segunda-feira, 30 de junho de 2014

Crazy For You (RJ)

Claudia Raia e Jarbas Homem de Mello protagonizam o musical de 1992
Foto: divulgação

Jarbas Homem de Mello

“Crazy for you” é, antes de qualquer outra coisa, uma homenagem ao teatro musical. Na história escrita por Ken Ludwig a partir de “Girl Crazy” (1930), Bobby Child (Jarbas Homem de Mello) é um dançarino de sapateado sem sucesso nos testes com o grande produtor de teatro Bela Zangler (Marcos Tumura) em Nova Iorque nos anos 30. Por isso, sua mãe o força a assumir suas responsabilidades no banco familiar e o envia a cobrar uma hipoteca em Nevada, no interior dos Estados Unidos. Lá, Polly Baker (Claudia Raia) está prestes a perder o teatro onde sua mãe brilhava no que agora só restam velhas lembranças e dívidas não pagas. Para conquistar Polly, Bobby se apresenta como Zangler e se dispõe a construir um espetáculo que possa salvar o teatro da hipoteca (que ele mesmo veio cobrar). Com músicas dos irmãos George e Ira Gershwin, o musical estreou no início dos anos 90 na Broadway e em Londres, recebendo agora montagem brasileira com versão assinada por Miguel Falabella e direção por José Possi Neto. Infelizmente, a temporada carioca encerrou no último sábado, no Vivo Rio, mas há de lotar plateias em outras capitais brasileiras.

A primeira homenagem que “Crazy For You” faz ao teatro é que o personagem Bela Zangler é uma versão honrosa do realizador americano Florenz Ziegfield (1869-1932), um dos grandes responsáveis pelo teatro musical americano moderno. Sua figura célebre é chave para entender os gloriosos anos 20 dos Estados Unidos e as confluências do teatro burlesco, de vaudeville, de opereta e as stravaganzas que resultaram em “Show Boat”, em 1927, o primeiro musical nesse formato que hoje conhecemos. A quebra da bolsa de Nova Iorque, em 1929, foi um golpe fatal para muitos produtores e sem dúvida agravou seus problemas de saúde. “Crazy For You” tem músicas compostas por George Gershwin (1898-1937) e com letras de Ira Gershwin (1896-1983), irmãos donos de uma carreira que inclui grandes trabalhos, como o musical “Porgy and Bessy” (1935). “Someone to watch over me” (do musical “Oh, Kay!”), “I got rhythm” (de “Girl Crazy”) e “They can`t take that away from me” (de “Shall we dance”) são canções standards do repertório americano que o público mundial conhece e gosta.

A segunda homenagem é o formato. Construir um musical a partir de sucessos já anteriormente compostos foi o primeiro formato do gênero, depois substituído por trilha sonoras totalmente originais em histórias bastante melodramáticas, apelo mais realista e crítica social, jazz e street dance, ópera rock, até as grandes produções tecnológicas que vemos hoje. Escrito em 1992, “Crazy For You” parece ter sido escrito nos anos 30. Depois de quase 2 mil apresentações e muito prêmios importantes, o espetáculo provou que esse tipo de narrativa ainda tem o seu público. No Brasil, não poderia ser diferente (principalmente porque é bem feito!).

Na montagem atual, Miguel Falabella não se ocupa em verter para o Brasil o que foi originalmente composto positivamente. A crítica que muitos fazem de que esse tipo de teatro é uma importação americana é tola. É sim uma importação americana e não há mal algum nisso, como também não há nos espetáculos baseados na alemã Pina Bausch, nos ballets clássicos, nas tragédias gregas, no drama e na comédia inglesa, etc. A versão de Falabella desempenha a difícil tarefa de traduzir as canções para a língua vernácula dentro do melhor possível. A história é tão bem contada de modo geral que as melodias se sobressaem positivamente ao lado dos números de dança.

Jarbas Homem de Mello está brilhante como Bobby Child. O intérprete canta bem, dança bem e tem carisma. A forma como o jogo é estabelecido por ele com a plateia faz com que se torça em favor dele na conquista e no sucesso do seu personagem. As intenções são inteligentes e claras, há ironia, sagacidade e força na construção do personagem. Claudia Raia, a grande estrela da produção, consegue também ótimos resultados, empregando sua experiência, sua técnica e disposição na viabilização da caipira Polly. Apesar de uma voz um tanto quanto anasalada no canto, produzindo um resultado nada bom nesse quesito, o trabalho em cena confirma a carreira brilhantemente construída. Marcos Tumura, Carla Vasquez, Rodrigo Negrini e Liane Maya completam os destaques positivos em um elenco todo composto por bons trabalhos principalmente em termos de interpretação.

Na direção de José Possi Neto, deve-se fazer destaque para a cena de espelho entre Tumura e Mello, mas também para a excelente articulação das cenas em que os números musicais entram com o mínimo de marcas possíveis. Os belíssimos cenários de Duda Arruk e figurinos de Fabio Namatame ratificam o compromisso do espetáculo em encher os olhos, entreter e emocionar como fizeram e fazem os bons expoentes do gênero através das décadas e dos lugares por onde essas grandes produções se dão a ver. 

Sem desmérito para nenhum elemento e com muitos elogios à obra no todo e em cada uma de suas muitas partes, “Crazy For You” encanta sobretudo pela generosidade de Claudia Raia em favor do talento e da técnica de Jarbas Homem de Mello, mas também do majestoso elenco que há em volta de si em mais essa produção. Grandes estrelas, afinal, não se fazem sozinhas. Aplausos!

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Ficha Técnica:
Texto: Ken Ludwig
Músicas: George Gershwin
Letras: Ira Gershwin
Versão Brasileira: Miguel Falabella
Direção: José Possi Neto
Direção Musical e Vocal: Marconi Araújo
Coreografias Originais: Susan Stroman
Supervisor de Coreografia: Jeff Whiting
Direção de Coreografia: Angelique Ilo
Produtores Associados: Claudia Raia e Sandro Chaim
Produção Geral: Sandro Chaim
Elenco: Claudia Raia, Jarbas Homem de Mello, Marcos Tumura, Liane Maya, Rodrigo Miallaret, Hellen de Castro, Rodrigo Negrini, Alessandra Peixoto, Andrezza Meddeiros, Carla Vazquez, Daniel Cabral, Eduardo Martinz, Elcio Bonazzi, Jefferson Ferreira, João Sá, Mariana Barros, Mariana Gallindo, Mariana Matavelli, Marilice Cosenza, Mateus Ribeiro, Matheus Paiva, Nina Sato, Patrick Amstalden, Paulo Benevides, Raquel Quarterone e Paulo Santos.
Cenografia: Duda Arruk
Figurino: Fabio Namatame
Design de Luz: Wagner Freire
Design de Som: Tocko Michelazzo
Visagismo: Feliciano San Roman e Henique Mello
Supervisora de Sapateado: Chris Matallo
Diretora Residente: Glaucia da Fonseca
Realização: Ministério da Cultura, Coarte Raia Produções e Chaim XYZ Produções

Samba Futebol Clube (RJ)

A peça tem ótimo texto e direção de Gustavo Gasparani
Foto: divulgação

Excelente programa

O único jeito de nos relacionarmos com a arte é vasculhando em nós mesmos uma ponte de acesso a ela. E sempre há uma. “Samba Futebol Clube” conta através da música o amor do brasileiro pelo futebol, principalmente o carioca. Sem que haja uma narrativa, o espetáculo, com roteiro, direção e com produção de Gustavo Gasparani, disserta sobre esse esporte em suas várias possibilidades: como chegou ao Brasil, o nascimento e a divisão de clubes, a rivalidade nas torcidas, o brilho dos craques, os casos pitorescos da vida pessoal dos jogadores, seus entrevistadores e suas participações na mídia, a relação familiar em função dos times, os campeonatos mundiais, etc. Em cartaz no Centro Cultural do Banco do Brasil, a produção tem belíssima composição de elenco, talvez sei aqui um dos melhores conjuntos de atores e cantores a que a programação de teatro do Rio de Janeiro teve acesso nos últimos anos. O público ovaciona justificadamente.

Alan Rocha, Cristiano Gualda, Daniel Carneiro, Gabriel Manita, Jonas Hammar, Luiz Nicolau, Pedro Lima e Rodrigo Lima, com coreografia assinada por Renato Vieira e com direção musical de Nando Duarte, exibem excelente carisma, alta qualidade técnica vocal e afinação, preciosismo no uso dos instrumentos musicais ao vivo nas cenas e ótimas interpretações. O ritmo da dramaturgia e da direção de Gustavo Gasparani, assistido por Erika Riba, se apresenta em exímia fluência de forma que o espetáculo é orgânico, vivo e alegre. A articulação entre as cenas tem suas marcas corretamente apagadas, os temas evoluem sem barrigas, há equilíbrio, harmonia em toda parte. No elenco, nas coreografias e nas músicas, há boas doses de quase tudo para todos os gostos. De fato, um espetáculo para todas as idades e preferências musicais e esportivas.

Como se não bastassem as boas atuações tanto no que diz respeito ao texto quanto à intepretação das canções, “Samba Futebol Clube” tem ainda belo apelo visual. Os figurinos de Marcelo Olinto auxiliam no ritmo, na evolução dos quadros e na complexidade dos pontos de vista sobre o tema. Junta-se isso o desenho de luz de Paulo César de Medeiros igualmente potente.

Os excertos de textos de José Lins do Rego, Paulo Mendes Campos, Armando Nogueira, Nelson Rodrigues, Carlos Drummond de Andrade e de Ferreira Gullar e os arranjos das canções desde Pixinguinha a Nelson do Cavaquinho, passando por Moraes Moreira, Jorge Ben Jor, Gonzaguinha, João Bosco e por Aldir Blanc e chegando ao Rappa e ao Skank fazem dessa montagem um programa  a ser visto principalmente em época de Copa do Mundo no Brasil. "Samba Futebol Clube", que tem recebido tantos e justos elogios, faz vir à tona o amor ao futebol e a todo o seu universo presente no DNA do brasileiro.

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Ficha Técnica
Realização: Centro Cultural Banco do Brasil
Patrocínio: EDF Norte Fluminense, Eletrobras e Banco do Brasil
Roteiro, direção e produção: Gustavo Gasparani.
Elenco: Alan Rocha, Cristiano Gualda, Daniel Carneiro, Gabriel Manita, Jonas Hammar, Luiz Nicolau, Pedro Lima e Rodrigo Lima
Direção musical: Nando Duarte
Direção de movimento/coreografias: Renato Vieira
Cenografia: Marcelo Lipiani
Figurino: Marcelo Olinto
Iluminação: Paulo Cesar Medeiros
Cenografia digital - Thiago Satuffer/Studio prime
Pesquisa de textos: Joao Pimentel
Pesquisa musical: Alfredo Del-Penho
Conteúdo audiovisual: Studio Prime
Assistente de direção: Erika Riba
Preparação vocal: Maurício Detoni
Projeto gráfico: Mary Paz Guillén
Visagismo: Beto Carramanhos
Produção: Coisas Nossas Produções Artísticas e Sábios Projetos

Cock - Briga de galo (RJ)

No centro, Debora Lamm em mais um excelente trabalho
Foto: divulgação

O bom jogo de poder

“Cock – Briga de galo” é sobre poder. Sobre o quanto você (acha que) pode modificar a vida de alguém, sobre os prêmios em caso dessa vitória ou sobre as consequências resultantes dessa derrota. Na superfície narrativa, John (Felipe Lima) conhece W (Debora Lamm) depois de estar casado há sete anos com M (Márcio Machado) e nunca na vida ter tido relações heterossexuais. O acontecimento divide sua cabeça e é aí que começa a “partida”. Idealizado por Felipe Lima, a primeira montagem desse texto do britânico Mike Bartlett (mesmo autor do brilhante “Contrações") no Brasil vem com boa direção de Inez Viana e está em cartaz no Teatro Poeira, em Botafogo, zona sul do Rio de Janeiro. Destaque para o brilhante trabalho de interpretação de Debora Lamm.

Interessada mais no jogo strindberguiano de poder do que propriamente em se identificar com o protagonista, a plateia espera pelo fim enquanto há motivos para dúvidas. No texto de Bartlett, M e W são como dois lados de uma mesma moeda (Favor notar que W é M ao contrário.), pois somente a justa equanimidade entre os dois personagens pode dar força para história em que John precisa escolher se abrirá mão do relacionamento de sete anos com M para ficar com a gentil W. Nesse sentindo, M oferecerá os sete anos de convivência e o quanto ele sabe sobre John para vencer a disputa. W, por sua vez, trará o carinho, o afeto, a docilidade a seu favor. O sarcasmo de M será a gentileza de W. A estabilidade financeira de M e os poucos ganhos mensais de W estarão de um lado enquanto a insegurança de M e a determinação de W estarão de outro e assim por diante. Bartlett reforça que John precisa escolher um dos dois, ratificando seu interesse pelo jogo em desfavor da construção de uma retrato de uma realidade. Na direção de Inez Viana, essa relação é sugerida, mas não acontece de todo infelizmente.

Márcio Machado, movimentando a cabeça de um lado para o outro em forma de “não” em quase todas as frases quase repete o seu personagem de “Maravilhoso” (texto de Diogo Liberado, direção também de Inez Viana), apenas sugerindo uma certa sensibilidade e humana insegurança que deve haver por trás de suas opiniões manifestadamente fortes e afiadas. Não há nada sedutor em M que evidencie chances de John, interpretado por Felipe Lima, continuar com ele. Com a voz em um grave lugar seguro, Felipe Lima, cuja beleza não é negada, corretamente sustenta o personagem-chave em um limbo de sensações. É fácil chegar até o seu John, mas positivamente é difícil alcança-lo. Suas opiniões mornas adequadamente são aquilo que há de irritar os dois personagens antagonistas, o que justifica um trabalho positivo de Lima. No entanto, os melhores momentos da peça estão quando chega W, de Debora Lamm, e, depois, F, de Hélio Ribeiro.

Nas primeiras cenas, Debora Lamm dá a ver sua W como uma espécie de Macabéa (“A hora da estrela”, Clarice Lispector), um misto sem forma e sem vida que representa um oásis confortável para John depois do bélico M. É muito ternamente que a docilidade da personagem vai ganhando caráter enfrentativo e sobretudo complexidade com o passar das cenas. Porque constrói uma figura carinhosa sem ser boba, não de todo altruísta, mas também interessada no próprio bem estar, Lamm eleva a complexidade de W e a distancia de M. A dúvida sobre quem John deve escolher quase desaparece. Felizmente, a entrada de F (“Father” talvez) , pai de M, volta a equilibrar o jogo e bem prepara o fim. A participação de Hélio Ribeiro é especialíssima: o personagem do pai que vem defender o filho e ajuda-lo a reconquistar o namorado já seria tocante por si só não fosse a forma graciosa com que Ribeiro se movimenta pelo espaço, gesticula e diz o texto.

De um modo geral, isto é, para além das contribuições de cada personagem, o jogo construído por Inez Viana, assistida por Luiz Antonio Fortes, a partir do texto de Bartlett, é vibrante. Postos em arena, os personagens estão rodeados pelo público nos quatro lados. Não há cenários, nem adereços, os figurinos não mudam e tudo acontece somente no texto e na contra-cenação, o que exibe um teatro vigoroso excelentemente meritoso. As cenas de nudez e de sexo são momentos de rara beleza que evidenciam uma inteligência estética, visual, cênica de Inez Viana que é bastante elogiável. Como um todo, “Cock – Briga de galo”, que tem ótima paleta de cores e de formas nos figurinos de Júlia Marini, e bons momentos na iluminação de Renato Machado e na trilha sonora original de João Callado, agrada e elogia o público firmemente.

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Ficha Técnica
TEXTO - Mike Bartlett
TRADUÇÃO - Eduardo Muniz e Ricardo Ventura
DIREÇÃO - Inez Viana
ELENCO - Felipe Lima, Debora Lamm, Márcio Machado e Helio Ribeiro
IDENTIDADE VISUAL – Gabriel Medeiros
FIGURINO - Julia Marini
LUZ - Renato Machado
TRILHA SONORA - João Callado
DIREÇÃO DE MOVIMENTO - Dani Amorim
ASS. DE DIREÇÃO - Luiz Antonio Fortes
PRODUÇÃO EXECUTIVA – Miguel Mendes
GERENCIAMENTO DO PROJETO – Gabriela Mendonça
DIREÇÃO DE PRODUÇÃO – Paula Salles
GESTÃO E PRODUÇÃO – PRIMEIRA PÁGINA PRODUÇÕES CULTURAIS
IDEALIZAÇÃO – FELIPE LIMA
REALIZAÇÃO – SEVENX PRODUÇÕES ARTÍSTICAS

quarta-feira, 25 de junho de 2014

As três irmãs (RJ)

Elenco de "As três irmãs" em cena
Foto: divulgação

Muitos méritos

Há muitos méritos na montagem de “As três irmãs”, de Anton Tchekhov, que a diretora Morena Cattoni brilhantemente assina. Em cartaz no pátio do Casarão Austragésilo de Athayde, no bairro Cosme Velho, a peça tem ótimos trabalhos de interpretações de Paula Sandroni, Gisela de Castro e de Julia Deccache nos papéis-título. Principalmente por ser raro alguém investir no realismo psicológico com tanta coragem, vale a pena ver esta montagem.

Escrita em 1901, a peça “As três irmãs”, do russo Anton Tchekhov (1860-1904), trata de uma ferramenta psicológica de que o ser humano dispõe para não enfrentar a realidade mais dura. Olga (Paula Sandroni), Macha (Gisela de Castro), Irina (Julia Deccache) e Andrei (Rodrigo Cirne) são os irmãos Prozorov que há onze anos não moram mais em Moscou, mas que conservam dessa cidade uma lembrança um tanto quanto turva. Quando a peça começa, é aniversário de 20 anos de Irina, a mais jovem. De um modo geral, para todos, incluindo os visitantes, a vida na pequena cidade de interior onde a história acontece é monótona e cheia de decepções. Principalmente para as três irmãs, os sonhos vão ficando cada vez mais difíceis de se realizar com o passar dos anos e as soluções dos problemas vão sendo postergados em um desânimo crescente. Ir para Moscou, lugar idílico onde tudo parece ser melhor, fica gradativamente mais impossível terrivelmente. No texto, como se tivesse uma faca cega nas mãos, um dos maiores escritores russos faz sangrar os leitores aos poucos, entretendo com conversas frívolas e com duelos melodramáticos para, no final, apresentar a situação desoladora. Não há para onde ir. Sessenta anos depois, o dramaturgo Edward Albee irá escrever uma história similar em “Quem tem medo de Virgínia Woolf?”. Morto o filho imaginário de Marta e de George, o casal precisará sentar e resolver seus próprios problemas. Finda a última chance de um dos irmãos Prozorov irem para Moscou, será preciso enfrentar a realidade. Lá como cá, a história continua na cabeça do espectador.

Quanto às interpretações, há que se elogiar Sandroni, Castro, Deccache e Cirne, mas também os ótimos trabalhos de Cássio Pandolph, como Tchebutikin, e de Natasha Corbelino, como Natasha. No realismo psicológico, não há tipos, mas figuras consistentes dentro das quais a história acontece. Nos nomes destacados, é possível identificar o que está por trás de cada silêncio, de cada comentário, de cada ato por mais contido que possa ser. Parafraseando Vera Karam, há um incêndio sob a chuva rala, um fogo que insiste em roubar oxigênio e existir apesar da água que não pára de cair. É bonito ver o trabalho desses intérpretes com óbvios elogios à direção.

O único problema da montagem dirigida por Morena Cattoni, assistida por Daniel Chagas, é a má utilização do belíssimo espaço. Para quem está sentado na plateia de “As três irmãs”, pouco importa que haja um casarão belíssimo próximo se esse lugar estiver às costas. Sentada nos fundos do casa onde morou o escritor Austragésilo de Athayde (1898-1993), a plateia, durante as quase duas horas de espetáculo, vê apenas um jardim esteticamente muito interessante no início da peça, mas prejudicial com o passar do entardecer. A temperatura baixa no inverno e os mosquitos virão no verão, mas, mais importante, a ausência de iluminação cênica desprivilegia desde já os momentos e faz do ritmo maravilhosamente lento de Tchekhov um carro substancialmente parado. Não se entende porque, diante da meritosa decisão de fazer a peça inteira (sem cortes) nesse espaço, não se o utiliza de forma mais inteligente, substituindo a ausência de luz pelo fornecimento de novas paisagens.

Não há dúvidas de que as redes sociais são esses lugares imaginários nos quais se deposita a atenção quando não se quer pensar sobre a vida. Aplausos ao grupo que viu que “As três irmãs” ainda é muito contemporâneo.

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FICHA TÉCNICA
Texto: Anton Tchekhov
Direção: Morena Cattoni
Assistente de direção: Daniel Chagas
Idealização: Paula Sandroni, Gisela de Castro e Morena Cattoni

Elenco: Arthur Rozas, Carlos Neiva, Cássio Pandolph, Chica Oliveira, Gisela de Castro, Julia Deccache, Jean Machado, José Gomide, Marcelo Morato, Natasha Corbelino, Paula Sandroni, Paulo Roque e Rodrigo Cirne.

Figurino: César Soares
Direção de arte: Luciana Craveiro
Produção: Maria Fernanda Marques
Coordenação do Casarão Austregésilo de Athayde: Clara Sandroni
Preparação vocal: Verônica Machado

domingo, 22 de junho de 2014

A moça da cidade (RJ)

Lu Camy (na foto), Dida Camero e
Gabriel Delfino Marques brilham no elenco
Foto: divulgação

A feliz estreia de Rodrigo Padolfo na direção

É uma delícia ver “A moça da cidade”. Com pouquíssimas pretensões e muito investimento estético, a peça diverte e emociona enquanto apresenta excelentes trabalhos de interpretação, de direção, de cenário, figurino, trilha sonora, iluminação e de projeções. Ou seja, em cada parte, há qualidade que reforça o compromisso do todo em viabilizar um bom espetáculo. Em cartaz na Sala Multiuso do Espaço Sesc Copacabana, cuja programação tem sido bastante especial, “A moça da cidade” marca a estreia do premiado ator Rodrigo Pandolfo na direção. No elenco, Dida Camero, Gabriel Delfino Marques e principalmente Lu Camy brilham.

O texto, originalmente “Uma moça da cidade”, foi escrito pelo ator e dramaturgo mato-grossense Anderson Bosh (é possível ler o texto clicando aqui). Recebeu montagem em 2000 e em 2007, tendo viajado pelo país nas duas oportunidades. A montagem atual modifica diversos pontos do texto, quase produzindo uma nova dramaturgia que infelizmente não está creditada. O resultado que se vê em cena é bastante positivo.

A história de Ambrosina é contada como uma novela de rádio. O público está dentro de um estúdio em pleno anos 40 quando os técnicos e os atores entram e tomam seus lugares. Os microfones são ligados e os rádio-atores, com o texto na mão, começam o programa “Sua vida em novela”, construído a partir de histórias enviadas pelos ouvintes. “A moça da cidade” foi escrita por Ambrosina, que já tem mais de oitenta anos. Ainda muito jovem, ela sai da cidade interiorana de Paradeiro da Alegria para fazer o curso ginasial no Rio de Janeiro. Na cidade grande, se hospeda em uma pensão e, numa noite, vê um homem vestido de branco por cuja figura se apaixona. A partir de então, começa a saga de reencontrar esse homem. A tese é simples: disposta a encontrar um amor ideal e distante, a heroína não percebe que sua felicidade está bem mais próxima.

Na encenação de Rodrigo Pandolfo, a história de narrada passa a ser interpretada. O estúdio ganha cores dos cenários por onde Ambrosina passa: a pensão de Dona Rosa, o Passeio, o Cine Odeon, a festa de formatura. Dida Camero e Daniel Delfino Marques se sucedem na construção dos diversos personagens enquanto Lu Camy se concentra em Ambrosina, a protagonista. O melhor é identificar como a superficialidade do enredo se equilibra com o aparato estético que o dá a ver, resultando em um espetáculo complexo, mas nada difícil de assistir. “A moça da cidade” é um excelente espetáculo de entretenimento sobretudo.

Os três atores conseguem os melhores resultados dentro do tamanho de seus personagens. Dida Camero tira proveito de cada segundo sob o refletor para exibir uma interpretação que critica e se auto-critica, diverte e parece lhe dar divertimento também. Os L`s pronunciados na rádio-narração, o sotaque uruguaio de Rosa, o olhar sedutor da professora na formatura são pequenos detalhes permitem pensar o quanto cada detalhe foi bem pensado. Gabriel Defino Marques tem excelente construção de tipos. Os R`s e a embocadura do locutor de rádio da primeira metade do século XX, a simplicidade de Leitinho, a afetação do obstetra são marcas que, no boa medida farsesca, permitem reconhecer facilmente os personagens e oferecem um ritmo vibrante para a narrativa. Do início ao fim, a Ambrosina de Lu Camy é apaixonante em sua simplicidade tosca. O tipo nordestino enfezado, determinado, duro expõe a sensibilidade de alguém que quer, antes de tudo, ser feliz. Ambrosina enternece.

Não só a trilha sonora, mas principalmente a sonoplastia de Marcelo Alonso Neves fazem de “A moça da cidade” um espetáculo. Destaque para os momentos em que Dona Lininha lava louças e serve-se de bebida. Na elegância de sempre, Miguel Pinto Guimarães faz o cenário participar efetivamente em pequenos detalhes de forma inteligente. As linhas retas, as formas limpas, o privilégio da madeira reproduzem simbolicamente o estúdio da rádio em anos 40-50, mas que também podem ser a pensão adequadamente. Nessas mudanças de ambiente espacial e narrativo, a iluminação de Tomás Ribas e o figurino de Bruno Perlatto são meritosas. Nesse último, destaque para a forma como os figurinos de Ambrosina e de Lininha conversam.

Com direção de movimento de Victor Maia, Rodrigo Pandolfo, assistido por Victor Varandas, consegue um excelente trabalho de direção não só de atores, mas de toda produção em si. A estrutura se movimenta artisticamente em um todo articulado e nobre que diverte e encanta. Eis aqui uma ótima produção na programação de teatro carioca.

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Ficha técnica
Texto: Anderson Bosch
Direção: Rodrigo Pandolfo
Elenco: Gabriel Delfino Marques, Lu Camy e Dida Camero
Direção musical: Marcelo Alonso Neves
Trilha sonora: Rodrigo Pandolfo
Preparadora corporal: Ana Achcar
Direção de movimento e coreografias: Victor Maia
Iluminador: Tomás Ribas
Cenário: Miguel Pinto Guimarães
Figurino: Bruno Perlatto
Visagismo: Sid Andrade
Direção de vídeo: Felipe Bond
Direção de produção: Tatianna Trinxet

Cine-Monstro (RJ)

Enrique Diaz interpreta 13 personagens nesse monólogo
Foto: divulgação

Interessante

“Cine-Monstro” (“Monster”, no original) não é nem de longe a melhor peça do canadense Daniel MacIvor, também autor de “In on it” e de “À primeira vista”. Mesmo assim, é um texto interessante que resulta um espetáculo igualmente. Interpretado e dirigido por Enrique Diaz, que também assina a iluminação, a peça quer ser um “o show de um homem só sobre a natureza da maldade” (conforme subtítulo original), mas é principalmente um espetáculo que relembra a plateia do quanto Diaz é bom ator. Tendo cumprido temporadas no Oi Futuro do Flamengo e no Teatro Eva Herz na Cinelândia, esse monólogo é merecedor dos elogios que tem recebido desde que estreou.

Na história, os 13 personagens interpretados por Enrique Diaz entram e saem rapidamente, formando um tortuoso quebra-cabeça a la Esher. Um adolescente (Monty) conta a história do vizinho (Al Boyles) que torturou e matou o pai durante três dias ao som de “Raindrops keep falling on my head”. Essa história aparecerá também como uma ideia na cabeça de um drogado (Joe) que a contará para dois roteiristas que realizarão um filme. Al, um alcoólatra que frequenta reuniões de AAs, e Janine são um casal que assistirá a esse filme e, depois de uma briga, conceberão um filho (Adam). Tudo isso foi, além de tudo, tema de um outro filme (“Hack”) não acabado pelo seu diretor David Buster Foster. Como a visão de uma cobra que morde o próprio rabo, fica bem difícil identificar a estrutura narrativa de “Cine-Monstro”, principalmente durante a fruiçãoda peça. Sabe-se, no entanto, que, em todas as figuras, está a expressão de um certo tipo de cultura da violência que MacIvor denuncia nesse texto escrito na segunda metade dos anos 90.

Como ator aclamado por excelentes trabalhos em produções anteriores, Enrique Diaz atende à expectativa, interpretando bem todos os personagens. O problema está no texto, pois não há uma só figura que seja forte o suficiente para segurar a peça como um todo, de forma que energia de “Cine-Monstro” evapora tão logo o espectador se canse da tentativa frustrada de descobrir o que cada personagem tem a ver com os demais, onde cada figura está na linha dramatúrgica da história. A cena do AA, em que os vários participantes são todos interpretados por Diaz, é um símbolo disso: é interessante ver como o intérprete lida com todas essas figuras, mas, enquanto se contempla isso, perde-se o foco, o assunto da peça.

O cenário de “Cine-Monstro”, que teve colaboração de direção de Marcio Abreu, é composto principalmente de vídeos projetados na parede branca. Os méritos estéticos dos vídeos isoladamente ofuscam a dramaturgia ainda mais. Considerando que a peça parte de uma suposta frase de Leonardo Da Vinci, “Uma pessoa não tem o direito de não gostar do que não conhece”, entende-se que o monólogo, ao longo de cento e vinte minutos, quer apresentar o mal que vive no lado muitas vezes obscuro do ser humano. A opção do cenário, em vários momentos, oferece outras alternativas para olhar, prejudicando o ritmo, o fluxo da narrativa.

Daniel MacIvor é essencial no pensamento contemporâneo e faz bem à programação teatral. O sentimento de amargor que os personagens de “Cine-Monstro” deixam são vitais nessa cultura superficial, politicamente correta e ”coxinha” que paira em nossa sociedade em paralelo a tanta violência assustadoramente crescente. Por tudo isso, eis aqui um espetáculo interessante, com um excelente ator, que sugere uma reflexão por sobre a violência, mas que pouco aprofunda o tema.

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FICHA TÉCNICA
De DANIEL MACIVOR
Direção, iluminação e atuação ENRIQUE DIAZ
Tradução BARBARA DUVIVIER e ENRIQUE DIAZ
Colaboração na direção MARCIO ABREU
Colaboração na iluminação MANECO QUINDERE
Trilha sonora original LUCAS MARCIER
Cenografia e projeto gráfico SP SIMONE MINA
Vídeos BATMAN ZAVAREZE e NATHALIE MELOT
Assistente de direção e colaboração na tradução KELI FREITAS
Assistente de iluminação LEOPOLDO VICTOR e LEANDRO BARRETO
Preparação Vocal LETICIA CARVALHO
Diretor de Cena TIAGO MORO
Operador de luz LEANDRO BARRETO
Fotografia NATHALIE MELOT
Designer Gráfico FERNANDO BERGAMINI
Assessoria de Imprensa FACTORIA COMUNICAÇAO
Assistente de produção RJ TON DUTRA
Produção HENRIQUE MARIANO e ENRIQUE DIAZ

Às terças (RJ)

Foto: divulgação
Marcélli Oliveira, à direita, assina o texto dessa ótima comédia



Recomendadíssimo!

“Às terças” é uma ótima comédia em cartaz no Shopping da Gávea, na zona sul do Rio de Janeiro, a partir de texto de Marcélli Oliveira, com Gottsha e Stela Maria Rodrigues no elenco. Divertidíssima, a história gira em torno de quatro amigas que se conheceram na sala de espera de um mesmo analista. Tem-se aqui um retrato da contemporaneidade, quando, ao invés de engolir os próprios problemas, as pessoas voltam-se para terapias, remédios tarja preta e para todo o tipo de ajuda que possa fazê-las viverem melhor. Ao lado de “Casório”, a peça marca a estreia de Alexandre Contini na direção.

Desde que seu primeiro namorado faleceu em um acidente, Velma (Marcélli Oliveira) só consegue se envolver com homens que manifestem algum tipo prejudicial de peculiaridade, como, por exemplo, preferência por sexo sado-masoquista e vícios. Já Berenice (Carina Sacchelli) sustenta a falta de tempo para relacionamentos mais profundos com o foco no trabalho e com a a atenção exagerada na forma física. Laura (Gottsha) vive insegura em relação ao seu atual marido, dez anos mais jovem que ela. Por fim, Jandra (Stela Maria Rodrigues) toma mais remédios que devia, é excêntrica e bastante solitária. Há cinco anos, todas tinham em comum o mesmo analista quando decidiram investir nas conversas mantidas na sala de espera ao invés de levar para adiante suas terapias formais. Os encontros, no entanto, parecem ter dado pouco resultado até que uma delas anuncia que está com uma doença terminal. É aí que o texto de Oliveira se mostra melhor: a morte, o aborto, o uso de drogas, os problemas familiares, enfim nenhum assunto entra em disputa com a comédia, mas faz dela ainda melhor. O resultado estético é uma dramaturgia que expressa a relatividade de todo juízo de valor e que reproduz uma visão de mundo mais leve, mas nem um pouco descomprometida. Todas as histórias se modificarão a partir da notícia que uma das quatro traz sobre sua própria morte anunciada. Cada uma irá experimentar partes de si até então não descobertas ou evitadas. Longe dos clichês, “Às terças” não é uma peça sobre mulheres contra homens, sobre meia-idade ou sobre amizade, mas sobre pessoas enfrentando os próprios problemas com bem-vinda e salvadora coragem. Principalmente, a peça é sobre graça, sobre a importância da leveza, sobre amor-próprio.

O maior mérito da direção de Alexandre Contini, assistido por Diogo Camargos, é o de abrir espaço para os tempos de apresentação e de crítica de cada personagem por si própria e por sobre as demais. O gênero comédia dramática situa personagens claros em curva narrativa suficientemente clara, mas sobretudo recupera a importância da situação. Em “Às terças”, o espectador reconhece os momentos e o que cada um faz com as personagens de forma que as regras de causa e de efeito vão produzindo boa evolução. Diferentes climas, lugares, reflexões vão sendo oferecidas em potência positivamente vital para Velma, Berenice, Jandra e para Laura e consequemente para o público que principalmente se diverte.

Gottsha e Stela Maria Rodrigues apresentam excelente trabalho já esperado enquanto Marcélli Oliveira e Carina Sacchelli surpreendem ficando ao lado das colegas mais experientes. O conjunto do elenco é responsável por um resultado vibrante, que faz gargalhar principalmente pela forma crítica com que se estruturam.

O figurino de Sol Azulay é bastante positivo na forma como dá a ver as idiossincrasias de cada personagem e a passagem de tempo. O cenário de Lorena Lima expressa com força o parque de diversões abandonado onde parte da história acontece, mas nada faz com os demais lugares, ficando para a iluminação de Daniela Sanches quase toda a responsabilidade nesse sentido, no que esse  se cumpre bem.

Jandra, de Stela Maria Rodrigues, é de todas a personagem mais carismática de “Às terças” talvez porque ela seja a figura mais sintomática da nossa sociedade. Vale a pena pensar sobre isso. A peça é recomendadíssima!

*

FICHA TÉCNICA
Texto: Marcélli Oliveira
Direção: Alexandre Contini

Elenco:
Gottsha / Laura
Stela Maria Rodriygues / Jandra
Marcélli Oliveira / Velma
Carina Sacchelli / Berenice

Cenários: Lorena Lima
Figurinos: Sol Azulay
Iluminação: Daniela Sanches
Diretor assistente: Diogo Camargos
Idealização: Carina Sacchelli
Patrocínio: Aços F. Sacchelli
Produção: Bem Legal Produções - Carlos Grun
Assessoria de Imprensa: JSPontes Comunicação – João Pontes e Stella Stephany

terça-feira, 17 de junho de 2014

Desalinho (RJ)

Kelzy Ecard, Carolina Ferman e Gabriel Vaz em novos
bons trabalhos de interpretação
Foto: divulgação
Para iniciados

Infelizmente, em “Desalinho”, Marcia Zanelatto comete o mesmo erro que em “Deixa clarear”, assinando um texto sobre alguém célebre e sobre sua obra apenas para seus fãs. Nessa produção, também dirigida por Isaac Bernat, quem não sabe qualquer coisa sobre a poetisa Florbela Espanca provavelmente sairá do teatro sem saber exatamente a que assistiu. O texto consiste em uma bonita justaposição de vários versos octossílabos (não todos!), alguns assinados por Espanca (1894 – 1930), outros por Fernando Pessoa (1888-1935), ambos os poetas portugueses. Temos uma enfermeira (Kelzy Ecard), uma paciente (Carolina Ferman) e um terceiro personagem (Gabriel Vaz) e vemos que boa parte da narrativa se dá em um quarto de hospital psiquiátrico, mas não se sabe exatamente o que liga essas três figuras a menos que se faça uma pesquisa que auxilie o espetáculo a se contar. Com ótimas interpretações e plástica bastante bonita, “Desalinho”, que cumpriu temporada no Espaço Sesc Arena Copacabana, é um bom programa para iniciados.

Ora chamada de Mariana, e lá pelas tantas chamada de Florbela, a personagem de Carolina Ferman está com uma camisa de força no centro do palco quando a peça começa. Então, entra uma enfermeira (Kelzy Ecard) e um diálogo se dá. Antes, houve uma cena inicial com Ferman e Gabriel Vaz, correndo pelo círculo externo da plateia da arena. Sabemos que há um sentimento de amor que une os personagens dos dois atores, sabemos que ela está internada em hospital, sabemos que há uma certa admiração e cumplicidade entre a enfermeira e a paciente, mas todo o resto fica pairando sem norte na narrativa que é contada em versos, repleta de imagens e com uma métrica livre. O casal é de amantes? São os dois a mesma pessoa em duas visões? São parentes? O que a levou para o hospital? O hospital se dá antes ou depois ou durante a cena entre os dois? Considerando a história do teatro, tudo é possível quando é bem defendido e, como o texto de “Desalinho” abre diversas portas e não fecha alguma, tampouco a encenação, o espectador pode se encantar com os poemas, mas será responsável apenas pelas contribuições que der, pois a dramaturgia quase nada oferece nesse sentido. Os desafios da direção e dos intérpretes ficam imensos.

O espectador iniciado, que leu o release enviado pela assessoria de imprensa, que conhece literatura portuguesa, que se interessa por poesia sabe que Florbela Espanca viveu no início do século XX em uma zona rural de Portugal, que morreu jovem não tendo sido feliz no amor e que sua relação aparentemente incestuosa com o irmão Apeles é tema de diversas análises. Também sabe que seus sonetos ajudam a estruturar o neorromantismo e sua obra está ao lado de parte da de Fernando Pessoa, o maior poeta português do século XX. No programa entregue aos espectadores de “Desalinho”, nada disso consta e a plateia precisa, assim, dar conta do sentido da peça quase sem ajuda. Uma reflexão surrealista pode ajudar, pois, independente de por qual ponta começar, a plateia estará diante de uma peça em que os versos ecoam, as imagens se destacam, as intenções não articuladas sugerem uma posição. No entanto, saber que Mariana é o nome da esposa do pai de Florbela e que Florbela é justamente o nome da poetisa, além ler no release que o personagem de Gabriel Vaz se chama Irmão (o que seria uma referência a Apeles) são indicativos que podem atrapalhar, pois estas pistas facilmente levariam a um espetáculo biográfico pobre além de equivocado. Para chegar ao ponto central de “Desalinho”, seja ele qual for o que o espectador achar que for, será preciso desviar-se dos entraves e se concentrar nas belas interpretações.

Carolina Ferman, Gabriel Vaz e Kelzy Ecard são atores de primeira linha no teatro carioca, aqui elogiados outras vezes por trabalhos anteriores. A impressão positiva permanece. “Desalinho” aparece com beleza no modo como o elenco diz os versos, apaga as rimas, contracena e oferece emoção. Isaac Bernat, assistido por Sarah Viana, constrói com habilidade cenas cheias de sugestão, mas sem imposições, aparentemente ratificando uma boa perspectiva do difícil texto de Zanelatto. O que não é claro na dramaturgia permanece não claro intencionalmente nesta encenação.

A cenografia de Doris Rollenberg, os figurinos de Desiree Bastos, a iluminação de Aurélio de Simoni e a direção musical de Alfredo Del-Penho e de João Callado auxiliam a direção a construir um quadro muito aberto semanticamente, mas belo. As opções se mostram limpas, sóbrias, específicas, deixando a efervescência das imagens apenas para o texto.

Se antes de assistir à peça, o espectador tiver visitado a obra de Florbela Espanca e as análises sobre ela, certamente fruirá “Desalinho” com muito mais potência. Deve apenas lembrar-se, nesse caso, de que a relação entre a poetisa e seu irmão é apenas suposta e de que somente parte de sua obra justifica esse ponto de vista. E de que pegar a parte pelo todo é quase sempre empobrecer a obra e o artista.

*

Ficha Técnica
Elenco – Carolina Ferman como Mariana, Gabriel Vaz como Irmão
Atriz convidada - Kelzy Ecard como Enfermeira
Texto e idealização - Marcia Zanelatto
Direção - Isaac Bernat
Direção de arte - Doris Rollemberg
Direção musical - Alfredo Del-Penho e João Callado
Direção de movimentos – Marcelle Sampaio
Iluminação - Aurélio de Simoni
Figurino - Desirèe Bastos
Fotografia – João Julio Mello
Vídeo – Bárbara Copque
Designer – Bianca Amorim
Direção de produção – Roberto Jerônimo
Supervisão geral – Transa Arte e Conteúdo Ltda.
Realização – Espaço Sesc
Apoio institucional – CAL – Casa das Artes de Laranjeiras

domingo, 15 de junho de 2014

Relações aparentes (RJ)

Frank Borges, à esquerda, apresenta
bom trabalho de interpretação
Foto: divulgação

Problemas na concepção

“Relações aparentes” celebra a força de um bom texto que consegue sobreviver mesmo a uma concepção ruim de encenação. Com a belíssima Antônia Mayrink da Veiga Frering no papel de Sheila, o espetáculo sofre principalmente por uma má compreensão das funções narrativas de cada personagem. A peça é um vaudeville assinado pelo dramaturgo britânico Alan Ayckbourn com direção de Ary Coslov e de Edson Fieschi e com bom trabalho de interpretação de Frank Borges. Tato Gabus Mendes e Giselle Batista  integram o elenco dessa peça que cumpriu temporada no Teatro Sesc Ginástico no centro do Rio de Janeiro. Destaque positivo para o cenário de Marcos Flaksman.

Escrito no verão de 1965, o texto de Alan Ayckbourn, mesmo autor de “Isto é o que ela pensa”, parte do princípio cômico dos mal entendidos. Duas pessoas conversam, mas uma tem um referente e outra tem outro. Os jovens Greg e Ginny estão juntos há pouco tempo e Greg sabe que, no passado, ela se envolveu afetivamente com um homem mais velho. Apesar de estranhar a chegada frequente de flores e de chocolates, bem como a presença de um par de chinelos masculinos que não são seus, ele quer, mesmo assim, conhecer os pais de Ginny para pedir-lhes a mão da filha em casamento. Quando a peça começa, é um domingo pela manhã, quase na hora da partida do trem que leva a uma região rural da Inglaterra. Ginny diz para Greg que está indo visitar seus pais, mas, na verdade, ela está indo procurar o ex-namorado Philip para pedir que ele pare de lhe importunar. No quadro seguinte, Greg, que pegou sorrateiramente o mesmo trem que Ginny, chega antes a casa de Philip e de Sheila, pensando serem eles os futuros sogros. No imbróglio, Sheila fica sabendo que é traída pelo marido.

O maior problema da montagem atual de “Relações aparentes” (“Relatively speaking”) é a concepção que coloca lado a lado os papéis de Greg e de Sheila. Trata-se de um erro de leitura, pois o protagonista é unicamente Greg, a figura ingênua (e, por isso, mais engraçada) do texto. Ele é enganado pela namorada que diz que vai visitar os pais, por Philip que confirma ser seu futuro sogro e, por fim, por Sheila que lhe consegue uma lua de mel no exterior. É ainda o personagem que mais sofre, o que mais se alegra, aquele que faz a narrativa girar em círculos cada vez menores como em todo bom vaudeville. Ao proporcionar uma visão de Sheila como alguém também sem relativa expressão, ironia, sarcasmo e autocrítica, a direção quebra a hierarquia diegética e entrunca o ritmo de narração negativamente. Como está, com Greg e Sheila usando variações de azul e com Ginny e Philip vestindo variações de laranja, a peça une personagens em grupos errados, desfaz o contraponto e emperra o fluxo.

Frank Borges está bem na sua apresentação de Greg, explorando o potencial cômico de seu personagem protagonista. O efeito só não é melhor porque raramente os demais personagens lhe fazem clara oposição. Gisele Batista deixa ver muito discretamente que sua Ginny mente sobre sua viagem para proteger o namorado, isto é, faz uma coisa ruim com objetivos nobres. Tato Gabus Mendes praticamente não possibilita corporalmente evidenciar que seu personagem Philip ainda ama Ginny e planeja viajar com ela. Por fim, a Scheila de Antônia Frering perde os melhores momentos do texto que seriam justamente primeiro descobrir que é traída, depois vingar-se do marido e, por fim, dizer as palavras finais sobre o assunto. Mendes, Batista e Frering limitam-se a tornar o texto dramático em teatro, o que é pouco. A esses personagens, falta vida.

Marcos Flaksman constrói um cenário que corresponde ao realismo de que precisa partir o vaudeville. No momento em que o espectador precisar perder-se em significações para lugares mal feitos, deixará de prestar a atenção nas reviravoltas da história. Não é isso o que acontece felizmente. Seu trabalho não é melhor visto pela luz de Maneco Quinderé que “chapa” a cena tanto do apartamento como do pátio, sem expressar a passagem de tempo nem tampouco dar ao cenário maior profundidade. O figurino de Marília Carneiro cumpre a concepção equivocada da direção com substancial beleza.

Quando um texto é bom, falta ao teatro fazer a outra metade do caminho. Aqui não fez.

*

FICHA TÉCNICA
Direção: Ary Coslov e Edson Fieschi
Texto: Alan Ayckbourn
Tradução: Alexandre Tenório
Elenco: Tato Gabus Mendes, Antonia Frering, Giselle Batista e Frank Borges

Cenário: Marcos Flaksman
Luz: Maneco Quinderé
Figurino: Marília Carneiro
Assessoria de Imprensa: Will Comunicação – Luiz Menna Barreto/Alberto Bardawil
Diretor Geral de Produção: Luciano Borges
Produtores Assossiados: Antonia Frering, Edson Fieschi e Luciano Borges
Realização: Borges & Fieschi Produções Culturais

Qualquer gato vira-lata tem uma vida sexual mais sadia que a nossa (RJ)

Victor Frade, Marcos Nauer e Monique Alfradique em cena
Foto: divulgação

Excelente comédia!

“Qualquer gato vira-lata tem uma vida sexual mais sadia que a nossa” é uma surpresa bastante boa. O título pressupõe mais uma comédia de humor rasteiro, com roteiro pífio e interpretações muito aquém do bom teatro. Nada disso! De fato, é uma comédia, mas o texto de Juca de Oliveira é recheado de bons momentos que estruturam uma trama complexa. Além disso, os trabalhos de interpretação de Monique Alfradique, Victor Frade e de Marcos Nauer são bastante meritosos e os investimentos estéticos da produção dirigida por Bibi Ferreira bastante ricos. Em cartaz no Shopping da Gávea, a peça que, entre 1998 e 2002, levou mais de um milhão de pessoas ao teatro, recebe nova montagem assinada pela Brainstorming Entretenimento.

Juca de Oliveira escreveu “Qualquer gato vira-lata...” para a filha que havia terminado um namoro. Na peça, Tati é uma estudante de direito que namora Marcelo, um boa vida, que vive do dinheiro do padrasto, não trabalha e não estuda. Depois de mais uma briga, Tati assiste a uma palestra com o Prof. Conrado, que compara o comportamento humano com o dos animais dentro da teoria evolucionista do britânico Charles Darwin. Em linhas gerais, segundo Conrado, a mulher deve ser a conquistada, ocupando assim corretamente o seu lugar na evolução. O contrário disso é responsável pelo acanhamento masculino, esse sinal do desequilíbrio natural da sociedade contemporânea. Durante as aulas que Conrado dá à Tati, o público fica diante de um posicionamento bastante machista, obsoleto e reprovável dos diálogos de Juca de Oliveira, mas não de forma inconsequente. Apesar de dar certo, a nova Tati que vemos nascer trará outras consequências, nem todas elas positivas para Conrado e negativas para Marcelo. O texto ganhou o troféu APETESP em 1999 na montagem também dirigida por Bibi Ferreira, com Rita Guedes (Tati), Marcos Pasquim (Conrado) e com Roger Gobeth (Marcelo) no elenco. Em 2011, virou filme dirigido por Tomas Portella, com Cleo Pires (Tati), Malvino Salvador (Conrado) e com Dudu Azevedo (Marcelo).

Para o espectador, a experiência é bastante interessante. A postura crítica diante dos três personagens, do que eles dizem e do como se expressam, não impede o divertimento causado pelas situações em que eles se envolvem. Como são três figuras limítrofes, não é possível ficar totalmente ao lado de nenhum deles. Mesmo assim, o desejo de saber como a forma do texto vai terminar não diminui a torcida para que os personagens se resolvam. Quanto mais a narrativa da peça avança, mais a plateia se divide e mais difícil fica fazer opções. Nesse sentido, a habilidade de Juca de Oliveira está expressa na construção de um roteiro que é engraçado e inteligente ao mesmo tempo, em que a comédia rasgada brasileira se mantém sem dar supostamente lugar ao humor europeu. Para isso, claramente, foi preciso uma boa direção e ótimas interpretações.

É muito difícil encontrar concílio entre estereótipos e profundidade, porque se tratam de conceitos opostos. Brilhantemente, em “Qualquer gato vira-lata...”, encontram-se um professor bastante racional em que se sugere um certo fracasso discreto apesar do discurso da prosperidade. Interpretado por Victor Frade, Conrado não é sensual, mas transmite uma segurança que é, por fim, atraente. Com bastante carisma, o Marcelo de Marcos Nauer, por sua vez, é tão escroto quanto sexy, tão frio quanto sensível, tão inseguro quanto simples positivamente, expressando a sua parcela de complexidade que a montagem impõe. Por sua vez, Monique Alfradique dá a ver uma Tati belíssima que sintetiza os opostos masculinos, oferecendo uma terceira posição. A inteligência se encontra com a beleza, a sensualidade com a elegância, a sensibilidade com o equilíbrio. Com vigor, a protagonista faz jus ao seu lugar na narrativa, trazendo bom lugar para o conflito aparecer, se desenvolver e evoluir. Vale destacar a agilidade da direção de Bibi Ferreira, assistida por Rafaela Amado e por André Garolli, construindo cenas em ritmo fluente, cheio de detalhes e com pausas muito bem postas.

Como elogiado no início, o cenário (Renato Scripiliti e Natália Lana), o figurino (Bruno Perlatto), a trilha sonora (Vicente Coelho) e a iluminação (Daniela Sanchez) prestigiam a comédia, oferecendo potência no cuidado de cada trecho dessa narrativa, além de uma concepção realista amarrada e inteligente.

Não se pode deixar de dizer que “Qualquer gato vira-lata tem uma vida sexual mais sadia que a nossa” ganha elogios apenas pelas intenções e pelas suas boas articulações. Sabiamente, como pouco se vê, a Brainstorming Entretenimento viabilizou uma temporada em horário alternativo antes de oficialmente estrear o espetáculo para a crítica e para o público geral. Como se faz com as grandes produções, esses momentos anteriores “esquentam” o trabalho de forma a valorizar a peça com o que de melhor a obra possa conter. O resultado positivo, assim, não vem “do nada”, mas de um trabalho que merece ser aplaudido. E o é.

*

FICHA TÉCNICA:
Texto: Juca de Oliveira
Direção: Bibi Ferreira
Diretores Assistentes: André Garolli e Rafaela Amado
Elenco: Monique Alfradique (Tati), Victor Frade (Conrado) e Marcos Nauer (Marcelo).
Cenografia original: Renato Scripiliti
Cenografia: Natália Lana
Figurinos: Bruno Perlatto
Iluminação: Daniela Sanchez
Gerente de Produção: Tiago Morenno
Direção de Produção: Lucas Mansor
Produtores: Juliana Reder e Frederico Reder
Realização: Brainstorming Entretenimento

quarta-feira, 11 de junho de 2014

O cachorro riu melhor (RJ)

Reiner Cadete, Julio Rocha e Danielle Winits em cena
Foto: divulgação

Excesso ruim de sensualidade

“O cachorro riu melhor” tem boas interpretações, mas a concepção de direção compromete negativamente o trabalho. O espetáculo é uma tradução de Artur Xexéo para a comédia de Douglas Carter Beane e tem Danielle Winits, Júlio Rocha, Reiner Cadete e Sara Freitas no elenco. A direção de Cininha de Paula não favorece o trabalho do elenco, exibindo uma concepção difícil. A produção é da MF e de Sandro Chaim. 

O americano Douglas Carter Beane, que ficou famoso pelas versões de “Xanadu” e de “Mudança de Hábito” (agora o recente “Cinderella”) para os palcos da Broadway, escreveu “O cachorro riu melhor” em 2006, tendo sido o espetáculo indicado ao Tony de Melhor Peça. O título “The little dog laughed” mais ou menos quer dizer que os aparentemente mais fracos também vencem. A história versa sobre o poder de manipulação de uma agente em relação ao seu agenciado, no caso da versão brasileira, um ator global. Diane agencia Mitchell, prestes a se tornar o protagonista de um filme, que se apaixona pelo garoto de programa Alex e que quer assumir publicamente o seu novo relacionamento. Na visão de Diane, esse seria o tipo de notícia que arruinaria seus planos, pois um galã precisa, pelo menos aparentemente, gostar de mulheres. Por outro lado, Mitchell também tem um objetivo forte: ele quer ser feliz e, para isso, precisa tomar algumas decisões sobre sua vida profissional a revelia do que determina a sua agente. Nesse sentido, no texto de Beane, como em qualquer bom texto, o protagonista só é forte se forte também for o antagonista. Em outras palavras, o tamanho do mérito tem total relação com o tamanho do desafio a ser vencido. Na montagem brasileira de “O cachorro riu melhor”, o problema está na concepção de direção. 

A direção de Cininha de Paula parece negativamente subestimar os trabalhos de interpretação de Reiner Cadete (Alex) e de Júlio Rocha (Mitchell/Matheus), fazendo-os vestir e desvestir suas roupas muitas vezes logo nos primeiros minutos de cena e permitindo-os deixar ver composições de personagens cheias de afetação, trejeitos e de comportamentos estereotipados que constrangedoramente superficializam os personagens. Observando as marcas e os trabalhos de contracena, os problemas desses dois personagens não são páreo para a força de Diana (Danielle Winits), dramaturgicamente privilegiada por ser a narradora da história. É possível notar que o personagem de Diana também está descaracterizado: o trabalho de Winits reforça o falar coloquial e direto com o público e, como acontece com Cadete e com Rocha, o elemento mais importante da peça parece ser o corpo sarado da intérprete. Assim, como nas novelas popularescas das sete, “O cachorro riu melhor” parece um grande (e ruim) pretexto para exibir corpos sensuais em um contexto pobre na melhor das hipóteses. 

À parte esses entraves, se se procurar bem, encontram-se bons momentos nos trabalhos de interpretação que sobrevivem a essa insistência em exibi-los apenas como corpos sensuais expostos em vitrine. Cadete, Rocha e Sara Freitas movimentam bem as palavras nas frases, conduzem bem as intenções, fazem a sua parte na estruturação das cenas que organizam a história. Danielle Winits tem ótimo diálogo com o público, dando naturalidade para os diálogos brilhantemente. 

De todos, o pior elemento em cena é o cenário de José Dias. No centro, uma cama ilustra o hotel onde Matheus se encontra com Alex. A cama é redonda, os lençóis são pretos, há um espelho sobre ela, as mesas laterais são de madeira pintadas de vermelho bem como as cadeiras. Todo o carpete do palco é vermelho. Em nenhuma parte, o cenário contribui com o tipo alta classe que o texto, de um modo geral, tematiza (com exceção das cenas de Alex e de sua namorada). Não se supõe que um ator global que mora em São Paulo, quando em viagem ao Rio, se hospede em um hotel que não um de alto padrão. Da mesma forma, os restaurantes e demais lugares onde esses personagens se encontram não teriam mesas como a que se veem. E não há motivos estéticos que justifiquem um carpete vermelho na mais cuidadosa das leituras. O figurino de Sônia Soares também não é bom. Seguindo, talvez, a concepção da direção, reforça a mera sensualidade dos atores, vestindo Júlio Rocha em calças e em camisas apertadíssimas que fogem da elegância. Winits aparece em vestidos decotados e igualmente ratificantes de um figura que não é da personagem Diana. 

Por fim, o tema da manipulação, que provavelmente fez desse texto meritoso em montagens internacionais, não sobreviveu na montagem brasileira porque a direção não soube cortar o laço entre Júlio Rocha e Danielle Winits e seus personagens sensuais nas novelas da Globo. Aqui a questão do galã que precisa abafar a homo ou a bissexualidade prevaleceu negativamente. E esse é um tema cafona em um mundo em que os homens gays atraem as mulheres héteros e os homens gays além de conquistarem cada vez mais o respeito da sociedade como um todo felizmente. Ao negar isso, “O cachorro riu melhor”, porque é uma comédia, termina com um gosto amargo de inconveniência. 

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Ficha Técnica
Autor - Douglas Carter Beane
Versão Brasileira - Artur Xexéo
Direção - Cininha de Paula
Elenco - Danielle Winits, Júlio Rocha, Rainer Cadete e Sara Freitas
Cenário - José Dias
Figurinos - Sonia Soares
Trilha Sonora - Ricardo Leão
Assistente de Direção - Gustavo Klein
Produtor Executivo - Edgard Jordão
Produção Geral – Sandro Chaim
Realização – MF e Chaim Produções
Patrocínio: Ministério da Cultura, Vivo e Porto Seguro

terça-feira, 3 de junho de 2014

Uma pilha de pratos na cozinha (RJ)

O cenário e o figurino são assinados por Daniele Geammal
Foto: divulgação

Racional

Em “Uma pilha de pratos na cozinha”, os excelentes cenário e figurino de Daniele Geammal revelam mais do universo de Mario Bortolotto do que todos os demais elementos. Primeira direção de Alexandre Borges, o espetáculo, cujo projeto ajuda a celebrar os 30 anos da companhia paulista Cemitério dos Automóveis, tem boa interpretação de Rodrigo Rosado, mas um mal desempenho dos demais atores do elenco. Em cartaz no Teatro Glaucio Gill, vale a pena ver a peça pela importância desse que é um dos maiores dramaturgos da história contemporânea do teatro brasileiro.

“Uma pilha de pratos na cozinha” começa quando Daniel (Akin Garragar) entra no apartamento de Júlio (Rodrigo Rosado) e o encontra absorto, bebendo em sua mesa. O diálogo entre os dois inicia e temas como mulheres, bebidas e drogas surgem. Breno (Lozano Raia), o síndico, também aparece em busca de drogas. O último personagem que entra é Cristina (Silvana D’Lacoc). Então, fica-se sabendo que ela e Júlio têm uma história em comum que pode ter terminado para os dois, para apenas um deles ou pode não ter terminado. Nesse contexto, não é possível dizer se os personagens vivem bem ou mal, mas apenas que vivem, estando todos eles além de qualquer moral, livres de qualquer crítica, libertos de qualquer lei de causa e de efeito. Em Bortolotto, autor dos célebres “Nossa vida não vale um Chevrolet” e “Homens, santos e desertores”, a vida existe independente das condições, impondo consequentemente a sua poética. De um modo geral, não é o que se vê nessa montagem infelizmente.

O trabalho de Alexandre Borges resulta em uma encenação enfeitada em que os atores se esforçam para dizer bem o texto, posicionar-se corretamente sob a luz de Aurélio di Simoni, situar-se no cenário de forma adequada. Equivocadamente a montagem está comportada demais e o erro aqui não é apontado diante de um certo irrevogável, mas por uma manifesta incoerência da concepção da direção em relação ao texto de Bortolotto. Os diálogos de “Uma pilha de pratos na cozinha” não opinam sobre os personagens: não há divisão em cenas, não há justificativas claras para o pertencimento dessas figuras ao lugar onde a peça acontece, não há motivos expressos para eles saírem ou para entrarem. Como em Beckett, dadas as devidas proporções, eles apenas estão e essa é sua resistência, sua força, seu mérito. Ao tentar dar sentido para as ações, ao apresentar uma psicologização dos personagens, Borges tira do espectador o privilégio máximo de ser único capaz de refletir sobre a situação.

No elenco, Rodrigo Rosado é o único que consegue a contento apagar as marcas de um texto previamente decorado e aproximar, assim, Júlio do público. A ideia de um todo complexo, vivo e natural se dá a ver em sua atuação: o Júlio de Rosado se entedia com a presença de Daniel com a mesma força que lhe dá atenção, se comove com Cristina com a mesma indiferença que a vê drogar-se. O personagem protagonista infelizmente é o único que é parte do espaço, embora Silvana D`Lacoc consiga esse resultado com sua Cristina em alguns momentos também.

Diferente do uso do termo que muita gente faz, uma interpretação naturalista não é aquela próxima do real. Primeiro, a ideia de real é um tema cada vez mais controverso em um mundo em que ladrões são eleitos deputados e passarelas caem sobre taxis na Linha Amarela. Segundo, natural vem de natureza, um contexto nada racional em que mães comem seus filhotes, camarões se alimentam de fezes e quase tudo que é bom é também mau. Herdeiro do teatro de Plínio Marcos, Mario Bortolotto precisa ter seu realismo naturalismo valorizado. 

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FICHA TÉCNICA:
Texto: Mário Bortolotto
Direção: Alexandre Borges
Elenco: Rodrigo Rosado (Júlio) Silvana D’Lacoc (Cris), Akin Garragar (Daniel), Lozano Raia (Breno)
Iluminação: Aurélio di Simoni 
Assistente de direção: Vivian Duarte
Cenografia e Figurino: Daniele Geammal 
Administração financeira: Letícia Nápole
Programação Visual: Thiago Ristow
Gerente de produção: Anne Mohamad
Direção de produção: Aline Mohamad
Assistente de produção: Ayrton Miguel 
Assessoria de Imprensa: Minas de Ideias
Produção Geral: Fabricio Chaniello e Fábio Amaral 
Realização: Ymbu Entretenimento

domingo, 1 de junho de 2014

As coisas (RJ)

A atriz Flávia Reis faz a voz da Boneca Já, um dos
pontos altos de "As coisas"
Foto: divulgação

Divertido

“As coisas” é um gracioso espetáculo musical para crianças a partir do livro homônimo de Arnaldo Antunes. Em cartaz no Teatro Leblon, a peça propõe às crianças divertirem-se com o significado das palavras e aos adultos reconhecerem a potencialidade de cada sentido e de suas expressões. Em cena, Flávia Reis, Julia Schaeffer e Guilherme Miranda, dirigidos por Alexandre Boccanera, fisgam a atenção da plateia, sugerindo um tipo de entretenimento bastante interessante.

O pé que segura o homem não é o mesmo pé de abacaxi. Rosa pode ser uma flor, uma cor ou uma pessoa. A pereira dá peras e o Seu Pereira vende peras. Essas brincadeiras de palavras e de suas significações sustentam a peça “As coisas”, que se apresenta com grande carisma. Em vários momentos, a plateia repleta de crianças de todas as idades fica silenciosa, quebrando para momentos de enorme agitação. Para os adultos, o que acontece é quase outro espetáculo: é bonito ver a relação íntima entre os intérpretes e sua audiência. Os pontos altos são a carismática boneca Já (assinada por Raimundo Bento) e o excelente uso de vídeos produzidos ao vivo a partir de imagens de objetos que se transformam em outros. A direção de Alexandre Boccanera tem o mérito de fazer com o palco pareça continuar a plateia e vice-versa, fazendo com que os objetos ganhem vida a partir da ótima articulação de contratos narrativos com o público.

Não há propriamente uma história e talvez esse seja um dos grandes méritos de “As coisas”. O que prende o espectador não é o desenrolar de uma trama, mas a possibilidade de cada objeto poder virar outra coisa ou simplesmente ter sua expressão revelada. A partir do cenário de Aurora dos Campos e do figurino de Ronaldo Fraga, as figuras cujos nomes são os mesmos de seus intérpretes estabelecem um lugar alternativo que nem é a realidade além do palco e nem é um campo narrativamente definido. Ou seja, tudo pode acontecer, pois nem mesmo as regras da história foram estabelecidas. Há um destaque positivo também para a trilha sonora de Guilherme Miranda, que participa do texto tanto com canções quanto com a viabilização de sons para os objetos.

O livro “As coisas” recebeu o Prêmio Jabuti de Poesia, em 1993, tendo sido adotado pelo Ministério da Educação (MEC). Agora é um espetáculo do Grupo Teatro Portátil cheio de méritos. A ver!

*

FICHA TÉCNICA:
Direção: Alexandre Boccanera
Elenco: Flávia Reis, Julia Schaeffer e Guilherme Miranda
Elenco substituto: Ana Moura e Laura Collor
Direção Musical: Guilherme Miranda
Direção de Arte: Ricky Seabra
Cenografia: Aurora dos Campos
Figurino: Ronaldo Fraga
Boneca: Raimundo Bento
Iluminação: Aurélio de Simoni
Direção de Produção: Alexandre Boccanera
Produção Executiva: Alessandra Azevedo
Realização: Teatro Portátil

Contrações (SP)

Débora Fallabella e Yara Novaes em cena
Foto: divulgação

Essencial!

            “Contrações” é nada menos que excelente. O dramaturgo inglês Mike Bartlett tinha quase 28 anos quando escreveu essa peça em 2008. Um ano antes, o autor havia escrito um roteiro para rádio (“Love Contract”) baseado em uma pesquisa americana que revelava que 31 entre 80 empresas solicitaram, em 2006, que seus funcionários expusessem aos seus superiores se se relacionavam amorosa ou sexualmente com seus colegas de serviço. Na peça, temos uma gélida Gerente (Yara Novaes) que recebe em sua sala a vendedora Emma (Débora Falabella) para confirmar rumores de que está acontecendo uma quebra de contrato no item relações entre funcionários. A direção de Grace Passô, autora de “Amores surdos” (dirigido por Rita Clemente), aproxima o espetáculo do público não apenas por seu tema, mas por um forte apelo sensorial. Assim, antes de “pegar” pela razão, “Contrações” alcança o espectador pelos sentidos. O resultado é vibrante.
            Na maioria das montagens desse texto pelo mundo, o tom frio está expresso pelas formas exageradamente equilibradas, pelo predomínio do branco, a firmeza dos penteados e os passos em saltos altos, pelas expressões sempre ou verticais ou horizontais e pela quase ausência de diagonais. A versão brasileira, no entanto, vai muito além. No cenário de André Cortez, há uma tubulação de ar condicionado que corta o palco. Além disso, a ampla existência de janelas deixa pensar que a sala está no alto de um edifício, longe da rua e do calor. Closes de altíssima definição da pele humana atuam como papéis de parede, de forma que o espectador vê de perto a textura de uma derme de homem caucasiano. Nos figurinos, também assinados por Cortez, vemos, em ambas personagens, a combinação clássica de tailleur a la Channel cujas estampas em cores fortes expressam uma regularidade sem curvas. Tudo isso é base estética para o falar monocorde da personagem Gerente (Yara Novaes), dona do escritório onde a peça acontece. Dentro do tecnicismo, cada funcionário é avaliado conforme cumpre sua função sem desvios e consequentemente sem humanidade. O padrão caucasiano de raça humana, as relações interpessoais convertidas em números, o comportamento formal e emburrecido são esforços sociais que criam base para uma sociedade segura, conceito esse que é combatido brilhantemente por Bartlett e por Passô nesse espetáculo idealizado pelo Grupo 3 de Teatro. Onde está homem? Onde estão as diferenças que fazem ver o homem? - São questões que o espetáculo provoca.
            A montagem é expressionista no melhor uso do termo. É, afinal, a partir da Gerente, que toda a relação entre Emma (Débora Fallabella) e Estevão (o personagem aparece tanto quanto Rebecca em “Rebecca” de Daphne du Maurier) se descortina para o público. Quanto mais fria fica(m) a Gerente (e seu escritório), mais vulnerável Emma aparece diante do público. Inadvertidamente, o relacionamento entre Emma e Estevão se prolonga na história. O flerte fica mais intenso e um filho nasce. De um lado, o casal de funcionários precisa cada vez mais do emprego. De outro, a empresa reconhece neles alto poder de lucratividade, o que lhe impede de demiti-los. Positivamente, assim, o problema se mostra tão difícil de resolver quanto fortes são os heróis. Na narrativa, o ápice se alonga, sustentando a atenção do público, esse conduzido a uma revolta cada vez maior. Expressivamente, Emma vai se curvando, apodrecendo, apagando sua identidade enquanto o público se prepara para terrivelmente encontra-la tão Sem Nome quanto a Gerente desde o início é.
            Do lado de fora, as forças se opõem. Emma e Gerente conduzem os músicos que pontuam os temas de cada cena. A parede do fundo e a quarta parede serão quebradas em momentos específicos por Emma, essas tentativas terroristas de estraçalhar o orgulho, fazendo aviões atravessarem edifícios altos. O jogo de cena, cujos momentos são articulados para não fazer o ritmo cair, é incisivo, ácido e essencial.
            Débora Fallabella e Yara Novaes ganharam o Prêmio APCA por suas contribuições nesse trabalho, o que confirma a avaliação positivíssima de suas atuações. Tanto em uma interpretação como na outra, o jogo sórdido de poder que leva ao emburrecimento é apresentado em potência, com uma crítica clara e com um compromisso estético e social bastante nobre. Esse modelo de gestão nascido na revolução industrial precisa ser discutido sob pena da sociedade se desculturalizar. “Contrações” é, por tudo isso, um espetáculo essencial na programação de teatro brasileira.

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FICHA TÉCNICA:
Texto: Mike Bartlett.
Tradução: Silvia Gomez.
Direção: Grace Passô.
Elenco: Débora Falabella e Yara de Novaes.
Cenário e Figurinos: André Cortez.
Luz: Alessandra Domingues.
Trilha Sonora: Morris Picciotto.
Direção de Produção: Gabriel Paiva.
Idealização: Grupo 3 de Teatro