serão citados a seguir não são o suficiente para fazer a fruição retomar o bom convívio com a peça. Ela paira fechada, envolvida em intenções muito particulares e que pouco são acessíveis.

Direção, Cenário e Trilha Sonora: méritos
A direção de Isaac Bernat, assistida por Camila Abrantes, procura oferecer belos quadros estéticos. As cenas se organizam a partir de movimentos criativos que colaboram com a potencialização das relações entre os personagens, dando a ver uma narrativa que, do ponto de vista da teatralidade, é valorizada em relação à dramaturgia. O ritmo, enfrentando os entraves já relatados, é beneficiado pelo interesse que Bernat consegue despertar através dos atores e da equipe técnica.

Beth Berardo (Mãe) e Gabriel Bulcão (Filho) apresentam trabalhos de interpretação rígidos, inexpressivos e com pouca profundidade. Michel Robim (Pai) e Clara Santhana (Filha), na busca por aproveitar oportunidades, conseguem maiores méritos principalmente nos números de dança e canto. Ao lado de um modo mais rico de dizer o texto, em que há a exploração de diversos tons, esses são pontos a seu favor. No todo, não há nenhum grande destaque.

O cenário de Doris Rollemberg e a direção musical de Alfredo Del Penho e de Federico Puppi são, ao lado da direção, os pontos mais altos da montagem. Com elegância e graça, o modo como esses dois elementos abrem espaço para as propostas iniciais do texto corrobora positivamente para os méritos iniciais do trabalho. Eles oferecem um contexto que pode ser geral e específico, oferecendo argumentos para a análise acima descrita. O figurino de Desirée Bastos, cuja proposta veste os personagens em roupas de gala durante toda a peça, não tem justificativas claras. A iluminação de Aurélio de Simoni pouco participa.

Dentre as melhores propostas de “Então...”, talvez esteja a de valorizar o modo como algumas características unem gerações diferentes de uma mesma família para além dos laços de sangue. Isso deve ser valorizado.

*

FICHA TÉCNICA
Texto: Michel Robim
Direção: Isaac Bernat
Elenco: Beth Berardo, Clara Santhana, Gabriel Bulcão, Michel Robim
Cenografia: Doris Rollemberg
Figurinos: Desirée Bastos
Iluminação: Aurélio de Simoni
Assistência de Direção: Camila Abrantes
Direção Musical: Alfredo Del Penho e Federico Puppi
Direção de Movimento: Michel Robim
Direção de Produção: Marcia Queiroz
Direção de Vídeo: Hernane Cardoso
Realização: Michel Robim, Isaac Bernat, Marcia Queiroz, Clara Santhana, e Naine Produções Artísticas Ltda

segunda-feira, 18 de julho de 2016

O figurante (RJ)

Curta nossa página no Facebook: www.facebook.com/criticateatral
Siga-nos no Instagram: @criticateatral

Foto: divulgação

Pedro Henrique Müller

Na paixão pela forma, bom espetáculo perde oportunidades

“O figurante” é o quinto espetáculo da companhia carioca Teatro Voador Não Identificado, vindo depois de “Ponto Fraco” (2011), “Shuffle” (2012), “Tempo real” (2013) e de “O Processo” (2014). Como nos anteriores, há uma paixão de seus realizadores pela investigação através da cena de reflexões sobre o agora. Diferente dos demais, nesse espetáculo, a proposta de jogo que se realiza (e se define) no ato da encenação quase inteiramente cede lugar para um roteiro de texto e de ações ensaiadas previamente e que, como no teatro tradicional, se apresenta para o público. A narrativa gira em torno do universo dos figurantes: o tipo de participação cênica menos privilegiada na hierarquia da função nas produções que envolvem atores. O monólogo, com texto de Luiz Antonio Ribeiro e direção de Leandro Romano, foi defendido, em belo trabalho, por Pedro Henrique Müller. A temporada na Sala Multiuso do Espaço SESC Copacabana encerrou ontem, dia 17 de julho.

A valorosa intenção de humanizar a função de Figurante
A função de Figurante é uma marca de realidade. Ao invés de usar imagens paradas, as produções usam seres humanos para compor o fundo do quadro em cujo primeiro plano a ação principal acontece. Elas fazem isso quando querem oferecer à fruição um argumento em favor da “verdade” da narrativa como se dissesse: “Isto é algo que realmente acontece!” Em outras palavras, os Figurantes servem para aproximar o contexto narrativo do universo de quem lhe assiste, podendo o primeiro ser desde um passado documental até uma história de ficção científica, passando por algo contemporâneo. Por sua função figurativa – daí o nome “Figurante” –, seu envolvimento com a encenação é quase como o do cenário ou o do figurino: compor.

O mérito de “O figurante” é justamente humanizar essa função, ou melhor, lembrar de que, embora sua função seja ilustrativa, quem a desempenha é um ser humano. E é preciso sempre valorizar a vida humana. No texto escrito por Luiz Antonio Ribeiro, um ator é chamado para participar de um teste de vídeo para um comercial, mas sua participação nele acaba sendo como figurante. Em jogo, estão as expectativas dele e o modo como elas podem ser usadas sordidamente pelo mercado. Ou seja, de início, são exatamente as mesmas intenções do célebre musical “A chorus line”, um dos maiores sucessos da história da Broadway, mas sem seu brilho, nem força.

O problema é que, lá pelas tantas, o monólogo abandona suas melhores intenções por outras mais autorreferentes e interessantes por outros motivos que não os inicialmente anunciados. O personagem, recebe um convite para participar de um espetáculo teatral sobre a função de figurante. Essa peça dentro da peça e a peça a que se assiste se confundem e a dramaturgia se perde apaixonada pelos efeitos estéticos dessa confusão. O Figurante que dá nome à obra perde espaço para o desejo dela de se vincular com o agora da encenação em um intenso jogo de palavras que nem sempre tem articulação plenamente clara. De um modo estranho, o Figurante passa a ser secundário em um monólogo que parecia ter quisto valorizá-lo.

O 5º espetáculo da Teatro Voador Não Identificado
É interessante o modo como a ideia de tratar da invisibilidade do Figurante sobrevive pelos esforços da direção de Leandro Romano. Com a ajuda de posters que reproduzem, de forma parada, imagens do ator Pedro Henrique Müller, o quadro resiste ao hermetismo da dramaturgia. Por sua vez, Müller é carismático e faz de sua interpretação um meio envolvente pelo qual o público pode se manter interessado no espetáculo para além da riqueza original de seu personagem. A veia cômica do intérprete, bem desenvolvida e com ótimas oportunidades aqui, garante o sucesso e pode explicar a continuidade dos méritos ao longo da transformação do contexto inicial da narrativa.

O cenário de Elsa Romero e de Ianara Elisa, como já foi dito, colabora bastante bem com a manutenção dos méritos da produção por fornecer a ela reflexões pertinentes. A luz de Lara Cunha, o figurino de Marina Dalgalarrondo e principalmente a trilha sonora de Felipe Ventura e de Gabriel Vaz, pela pontualidade de sua operação principalmente, garantem o bom ritmo que é outro dos valores do espetáculo.

Em “O Figurante”, a estrutura da encenação é menos pautada no jogo e corre, diferente do que se deu nos outros espetáculos da Teatro Voador Não Identificado, menos riscos. Ainda que perca oportunidades de oferecer olhar mais delicado a quem desempenha essa função-título tão desvalorizada, a peça merece aplausos por seu impulso inicial em fazê-lo. Parabéns.

*

FICHA TÉCNICA
Direção: Leandro Romano
Dramaturgia: Luiz Antonio Ribeiro
Elenco: Pedro Henrique Müller
Concepção: Leandro Romano, Luiz Antonio Ribeiro e Pedro Henrique Müller
Cenografia: Elsa Romero e Ianara Elisa
Iluminação: Lara Cunha
Figurino: Marina Dalgalarrondo
Trilha sonora original: Felipe Ventura e Gabriel Vaz
Dramaturgia da cena 14: Daniele Avila Small
Criação da cena 20: Pedro Henrique Müller e Teatro Inominável (Andrêas Gatto, Diogo Liberano, Márcio Machado e Thaís Barros)
Edição de som: LC Varella
Vozes em off: José Mayer e Pedro Henrique Müller
Assistência de direção: Luiz Antonio Ribeiro
Design gráfico: Marcello Talone
Fotografia e edição de imagem: Nan Giard
Filmagem: Clarissa Appelt e Zhai Sichen
Cenotécnica: Fátima de Souza
Costura: Nice Tramontin e Selma Maria da Silva
Direção de produção: Leandro Romano
Produção executiva: Renata Magalhães
Realização: Sesc e Teatro Voador Não Identificado

domingo, 17 de julho de 2016

Galileu Galilei (SP)

Curta nossa página no Facebook: www.facebook.com/criticateatral
Siga-nos no Instagram: @criticateatral

Foto: divulgação


Denise Fraga

Denise Fraga brilha em excelente espetáculo de Brecht dirigido por Cibele Forjaz

“Galileu Galilei” é mais um excelente espetáculo protagonizado por Denise Fraga. A peça, escrita pelo alemão Bertolt Brecht (1898-1956), foi baseada em fatos reais e narra a história do físico italiano que, entre outras coisas, provou que a Terra, girando em torno do Sol, não era o centro do universo. Para fugir da fogueira da Inquisição, ele precisou negar seus próprios estudos, que sobreviveram graças às reflexões possíveis nos países não-católicos e chegaram até os dias de hoje. Dirigida por Cibele Forjaz, a montagem produzida por José Maria tem no elenco também Ary França, Lúcia Romano, Théo Werneck, Maristela Chelala, Vanderlei Bernardino, Jackie Obrigon, Luís Mármora, Silvio Restiffe e Daniel Warren, todos em ótimos trabalhos. Em cartaz até esse domingo, dia 17 de julho, no Teatro João Caetano, na Praça Tiradentes, eis uma ótima pedida na programação carioca.

Um personagem essencial na história
Galileu Galilei (1564-1642) é um dos homens mais importantes da história da humanidade. Suas reflexões, para muito além da astronomia, revelam a complexidade não apenas do seu tempo, mas de toda uma cultura em transformação. Partindo de contribuições de pensadores contemporâneos e antigos e se utilizando dos avanços tecnológicos que uma Itália pós-Renascença lhe possibilitava, ele contribuiu de maneira ímpar para a estruturação de um novo panorama histórico. Sua argumentação científica mudou o lugar de Deus, seu conceito, suas funções, sua relação com os homens, com a política e com a sociedade. Em uma época nunca antes tão marcada pelas guerras religiosas, em que as fronteiras já alargadas do mundo precisavam se solidificar, ele foi definitivo.

Desde os gregos Aristóteles (384 – 322 a. C) e Ptolomeu (90 – 168 d. C.), prevalecia o sistema geocêntrico segundo o qual o sol e todos os demais astros giram em círculos perfeitos e constantes ao redor da Terra, onde há vida. Foi o polonês Copérnico (1473-1543) quem introduziu, como única diferença a esse modelo, a hipótese de que era a Terra que estava no centro. O italiano Galileu foi além. Para ele, em primeiro lugar, isso não era uma hipótese, mas uma verdade. A Terra não só se movia em redor do sol, mas se movia ao redor do próprio eixo e a Lua, que não era uma esfera perfeita, se movia em volta da Terra. Algo assim também acontecia com outros planetas, onde a vida poderia ser possível como aqui. Seus argumentos eram consistentes o bastante para fazer seus estudos célebres por toda a península. O problema foi sua tese de que os versículos bíblicos que diziam o contrário precisavam ser reinterpretados.

Se o dia e a noite, os movimentos das marés, o aparecer e o desaparecer dos astros do céu são obras da física, o que faz Deus? Se os teólogos da Igreja erraram na interpretação da Bíblia, para que eles servem? Tudo isso se parecia demais com o que dizia o padre dominicano Giordano Bruno (1548-1600), morto na fogueira da Inquisição. Para piorar, Galileu estruturou sua obra “Diálogos sobre os dois máximos sistemas do mundo”, lançada em 1632, em uma conversa entre dois homens: um acadêmico inteligente (Salviati) e um padre idiota (Simplício). Nas palavras do segundo, estavam reproduzidas as ideias do então Papa Urbano VIII, que o autor havia conhecido anos antes. Nesse sentido, entre o célebre Copérnico e o incendiado Bruno, o pêndulo do destino de Galileu caia para o pior.

Houve três versões de Bertolt Brecht para essa história, todas elas diferentes no que diz respeito ao seu campo semântico. A primeira (“Das Leben des Galilei”), escrita entre 1937 e 1938, quando o dramaturgo estava na Dinamarca, recebeu uma versão produzida na Alemanha nazista em 1943. Nessa, Galileu Galilei era visto como um herói, que foi vítima da Inquisição, mas ainda assim capaz de colaborar intimamente com a evolução do pensamento humano. A segunda foi reescrita quando Brecht já morava nos Estados Unidos, depois do fim da Segunda Guerra, no calor das bombas atômicas de Hiroshima e de Nagasaki. Diferente da anterior, o protagonista foi visto como um homem comum, tomado pela ambição e comprometido com os próprios vícios. Com a tese final – "Eu te digo: aquele que não conhece a verdade é simplesmente um ignorante, mas aquele que a conhece e diz que é mentira é um criminoso" –, o texto denunciava que o mau uso do conhecimento pode atrasar a evolução da humanidade. No processo de construção dessa adaptação, colaborou o ator britânico Charles Laughton (1899-1962), que interpretou o papel título nas temporadas de Hollywood e da Broadway de 1947. Bertolt Brecht morreu quando estava ensaiando sua terceira possibilidade da história e que, por causa do seu falecimento, infelizmente não chegou a ser concluída. O aspecto mais humano, que revelava melhor a complexidade da questão, se preparava.

O Brasil conheceu ainda uma quarta versão da peça: a que foi dirigida por José Celso Martinez Corrêa, no Teatro Oficina. Ela estreou em São Paulo no dia 13 de dezembro de 1968, dia da promulgação do Ato Institucional número 5, o marco central do início do período mais negro da ditadura militar no país. No elenco, Cláudio Corrêa e Castro atuava no papel principal ao lado de Ítala Nandi, Esther Góes, Fernando Peixoto, Renato Borghi, Raul Cortez, Othon Bastos, Otávio Augusto, Pedro Paulo Rangel e muitos outros atores mais e menos conhecidos hoje. Nessa versão, o final foi de novo modificado, dessa vez, em favor do privilégio à temática da repressão política que o país, e em especial o grupo, vivia. Nessa adaptação do original brechtiano, uma cena de carnaval se tornou uma célebre crítica do grupo a quem apoiava o novo governo ou ainda não tinha até então mais bravamente defendido a democracia extinguida. Essa cena é referida na montagem dirigida por Cibele Forjaz que aqui se analisa e talvez se trate do seu ponto menos unânime.

O mais interessante no todo dessas adaptações é notar a riqueza do personagem. A partir dele, em diferentes momentos da história, temas como a importância do estudo na transformação da sociedade, as mais diversas formas de relacionamento entre Deus e homens, o modo como é (ou não) possível estabelecer diálogo entre o mundo contrarreformista e o que vivemos hoje são tratados. Para adiante de uma leitura rasteira (porque óbvia) da Inquisição como malvada, sobram perspectivas mais profundas, como aquelas que revelam o aspecto político do contexto. Tanto as forças que abafaram como aquelas que eternizaram as contribuições de Galileu Galilei estão no cerne da Guerra dos Trinta Anos (1618-1648), esse talvez um dos conflitos mais importantes da Idade Moderna.

Por volta do centenário da Reforma Protestante, vários reinos que hoje são conhecidos como Espanha, Inglaterra, França, Alemanha e Holanda (entre outros) estavam em uma acirradíssima disputa pela liderança política e principalmente econômica no mundo. Essa só era possível através da posse de colônias na América, África e na Ásia. Lutero (Alemanha), Calvino (França) e Henrique VIII (Inglaterra) haviam colocado em xeque a força do Vaticano de referendar os avanços militares principalmente da Casa de Habsburgo (Sacro Império Romano-Germânico) nessa corrida. Na primeira metade do século XVII, a Europa estava dividida entre União Evangélica de um lado e Liga Católica do outro. Os Tribunais do Santo Ofício eram a bomba atômica (já usada com força há mais de duzentos anos contra os muçulmanos e judeus) em favor da segunda. Eis que, ameaçados (política-economicamente) pelos católicos Habsburgo, os também católicos Valois (da França), leia-se Cardeal Richelieu, entraram na batalha surpreendentemente a favor dos Protestantes. E é nesse momento que a Inquisição precisou ser mais efetiva do que jamais fora.

Amigo de Galileu, o Papa Urbano VIII livrou-o da fogueira, prendeu-o em casa e tentou calá-lo até sua morte, que aconteceu em 1642. Seis anos depois, a Paz de Vestfália foi assinada em favor da liberdade religiosa na Europa. Em 1965, a Inquisição passou a se chamar Congregação para a Doutrina da Fé (que ainda existe!). Em 1992, o Papa João Paulo II finalmente reconheceu o erro da Igreja para com Galileu e, em 2000, para todos os punidos pelo Santo Ofício. A obra de Galileu felizmente conseguiu atravessar os campos de batalha e chegou até Brecht e nós todos. Pelos seus méritos, os de Cibele Forjaz, de Denise Fraga e os de vários outros, está em cartaz no Rio de Janeiro.

Os vários méritos da direção de Cibele Forjaz
A direção de Cibele Forjaz, a partir de caminho dramatúrgico reconstituído por Christine Röhrig, Cibele Forjaz, Denise Fraga e por Maristela Chelala, potencializa a obra. De modo muito sutil às vezes mais, em outras menos, é visível o esforço da encenação em se aproximar do público. Isso atualiza o conceito de teatro didático ao qual Brecht também associou as peças “Mãe Coragem e seus filhos” e “O círculo de giz caucasiano”. A Itália do século XVII, sob vários aspectos um mundo muito diferente do nosso, faz excelentes pontes com hoje através de um linguajar acessível e de cenas bem estruturadas e, de modo brilhante, bem articuladas no todo da peça. O tema – astronomia, física, matemática, teologia – é desenvolvido de maneira a incluir as plateias mais diversas, sem ser nem pedante, nem superficial.

A fluência da encenação, a partir da articulação de vários elementos de diversas origens semânticas, revela o modo como a linguagem teatral mais vigente (leia-se comercial) voltou a abandonar o realismo. Quase todos empenhos de Forjaz em quebrar a ilusão, no esforço do distanciamento brechtiano, vão à falência devido ao público já estar acostumado com a ressignificação de referências. Em outras palavras, usar couro no figurino de cardeais, mulheres interpretando homens, amostragem das coxias, entre outras ações, aumentam o interesse da audiência pelo espetáculo, mas não chegam a fazê-la esquecer de que está em um teatro, como Brecht queria. Nas últimas décadas, a própria Forjaz contribuiu com isso, oferecendo ao público espetáculos que reeducaram o olhar do público de uma forma nada conservadora e muito potente.

O único momento em que a narrativa se quebra, isto é, se desarticula é a cena de carnaval. No início do terceiro terço da peça, marchinhas de carnaval e referências à situação política nacional aparecem em um longo quadro. Apesar de, para quem conhece história do teatro brasileiro, essa ser uma referência à montagem do Oficina, o feito se reduz ao barateamento tanto dos horrores dos tribunais do Santo Ofício quanto os da ditadura militar brasileira. Galileu Galilei escapou de ser queimado em praça pública, os atores do Teatro Oficina estavam sendo espancados e presos enquanto a ex-presidenta Dilma (por mais injustiçada que talvez esteja sendo) ensaia sua aposentadoria em Porto Alegre. Nesse sentido, o quadro estético engorda a narrativa sem levá-la para algo relativamente sólido, embora dê à montagem aspecto de produção politicamente engajada.

Em exuberante composição, Denise Fraga brilha ao lado de ótimo elenco
Théo Werneck, Jackie Obrigon, Silvio Restiffe, Maristela Chelala, Luís Mármora, Lúcia Romano apresentam bons trabalhos, mas Daniel Warren, Ary França e Vanderlei Bernardino se destacam pelo modo como agarram as melhores oportunidades que têm e dão excelentes contribuições. Os ótimos texto e direção ficam ainda melhores em atuações vivas, carismáticas e potentes em que se veem usos do corpo e da voz que elevam as qualidades do todo.

Denise Fraga, com plena exuberância, lidera o elenco na pele do personagem título: presente em todas as cenas e em redor de quem tudo gira. O desafio é cumprido com galhardia a partir do seu natural envolvimento com a plateia, essa fascinada pelo modo envolvente com que a atriz propõe a relação. Seu Galileu é humano: nem tão herói como o primeiro Brecht, nem tão vil quanto o segundo e provavelmente menos visceral do que aquele que deve ter sido concebido pelo Oficina. Sem cumprir nenhuma receita, atriz parece estar disposta a driblar os desafios de um personagem célebre e pronta para obter sucesso em uma construção original. Com muitos méritos, ela narra o personagem que descreve, faz dele argumento de reflexão social, entretém e emociona.

A luz de Wagner Antônio, a cenografia de Márcio Medina e os figurinos e adereços de Marina Reis fazem excelentes contribuições na construção do espetáculo. Poucos elementos, mas usados na grandiosidade de cada detalhe, tornam a narrativa um suntuoso espetáculo. Tudo ocupa o enorme palco do Teatro João Caetano e as mais de duas horas em que “Galileu Galileu” atravessa o tempo com agilidade, Inteligência e relativo bom gosto. A música original e a direção musical de Lincoln Antônio e de Théo Werneck oferecem outros níveis para a narrativa e também para a sua defesa nos dias de hoje positivamente. Em todos os aspectos, parecendo grande e pequeno ao mesmo tempo, o espetáculo exibe uma concepção estética bem amarrada que encanta não só pelo texto e pelas interpretações, mas sobretudo nesses elementos.

Aplausos!
É uma pena que “Galileu Galilei” se despeça hoje da Cidade Maravilhosa depois de já ter se apresentado em várias capitais do país. Que ela fique mais tempo por aqui ou volte para novas oportunidades! Aplausos!



*



Ficha técnica

Texto: Bertolt Brecht

Elenco: Denise Fraga, Ary França, Lúcia Romano, Théo Werneck, Maristel Chelala, Vanderlei Bernardino, Jackie Obrigon, Luís Mármora, Silvio Restiffe e Daniel Warren

Direção: Cibele Forjaz

Trilha Sonora: Lincoln Antônio e Théo Werneck

Cenografia: Márcio Medina

Figurinista: Marina Reis

Iluminação: Wagner Antônio

Produção Executiva: Lili Almeida

Direção de Produção: José Maria

Assessoria de Imprensa: Barata Comunicação

Transportadora Oficial: AVIANCA | Patrocínio Exclusivo: BRADESCO

Realização: NIA Teatro, Ministério da Cultura e Governo Federal