domingo, 23 de outubro de 2011

As Conchambranças de Quaderna (RJ)

Foto: divulgação
Aula de farsa com Inez Viana

"As Conchambranças de Quaderna”, que estreou no Rio de Janeiro em novembro de 2009, é o primeiro espetáculo profissional dirigido por Inez Viana, atriz de “A mulher que escreveu a Bíblia”, espetáculo participante do 16º Porto Alegre em Cena (2009). Escrita em 1987 por Ariano Suassuna (1927), autor do famoso “O Auto da Compadecida” (1955), a peça conta originariamente três histórias: “Casamento com cigano pelo meio”, “A caseira e a Catarina ou O processo do Diabo” e “O caso do coletor assassinado”, todas elas tendo como fio condutor o personagem Quaderna, protagonista de “A Pedra do Reino”, do mesmo autor. Na produção de Viana, no entanto, a última história não aparece sem que isso prejudique a montagem que, inteligente, usa o gênero Farsa plenamente e se estabelece, por isso, confortável e valorosa. De um modo geral, mas também particular, não há um só elemento do espetáculo que não corrobore para a sua própria viabilização. O resultado é sucesso em todas as apresentações de público e de crítica nas várias cidades brasileiras em que, nesses dois anos, tem se apresentado. Nas cidades do Rio Grande do Sul, não poderia ser diferente.

Muito melhor do que os diretores experientes, a novata Inez Viana só trouxe bons valores para o texto de Suassuna quando não quis “inventar a roda”. O gênero Farsa, tão presente na França de Molière e na Itália da Commedia dell’arte, fruto das alegorias religiosas da idade média, é rico em termos de suas atualizações ao longo do tempo. Na dramaturgia brasileira, Martins Penna, além de Suassuna, é um dos seus maiores nomes, apesar de raramente encenado infelizmente. Ao investir no que há de melhor nessas referências tradicionais, já que outras não são necessárias, a direção acertou em cheio. É possível identificar em “As Conchambranças de Quaderna” todo o repertório que o gênero acumulou: personagens codificados (o Arlechino, o doutor, a mocinha, o galã, o interesseiro), crítica social (à igreja, à política, à hipocrisia, à ganância, etc), estrutura narrativa cheia de peripécias (vários plots são abertos no início e, um a um, vão se fechando na medida em que a história evolui) e forte apelo popular (muito colorido nos signos visuais, grandes variações no ritmo e nos tons dos diálogos - signos proxêmicos e sonoros - e forte apelo à sexualidade).

A tese farsesca de que, quanto mais enrijecidas estão as construções dos personagens (e a maquiagem carregada ou a máscara fixa é expressão estética disso), mais visíveis estão os atores que os interpretam providencia à peça o que Brecht, na Alemanha e nos Estados Unidos, desenvolveu como o chamado “distanciamento brechtiano. Em miúdos, um dos primeiros pontos da comicidade de “As Conchambranças” vem do fato de que o público sabe que o ator está se divertindo ao fazer aquele personagem e é essa certeza que garante às produções genuinamente farsescas a leveza de que elas precisam para se estabelecer no espaço e no tempo da representação. Quando, dirigidos por Viana, os atores “brincam” com os próprios códigos e tornam o brincar um novo código, ao público só resta gargalhar. Um exemplo disso é a forma como a peça em questão trata as entradas e as saídas dos personagens na primeira história: uma espécie de biombo passa pelo palco, deixando nele um ator que entrará em cena. Lá pelas tantas, o recurso é chamado de “táxi” por uma das personagens. Em outro momento, umas das atrizes não sai quando o biombo passa por ela e, por isso, ela é retirada de cena “manualmente”, o que é, sem dúvida, mais uma afirmação da peça sobre a construção da personalidade da personagem (Aliana é uma personagem “muito desligada”). Há ainda o caso do defunto Pedro Cego: o espectador vê que o ator respira e se mexe (minimamente) apesar de interpretar um homem morto. Nesse detalhe, está o jogo do “faz de conta que eu estou morto”,do que o público participa ao não ser atrapalhado na sua fruição da produção farsesca. (O gênero cênico narrativo Farsa, em todas as suas possibilidades, foge do comportamento rígido, esse característica do teatro realista.) O ritmo rápido com que as cenas acontecem concorda com o alto grau de modificação no tom de voz e nas expressões faciais. A postura dos atores em cena deixam ver a ascendência animal das figuras, o que os deixa fora de qualquer julgamento moral: não há maus ou bons, mas maus e bons ao mesmo tempo na ingenuidade de suas naturezas. Porque a regra para todos é se dar bem, a narrativa se estrutura através da construção de múltiplos núcleos que contextualizem todos os personagens de forma que o menor dos coadjuvantes tenha também um objetivo em cena. Quaderna, como Arlechino (Goldoni), Harpagão (Molière) e João Grilo (Suassuna), é o eixo em volta do qual todos os núcleos giram, sem necessariamente ser ele quem movimenta a história (em vários momentos, há essa impressão em “Casamento com cigano pelo meio”, mas o mesmo não acontece em “A caseira e a Catarina ou O processo do Diabo”). O que se vê, em suma, é uma galeria de personagens com os quais o espectador pode se identificar diferentemente em cada situação, sendo o momento ápice aquele em que as situações se resolvem, os segredos se revelam, a estrutura narrativa se expõe e se completa.

O ator Zé Wendell Soares, que interpreta o Quaderna, está excelente em cena e nada diferente pode ser dito dos demais atores, cujos personagens não têm, por questões de dramaturgia, o mesmo número de oportunidades para se mostrar. Assim, Debora Lamm, Claudia Ventura, Viviane Camara, Diogo Camargos, Alexandre Dantas, Ricardo Souzedo, Junior Dantas e Iano Salomão, dentro do que os personagens lhe possibilitam, conseguem resultados extremamente positivos, produzindo ironia, graça, velocidade e força nas suas construções. “As Conchambranças de Quaderna” é divertimento altamente qualificado e garantido para quem for assistir.

A produção é também valorosa pela simplicidade da organização da sua iluminação, pela limpeza do seu cenário (o painel de fundo é composto por bandeiras dos estados brasileiros nordestinos e figuras que remetem à estética sertaneja dispostas em cordel), pelo cuidado com os figurinos e pelos detalhes da maquiagem. A trilha sonora, dirigida por Marcelo Alonso Neves e executada ao vivo por Renata Neves e Gustavo Lyra , é um dos seus grandes ganhos justamente por estar integrada à peça: as músicas ratificam os signos apresentados e enriquecem a obra como um todo. O resultado que esse tipo de arranjo cênico tão bem organizado, cujos elementos estão intimamente relacionados, produz é a saudade que a obra teatral, essa pueril, fluída e momentânea, deixa ao seu final. Mas também é disso que o teatro é feito. E aqui temos uma grande peça de.


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FICHA TÉCNICA:

Autor: Ariano Suassuna
Direção: Inez Viana
Elenco:
Alexandre Dantas, Claudia Ventura, Debora Lamm, Diogo Camargos, Iano Salomão, Junior Dantas, Ricardo Souzedo, Viviane Camara e Zé Wendell Soares
Músicos:
Renata Neves
Gustavo Lyra
Direção de Produção: Liliana Mont Serrat e Damiana Guimarães
Assistentes de produção: Ana Terra e Arllen Guerra
Cenário: Nello Marrese
Figurino: Flávio Souza
Direção Musical: Marcelo Alonso Neves
Iluminação: Renato Machado
Consultoria: Carlos Newton Jr.
Programação Visual: Mais Programação – Humberto Costa
Assistente de Direção: Luiz Antonio Fortes

2 comentários:

  1. Peça sensacional! Imperdível! Direção, mais que perfeita, de Inez Viana!Marcelo Alonso Neves, nosso premio Shell! Parabéns!

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  2. Uma das peças mais saborosas de Ariano Suassuna. Quem não conferiu...perdeu! MARAVILHOSA!

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