quarta-feira, 29 de maio de 2013

O Lago dos Cisnes (RJ)

Depois de sete anos, "O Lago dos Cisnes" está de volta
ao palco do Theatro Municipal do Rio de Janeiro
Foto: divulgação

O Romantismo vence aqui o Melodrama com galhardia

Em quase cinco anos como crítico de teatro, assistindo em média a cinco produções cênicas por semana nesse período, não lembro de ter visto um espetáculo com tão belo cenário e figurino em tão bem articulado uso. “O Lago dos Cisnes”, produção do Ballet do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, com coreografia da russa Yelena Pankova, volta ao palco mais nobre da cidade depois de sete anos desde sua última temporada. Com majestosa regência de Silvio Viegas, a Orquestra Sinfônica acompanha o grupo de bailarinos e seus convidados especiais nesse espetáculo que inclui o Brasil na lista dos grandes produtores mundiais de peças de repertório pelo brilho com que chega à cena. Composta pelo russo Piotr Tchaikovsky (1840-1893) entre os anos de 1875 e 1876, “O Lago dos Cisnes” é considerado um divisor de águas na história do ballet clássico por trazer uma série de inovações ao gênero, entre elas os conhecidos “tutus”, sendo a mais popular peça de ballet romântico. Na produção, destacaram-se, na sessão de estreia, o disciplinado corpo de baile masculino e feminino, além das crianças. O destaque especial em solo foi para o excelente Cícero Gomes, intérprete do personagem “o Bobo”. Dirigido por Hélio Bejani, o grupo é vinculado à Fundação Teatro Municipal, cuja presidente é a cineasta Carla Camurati, da Secretaria de Estado da Cultura. O projeto dá seguimento à programação artística do TMRJ, essa elaborada pelo maestro Isaac Karabtchevsky. No elenco, estrelam, como convidados, a cubana Lorena Feijoo (Odette/Odile) e o brasileiro Vitor Luiz (o príncipe Siegfried), ambos do San Francisco Ballet. A produção fica em cartaz até 2 de junho na Cinelândia, centro do Rio de Janeiro. 

Transformada em um cisne pelo bruxo Von Rothbart (Carlos Cabral), a princesa Odette passa a viver no lago junto de outras meninas que passaram pelo mesmo feitiço. Todas elas só retornam à forma humana durante a noite, entre o anoitecer e a aurora. Para livrar-se do mal, é preciso que alguém sinta por elas um amor que seja totalmente puro e verdadeiro. No primeiro ato, nos jardins de um castelo, o príncipe Siegfried e seus amigos e amigas se preparam para o baile que acontecerá no dia seguinte. Como presente de aniversário, ele ganha um arco de caça e a permissão de sua mãe para escolher uma entre as jovens do reino para se casar. Pensativo, ele decide sair em direção ao lago tão logo anoitece. Lá encontra Odette e todas as outras meninas e conhece a sua terrível história. Apaixonado, jura amor eterno à Odette antes de amanhecer, despedindo-se dela quando a jovem volta a ser uma ave. No terceiro ato, acontece o baile de aniversário de Siegfried, de que participam várias comitivas vindas de lugares diferentes do mundo. Subitamente, Rothbart tem a sua presença anunciada. Odile, sua filha, vem com ele vestida de cisne negro. Cego de paixão, o príncipe jura a Odile amor eterno, sem perceber que Odette, novamente na forma humana, assiste à traição de Siegfried pela janela. Vitorioso, Rothbart vai embora, deixando desolado Siegfried que, então, percebe o mal que fez. Na floresta, às margens do lago, todos os cisnes consolam Odette que vê fracassada a sua única possibilidade de redenção, perdido o seu amor. As súplicas de perdão feitas pelo arrependido Siegfried não são suficientes e irritam Rothbart. No final escolhido por Pankova, que é diferente dos finais mais conhecidos para a peça, o príncipe e o bruxo duelam e Siegfried sai vitorioso, mas é tarde demais, pois Odette, nesse momento, já tirou a sua própria vida.* 

Esta montagem de “O Lago dos Cisnes” paga, com a perda do ritmo, o preço pela beleza visual. Dois longos intervalos acontecem para a mudança de cenário, o que prejudica a fruição. Feijoo (Odette/Odile) e Luiz (Siegfried) têm boas performances, mas falta-lhes a pujança que o romantismo exige. Porque exagerado, Carlos Cabral (Rothbart) comprime a grandiosidade de seu personagem, deixando-o menor que o príncipe apesar do figurino (a cena do Prólogo é terrível!) que o primeiro veste. São bastante positivos o segundo e o quarto ato quando vemos as mulheres próximas do lago, porém, sem acompanhar o programa, fica difícil compreender a transformação dos cisnes em humanos e das mulheres em aves com a chegada da noite e o início do dia. O fim escolhido por Pankova, com um estranho desaparecimento do bruxo ferido, perde também a oportunidade de esclarecer o destino dos outros cisnes (Com a morte de Rothbart, o feitiço foi desfeito ou passou a durar para sempre?). O ponto alto está no terceiro ato pelo colorido da articulação nobilíssima entre o cenário, cujo efeito em 3D é visível (destaque para o lago prateado ao fundo), e pelas execuções coreográficas das comitivas internacionais, além do já citado figurino. Cícero Gomes (o Bobo) ganha o público pela força, pela graça, pela vivacidade com que interpreta o seu personagem, em menor participação, mas com grande e vencido desafio. 

Com belíssimo caimento, capacidade de reflexão da luz, profundidade e ponto de fuga, o cenário e o figurino (ambos parte do acervo próprio do Theatro Municipal) emolduram com elegância a narrativa de Tchaikovsky. Com um grupo grande de bailarinos, a história é contada de forma positiva em termos de técnica e de estética de forma exuberante, mesmo com os problemas normais em sessão de estreia. Com quase 150 anos, “O Lago dos Cisnes” continua vencendo o melodrama e mantendo o romantismo do século XIX com coragem, força, orgulho e maestria. 

* No final original, Siegfried fere uma das asas do bruxo, destruindo o seu poder e libertando do feitiço todos os cisnes para sempre. O príncipe e Odette se casam. Em outro final bem conhecido, o príncipe resolve morrer ao lado de Odette, o que destrói o poder de Rothbart. Em outro ainda, a traição de Siegfried faz com que Odette nunca mais possa retornar à forma humana, terminando a encenação com o príncipe desolado e solitário em cena. 
** Clique aqui para assistir aos bastidores da montagem

*

Ficha técnica:
"O Lago dos Cisnes" com base na criação original de Marius Petipa, Lev Ivanov e Vladimir Burmeister
Ballet e Orquestra Sinfônica do Theatro Municipal do Rio de Janeiro
Música: Piotr I. Tchaikovsky
Coreografia: Yelena Pankova
Coreógrafa Assistente: Gisèle Santoro
Remontagem: Eric Frederic, Celeste Lima, Cecília Kerche e Sérgio Lobato
Direção Artística do BTM: Hélio Bejani
Regência: Silvio Viegas
Iluminação: Felicio Mafra

Elenco (na estreia):
Odette/Odile: Lorena Feijoo
Von Rothbart: Carlos Cabral
Siegfried: Victor Luiz
Rainha Mãe: Marjorie Morrison
Bobo: Cícero Gomes

e
Adriana Duarte
Aiala Oliveira
Alessandra do Vale
Aloani Bastos
Amanda dos Prazeres
Anderson Dionísio
Andressa Viana
Anna Carolina Gouveia
Anna Luiza Romão
Beatriz de Paula
Beatriz Lima
Bruno Fernandes
Carla Carolina
Carolina Bastos
Carolina Neves
Cecília Nogueira
Ciro de Góis
Débora Ribeiro
Edifranc Alves
Elida Brum
Enéas Brandão
Flávia Carlos
Isabel Torres
Ivan Franco
Joseny Coutinho
Juliana Valadão
Karen Mesquita
Karin Shotterbeck
Larissa Lins
Lúcio Kalbusch
Luiz Carlos Cavalcanti
Marcella Gil
Marcia Antunes
Márcia Faggioni
Margheritta Tostes
Mateus Dutra
Melissa Oliveira
Moacir Emanuel
Mônica Barbosa
Murilo Gabriel
Nina Damasco
Paula Mendes
Paula Passos
Paulo Arguelles
Paulo Muniz
Paulo Ricardo
Priscila Albuquerque
Priscila Mota
Rachel Ribeiro
Renata Gouvea
Renata Soares
Rita Martins
Rodrigo Negri
Ronaldo Martins
Rosinha Pulitini
Sabrina Germann
Samantha Monteiro
Santiago Junior
Saulo Finelon
Sergio Landim
Sergio Martins
Tendo Pereira
Thayara Teixeira
Vanessa Pedro
Viviane Barreto
Wellington Gomes

Substitutos nos Papéis Principais:
Claudia Mota
Denis Vieira
Filipe Moreira
Marcia Jaqueline

Beatriz (RJ)

Cia Atores de Laura em nova montagem a partir
da obra de Cristovão Tezza
Foto: divulgação

Artificial

A sensação que se tem ao sair do espetáculo “Beatriz é de que o diretor Daniel Herz não sabia sobre o que era a história ao construir a sua concepção. Escrito a partir do romance “Um erro emocional” (2010) e dos contos “Beatriz” (2011), ambos do escritor catarinense Cristovão Tezza, também autor de “O filho eterno” (2007), a dramaturgia teve adaptação de Bruno Lara Resende e está em cartaz no teatro da Casa de Cultura Laura Alvim. Em cena, um escritor, Paulo Donetti, e uma revisora de textos, Beatriz, iniciam uma conversa sobre trabalho, mas chegam a revelar, cada um, detalhes de suas vidas pessoais. O jogo entre ambos é que os dois querem um ao outro, mas nenhum deles toma a iniciativa, de forma que o que movimenta a narrativa são as constantes e tímidas investidas. Cheia de tempos negativamente mortos, informações repetidas e solilóquios cansativos, a dramaturgia, que também não tem boa interpretação de Ana Paula Secco (Beatriz) e de Paulo Hamilton (Paulo), permite cogitar a possibilidade da peça ser sobre a incapacidade de tomar atitudes que sejam coerentes com as vontades. Até isso, no entanto, é mera especulação. Realizada pela Cia Atores de Laura, “Beatriz” tem bonito cenário de Aurora dos Campos, mas que melhor funciona como um espetáculo a parte do que como um elemento da narrativa tal como está sendo usado pela direção. Em suma, enquanto obra, a peça carece de amarrada articulação. 

No passado, o escritor Paulo Donetti ajudou a tornar conhecido um jovem autor que hoje, em vendagem e em crítica, o superou. A mágoa move, então, Donetti a uma espécie de vingança: roubar do colega a namorada e revisora. Num jantar entre os três, Paulo conhece Beatriz e uma parceria entre os dois começa em um encontro seguinte, que acontece na casa dela. A peça “Beatriz” é praticamente narrada a partir dos acontecimentos dessa noite. Posicionamentos sobre literatura e suas próprias vidas profissionais, antigos relacionamentos e sobre planos para o futuro são assuntos que se intercalam à confissões para si (solilóquios) do desejo sexual que cada um tem em relação ao outro. Paulo e Beatriz avançam na madrugada, controlando seus impulsos. 

Tanto Paulo Hamilton (Paulo Donetti) quanto Ana Paula Secco (Beatriz) não apresentam bons trabalhos de interpretações. Não há uma só palavra que não é dita acompanhada de um movimento seja de corpo, seja de feição. Todas as ações e reações são mostradas, o que exibe uma superficialidade farsesca que parece incoerente com a proposta de cunho mais realista do texto de Tezza/Resende. Entonações histriônicas, gestual fleumático e movimentação desequilibrada fazem o espetáculo pesar para a direita do palco, sem bom ritmo da direção de Herz assistido por Clarissa Kahane. Não fica claro o que exatamente motiva Paulo em relação a Beatriz (e vice-versa) e o que, de fato, os prende. Nesse sentido, diálogos e gestos parecem ter apenas a função de ocupar o tempo que se arrasta longamente. 

Porque aponta para narrativa, é positivo o figurino de Patricia Muniz em sua discrição em um espetáculo que parece querer ser realista. Na mesma direção positiva, agem a iluminação de Aurélio de Simoni e a trilha sonora original de Lucas Marcier e de Fabiano Krieger, embora o último elemento, em alguns momentos, deixe claro estar apenas a serviço do sublinhar das emoções. Aurora dos Campos deixa ver um belo cenário, potente na proporção de espaços, mas que é confuso na sua integração com a história. Uma escada construída apenas pelos pilares do corrimão e um interior visto a partir de frestas são, para citar dois momentos, alternativas interessantes, mas que pouco usadas, apesar de serem vistas durante todo o período da narrativa. 

“Beatriz” apresenta-se como artificial diante de tantas intenções mal concretizadas. Sendo uma só estrutura, seu maior defeito é o de parecer várias sem optar definitivamente por nenhuma. 

*

Ficha técnica:
Texto: Cristóvão Tezza
Adaptação: Bruno Lara Rezende
Direção: Daniel Herz
Elenco: Ana Paula Secco e Paulo Hamilton
Direção de movimento: Marcia Rubin
Iluminação: Aurélio de Simoni
Cenário: Aurora dos Campos
Figurinos: Patricia Muniz 
Trilha Sonora: Lucas Marcier e Fabiano Krieger
Consultoria psicanalítica: Evelyn Disitzer
Preparação Vocal: Leila Mendes
Assistente de direção / Operação de som: Clarissa Kahane
Assessoria de imprensa: MNiemeyer
Assistente de figurino: Patrícia Delvaux
Assistente de cenografia: Ana Machado
Estagiária de cenografia: Carolina Sugahara
Estagiária de iluminação: Samitri Bará
Operação de luz: Marcelo de Simoni
Contrarregra: Luiz Andrade
Projeto Gráfico: Maurício Grecco
Direção de Produção: Ana Lelis
Produção Executiva: Isabel Pinheiro e Renata Campos
Realização: Cia Atores de Laura

terça-feira, 21 de maio de 2013

O caso da rua ao lado (RJ)

Comédia de Eugène Labiche não agrada
Foto: divulgação

Interpretações pesadas, comédia sem ritmo

“O caso da rua ao lado” (“L`Affaire de la rue de Lourcine”) é um espetáculo que exemplifica perfeitamente o fato de que nem tudo o que pretende o encenador ele consegue fazê-lo no palco. Dirigida por Marcus Alvisi, e apresentada como um vaudeville burlesque do francês Eugène Labiche (escrito em 1857 em colaboração com Albert Monnier e com Édouard Martin), a comédia está em cartaz no Teatro Maison de France, no centro do Rio de Janeiro. Eis o que o diretor diz no programa: “Certamente meu trabalho será criar o ambiente para que as ações e as motivações possam se desenvolver a partir dos atores, sem enfeites ou adornos. Apenas a concisão essencial que motiva o ator em cena. E a simplicidade de sua execução.” Apesar dessas intenções, a obra a que se assiste tem tudo menos concisão, simplicidade e livre atuação. O espetáculo não tem ritmo, todos os movimentos são partiturarizados, as reações não são espontâneas e, à título de exemplo, o lustre e os castiçais com velas, ao invés de iluminar, são iluminados, sendo nada além de mero enfeite no cenário. Mesmo assim, vale dizer, o espetáculo é divertido, o que prova a excelência de um dos maiores autores cômicos da história do teatro francês e mundial. Dele e de quase ninguém mais nessa produção. 

Um dia um homem, Lenglumé, acorda em sua cama sem lembrar do que aconteceu na noite anterior. Para seu espanto, há um desconhecido (Mistingue) ao lado dele, dormindo também. Ambos não sabem como vieram parar ali, mas os dois têm as botas sujas de lama e as mãos com marcas de carvão. No bolso de um, há uma touca de mulher e, no de outro, uma meia feminina. Engrossando a trama, à mesa, a Senhora Norine (esposa de Lenglumé) lê num jornal que, na última noite, houve um terrível assassinato em que uma jovem carvoeira fora assassinada com golpes de guarda-chuva. Certos de que são os assassinos, Lenglumé e Mistingue começam a percorrer as pistas que possam ter deixado e eliminar possíveis testemunhas. Em jogo que é próprio do vaudeville, a “roda da dramaturgia” gira em espiral, percorrendo os círculos maiores no início da narrativa, quando as bases são contadas, diminuindo a circunferência e aumentando a velocidade cada vez em uma subida crescente para o fim. O gênero, muito comum no século XIX e no início do século XX, ainda hoje garante bom entretenimento. O problema dessa atualização é a concepção da direção para cada um dos personagens e para a viabilização do jogo que deveria ocorrer entre eles e que não ocorre. 

Como já disse, tudo é muito lento, muito gestual, bastante próximo das caricaturas. O sotaque nordestino de Marco Amaral Correia (Lenglumé) e de Rober Vieira (o primo Potard) é negativamente forte, o modo como ACT Carvalho diz o texto (o mordomo Justin) é inverossímil dada a imensa quantidade de pausas e a ausência de expressão, isso sem falar nas feições enrijecidas de Correia e de Alexandre Beck (Mistingue), cujos movimentos são coreografados mais do que marcados. Porque é um personagem não-cômico e que representa o público diante dessa trama construída à base de mal-entendidos, o peso que recai sobre Dig Dutra (Norine) é menor. Consequentemente, é ela quem obtém o melhor resultado, principalmente porque, em alguns momentos, a atriz expressa uma construção bastante espontânea positivamente. 

Com exceção do belo vestido de Norine, os trajes usados pelos personagens na concepção de Rafaela Rocha são fiéis à época e ao lugar narrativo, estando a contento. Apesar do já citado lustre, o cenário de José Dias é igualmente positivo. Porque discreta, a iluminação de Carlos Lafert cumpre o seu papel. Em sentido exatamente oposto ao figurino, ao cenário e à iluminação, que tendem a desaparecer apontando para a narrativa, a trilha sonora assinada por Alvisi é terrível. Uma colagem oriunda de filmes de suspense torna pastiche ou trash o que é vaudeville, fazendo a obra debochar de si própria, desvalorizando a sua narrativa. 

O vaudeville tem o mérito na história de arte de ter dado para a comédia um lugar privilegiado que, ainda distante do drama, nunca havia tido até então. Nas histórias escritas dentro desse referencial, permanecem as críticas à sociedade e as tramas bem amarradas da farsa e da Commedia dell`Arte. São justamente as interpretações mais próximas do real além da narrativa que diferenciam. Infelizmente, é isso o que principalmente falta nessa montagem de “O caso da rua ao lado”. 

*

Ficha Técnica:
Texto - O Caso da Rua Ao Lado _ de Eugène Labiche
Tradução e Adaptação - Alberto Renault
Direção - Marcus Alvisi
Elenco - ACT Carvalho, Alexandre Beck, Dig Dutra, Marco Amaral Correia e Rober Vieira
Ass. Direção - Rober Vieira
Direção de Arte e Cenografia - José Dias
Ass. Cenografia - Paula Senra
Cenotécnico - Paulo Fernandes e Equipe
Luz - Carlos Lafert
Trilha Sonora - Marcus Alvisi
Operador de Som - Jean Demetrius Kosciukyewicz
Cadeiras - Ezequiel Pereira
Figurino - Rafaela Rocha
Maquiagem - Mona Magalhães
Direção de Produção - Caroline Alcova
Assessoria de Imprensa - Lu Nabuco Assessoria em Comunicação
Realização - Proscênio Teatral

segunda-feira, 20 de maio de 2013

Limpe todo o sangue antes que manche o carpete (SP)

Ed Moraes interpreta Wilson, o protagonista
do primeiro espetáculo da Cia dos Inquietos

Foto: divulgação

Espetáculo expõe negativo esforço em parecer mais que o texto

Na encenação de “Limpe todo o sangue antes de que manche o carpete", realizada pelo grupo paulista “Cia dos Inquietos”, o texto de Jô Bilac parece atrapalhar. A peça, que é inédita no Rio de Janeiro, participou da Mostra Cena Carioca, infelizmente cumprindo curtíssima temporada que termina hoje no Galpão Gamboa. Dirigido por Eric Lenate, o espetáculo é péssimo.

Jô Bilac cria uma situação épica, cujo herói foi muito famoso quando criança e, agora, tenta desesperadamente conseguir uma migalha de sucesso que o permita orgulhar-se de mesmo. O personagem Wilson, também chamado de Wilsinho Nota 10 (Ed Moraes), quer um emprego, deseja que um projeto seu seja aprovado numa grande empresa, almeja casar-se com sua noiva Sabrina (Luna Martinelli) e, enfim, comprar um apartamento de frente para o mar onde ambos possam morar. 
 
Tudo isso se perde na encenação dirigida por Lenate infelizmente, um esforço inútil de “aparecer” mais que o texto. Na peça da Cia dos Inquietos, todas as construções de personagem são por demais partiturarizadas. Os movimentos são orquestrados, as relações são medidas, as entonações fogem do real além da narrativa de forma brusca e injustificável. A encenação é dura, a obra é fleumática, as articulações se dão a ver tal qual uma galeria de possibilidades de uso do corpo e da voz.

São interessantes os trabalhos de interpretação de Ed Moraes, João Paulo Bienermnn e sobretudo de Luna Martinelli se conseguirmos isolar o olhar por sobre os intérpretes além de qualquer força da direção. Mesmo sem sintaxe, veem-se neles ricas possibilidades de uso do corpo, das feições, das tonalidades da voz, do modo claro de dizer o texto. Também encontraremos bom trabalho de figurino de David Shumaker, de iluminação de Karine Spuri e de cenografia, cujo ponto alto é a opção por gramafones para a representação das idosas “cuidadas” pelas enfermeiras Sabrina e Geda. (O diretor divide a assinatura de todas as concepções individuais, assinando sozinho também a de cenário e a de trilha sonora.
É uma pena! 

*

FICHA TÉCNICA
"Limpe todo o sangue antes que manche o carpete"
Texto: Jô Bilac
Direção: Eric Lenate
Elenco: Ed Moraes, Luna Martinelli, Daniel Tavares e João Paulo Bienermnn
Cenário e sonoplastia: Eric Lenate
Figurinos: David Shumaker e Eric Lenate
Iluminação: Eric Lenaten e Karine Spuri
Fotografia: Gustavo Porto e Sander Newton
Arte: Herbert Bianchi e Eric Lenate
Idealização e direção de produção: Ed Moraes
Produção: Cia dos Inquietos
Coprodução: Arrumadinho Produções Artística

Do tamanho do mundo (RJ)

Dirigido por Jefferson Miranda, Mateus Solano
interpreta o protagonista Arnaldo
Foto: divulgação

A excelente estreia de Paula Braun: o banho de Anita Ekberg

Paula Braun estreia como dramaturga em grande estilo. “Do tamanho do mundo”, espetáculo em cartaz no Teatro Tom Jobim, é o seu primeiro texto e, com muita elegância, traz para a grade teatral carioca diálogos que remetem diretamente à segunda fase de Federico Fellini (1920 – 1993), o cineasta italiano autor de pérolas como “La Dolce Vita” e “8 ½”. A comparação vem da dialética que as forças narrativas estabelecem. De um lado, os diálogos são de um blá-blá-blá banal regado à álcool, tortas de aniversário e à serpentinas de carnaval. De outro, uma situação inusitada: um homem acorda numa manhã sem conseguir mexer as pernas, sem lembrar como se amarram os sapatos, se gosta ou não do trabalho, quem é ele próprio. Na base disso tudo, está uma crítica ferrenha à rotina aprisionante que faz com que as coisas, sejam elas de alto ou de baixo nível, percam o sentido e pareçam deixar de existir. A produção marca a volta aos palcos do ator Mateus Solano, depois de três anos se dedicando integralmente ao cinema e à televisão. Com belíssimo cenário de Cristina Novaes, a peça dirigida com sensibilidade por Jefferson Miranda é não menos que excelente. 

O trabalho de interpretação do conjunto de atores e de cada um é maravilhoso. Solano interpreta Arnaldo, o protagonista, que joga para o mundo a sua volta um outro olhar, um olhar novo, um ponto de vista já esquecido. Seu entorno continua do mesmo jeito que no dia anterior, mas Arnaldo já não é o mais o mesmo e as expectativas alheias sobre ele parecem ter um peso ainda maior. O carismático Solano confere positiva e inteligentemente a Arnaldo uma leveza e uma graça que lhes são próprias enquanto intérprete desde os tempos de “Dois para viagem” (de Jô Bilac). Sem elas, a construção seria trágica e pesaria tal qual uma âncora na frivolidade consciente dos diálogos de Braun. Nesse sentido, o mérito é triplo: do ator, do casting e da direção. A mesma regra se aplica aos demais narradores. Karine Teles dá vida à Marta, esposa de Arnaldo, o olhar do outro sobre o protagonista. Actancialmente, Marta é quem concretiza a ordem, a moral, os costumes, o peso, as mordaças da vida social e afetiva. Com muita sensibilidade, em um dos melhores momentos da encenação, ela acaricia vagarosamente o marido, em uma pausa de silêncio absoluto da audiência, como que se tirasse dele as algemas que até então ele vestia. Tal qual Winnie de Beckett, Marta está enterrada, mas não sabe porque e isso nunca foi um problema pra ela. Eis a chave que permite reconhecer em Teles tamanho brilhantismo em seu trabalho como atriz nesse espetáculo. Em seguida, vem Isabel Cavalcanti na figura da Tia Lila, estabelecendo o contraponto com Marta. O interessante da inserção dessa personagem está no fato de que, embora Marta e Lila conversem pouco, a boa fruição percebe que há um diálogo continuo entre elas, uma cumplicidade que alivia Marta de seu hermetismo e dá chão para Lila em sua volatilidade. Por fim, Alcemar Vieira interpreta o personagem mais difícil, mais desafiador da narrativa: o Apresentador. Sua função é inglória: ele é câmera de Fellini que faz com que os encontros da Via Veneto ou um banho na Fontana di Trevi se perpetuem para sempre. É o Apresentador quem chama a atenção do público para o que está acontecendo ali, dando ares de espetacularidade, para um sábado de carnaval que poderia passar como todos os outros. Na medida (lembrando que, para Platão, medida não é quantidade, mas o limite dela), Vieira caminha com habilidade entre a banalidade e o peso com ardilosa malícia, o que, paulatinamente, há de apresentar a verdadeira identidade do seu personagem depois de ter apresentado os personagens dos outros. Jefferson Miranda deixa ver uma direção delicada, sensível, que permite o jogo sonoro de muita conversa que, depois, há de fazer valorizar o silêncio. As regras do real além da narrativa são mantidas na encenação, preservando a verossimilhança do drama quase realista fantástico. O ritmo é vibrante quando há movimento e mais vibrante ainda quando há estagnação, de forma que é, na passagem de um momento para o outro, que a peça se aproxima do público e a catarse ganha chance de surgir positivamente. 

Todos os elementos outros tornados teatrais são de extrema beleza e têm usos bastante inteligentes. A casa e o jardim projetados por Cristina Novaes informam a respeito dos personagens, mas também servem à encenação na medida em que oferecem diferentes níveis para a narrativa, além de corroborar com a ratificação das regras do real. No mesmo sentido e com igual resultado positivo, agem os figurinos de Antônio Medeiros, cujo ponto alto é a segunda roupa do Apresentador. Com mesma elegância, percebem-se as concepções de iluminação de Felipe Lourenço e a direção musical de Felipe Storino. Em se tratando do trabalho deles, é possível lembrar da cena inicial de “La Dolce Vita”, em que um estátua de um Cristo passa por um terraço içada por um helicóptero enquanto duas moças tomam banho de sol. Uma delas diz: “Olhem, é Jesus!” Ou seja, as marcas de espetacularidade são todas deixadas para um personagem enquanto todos os demais elementos se unem no esforço de deixar ver o banal. 

Em “Do tamanho do mundo”, Paula Braun, solenemente, envia uma mensagem: apesar dos grilhões que a rotina pode sustentar sobre nós, há um mundo inteiro a ser conhecido lá fora. Basta jogar os dardos e ver onde eles cairão no mapa mundi. Tal qual o banho de Anita Ekberg, o vôo de Arnaldo pode ser inesquecível. 

*

FICHA TÉCNICA
Texto: Paula Braun
Direção: Jefferson Miranda 

Elenco / Personagens:
Mateus Solano / Arnaldo
Alcemar Vieira / Presenter
Karine Teles / Marta
Isabel Cavalcanti / Lila

Direção Musical: Felipe Storino
Luz: Felipe Lourenço
Cenário: Cristina Novaes
Figurino: Antônio Medeiros
Preparação Corporal: Toni Rodrigues
Design: Dan Strougo
Direção de Produção: Carlos Grun
Realização: Mateus Solano e Bem Legal Produções
Assessoria de Imprensa: JSPontes Comunicação - João Pontes e Stella Stephany

sábado, 18 de maio de 2013

A importância de ser perfeito (RJ)

Foto: Dalton Valério
Idealizado pelo ColetivoAchadoNumaMala,
o espetáculo tem texto de Oscar Wilde
e direção de Daniel Herz

O prazer de ver bom teatro!

Ver teatro bem feito é um prazer e assistir a “A importância de ser perfeito” tem o mérito de propiciar um desses momentos. Dirigido por Daniel Herz, do premiado “O filho eterno”, o espetáculo atualiza o gênero farsa que, no Brasil, geralmente só é visto do ponto de vista ou nordestino (Ariano Suassuna) ou interiorano (Martins Pena). A leveza da narrativa farsesca, além de propiciar excelentes níveis de profundidade, consegue, sem dúvida, atrair quem quer entretenimento, sim, mas feito de forma inteligente. Ali estão a crítica social, as situações cômicas, o deboche e a trama bem amarrada. Escrito em 1895 pelo irlandês Oscar Wilde (1854-1900), o texto é uma perigosa armadilha para o realismo psicológico, o expressionismo ou mesmo o melodrama. Por heroicamente ter resistido a todas essas tentações, Herz e seu grupo estão de parabéns. Elenco e ficha técnica oferecem uma ótima comédia à grade de programação teatral carioca no teatro da Caixa Cultural, no centro do Rio. 

Uma farsa de Oscar Wilde
A farsa, filha legítima da Commedia dell`Arte e mãe do vaudeville francês, parte de personagens bem rasos mas tem uma trama muito bem amarrada. É possível pensar que a concepção de Herz para “A importância de ser perfeito” fez com que a superficialidade inicial das figuras tenha deixado de ser apenas hermetismo estético e passou a ser também conteúdo. Ou seja, a força das aparências, que encontrava eco na sociedade vitoriana de Wilde, mas que hoje em dia é o seu próprio “grito”, não é aqui a apenas a situação dramática, mas o drama em si. Na tradução e adaptação de Leandro Soares, a utilização da palavra “Perfeito” é excelente, porque remete diretamente à importância fundamental de parecer em relação a não necessidade fiel de apenas ser. (No original, o adjetivo “earnest” – sério, correto, honesto, reto, justo – , por ser uma palavra homófona do substantivo próprio Ernest, dá nome para um dos personagens.) Não interessa, assim, o que você é ou com quem você está, mas o que você tem para mostrar. Em termos teóricos, a sociedade contemporânea, na era das redes sociais, concretiza afinal o que dizia os pensadores da linguagem, boa parte deles contemporâneos de Wilde, sobre a fenomenologia. O significado das coisas não advém do objeto, mas do objeto aparente que se apresenta à percepção do homem de forma singular e sempre apenas parcial. 

A trama é simples. Dois amigos se apaixonam por duas meninas ricas. Um deles (Agenor) tem nome, mas já não tem dinheiro. O outro (José) não tem nome, mas é o responsável/tutor por uma menina milionária (Cecília) até que ela complete a maioridade. É por essa menina que o primeiro se apaixona, enquanto o segundo quer a prima (Patrícia) do primeiro. O problema é que tanto uma quanto a outra almejam para si um pretendente que seja “perfeito”, a fim de que possam mostrar-se social e virtualmente com eles. Cobertos de frases de efeito, cujo conteúdo é reflexivo e cômico ao mesmo tempo, os diálogos explicam a fama que o texto obteve ao longo dos últimos cem anos em todo o mundo. 

Excelentes figurinos de Thanara Schönardie
A opção de fazer atores interpretar personagens femininos não faz felizmente menção específica à homossexualidade uma vez que, em determinada medida, todos os atores deixam ver construções um tanto quanto efeminadas. A intenção parece apenas ratificar a decisão de valorizar o superficial, a aparência e não o que está por baixo dela. A fleuma farsesca, que toma o lugar da máscara da Commedia dell`Arte, é positivamente destacada em todos os trabalhos. Em apresentação de estreia, é difícil apontar algum destaque no elenco, mas positivamente se nota uma unidade em excelentes desempenhos por parte de todos os intérpretes: Anderson Mello (Tia Augusta), George Sauma (Patrícia), João Pedro Zappa (Cecília), Leandro Castilho (José), Leandro Soares (Agenor), Márcio Fonseca (Dona Glorinha), Pedro Tomé (Pastor Saulo Malaquias) e Samuel Toledo (Felício e Ruas). Há bons usos da movimentação e do gestual, o texto é dito de forma clara e os tempos, que hão de se afinar ao longo das temporadas, já são bem usados desde agora. 

Apesar do trabalho de cada ator receber elogios merecidos, o ritmo geral da peça deixa a desejar em alguns momentos, fazendo com que o todo perca excelência. Para citar um caso, talvez o mais problemático deles, a cena final é arrastada infelizmente. Logo quando iniciam as negociações de casamento entre Agenor e Cecília, o público já sabe o que precisa ser feito para que José consinta com a união. O alargamento da trama é positiva quando causa tensão. Nesse momento, no entanto, causa tédio, o que é negativo. 

Thanara Schönardie mostra um excelente trabalho na concepção dos figurinos, como também Nello Marrese, esse assistido por Lorena Lima, na viabilização do cenário. Deixando de ser apenas função (vestir) ou caracterizar (narrar), as roupas expressam uma opinião, concordando com Wilde e com Herz na crítica debochada da sociedade atual. Marrese, por sua vez, participa pouco, mas de forma definitiva, criando um espaço ideal para a narrativa correr com beleza e com harmonia sem pesar mais do que deve. A direção musical (com música original) de Leandro Castilho age no mesmo sentido de Schönardie e de Marrese: colore, ilustra e critica, debocha, narra e diverte. É positivo também o desenho de luz de Aurélio de Simone que, coerente com a proposta, joga com luzes e com sombras, permitindo pensar nas ideias de superficial e de profundo. 

Aplausos!
Como o mundo, o sentido da arte surge como um fenômeno único e parcial diante da percepção humana, o que garante o direito de cada um sentir as coisas de forma diferente. “A importância de ser perfeito” é entretenimento que faz gargalhar e refletir além de aplaudir.


*

Ficha Técnica:
Texto: Oscar Wilde
Tradução e Adaptação: Leandro Soares
Direção: Daniel Herz
Assistência de Direção: Maria Eduarda Machado
Realização: Auch Produções, Nevaxca Produções e Pantaleão Produções Artísticas
Direção de Produção: Tárik Puggina
Produção Executiva: Luísa Barros
Idealização: ColetivoAchadoNumaMala

Elenco: Leandro Castilho (José Dourado); Leandro Soares (Agenor); George Sauma (Patrícia); João Pedro Zappa (Cecília); Anderson Mello (Tia Augusta); Márcio Fonseca (Dona Glorinha), Pedro Tomé (Pastor Saulo) e Samuel Toledo (Felício e Ruas)
Figurinos: Thanara Schonardie
Cenário: Nello Marrese
Iluminação: Aurélio de Simoni
Música original e direção musical: Leandro Castilho
Fotografia: Dalton Valério
Programação Visual: André Vants
Patrocínio: Caixa Econômica Federal e Governo Federal

sexta-feira, 17 de maio de 2013

Apesar do amor (RJ)

Texto de Molière inédito do Brasil surge em espetáculo
sem concepção bem definida
Foto: divulgação

Para aprender o que não fazer

Apesar do amor” tem dois problemas graves: o péssimo trabalho de interpretação de todos os seus atores e uma direção que não se afirma em uma concepção que seja única. Escrito por Molière (1622-1673), em 1656, o texto é uma cópia de "l’Interesse (La Cupidité)", do italiano Nicolo Secchi. Na comédia clássica, com forte influência da Commedia dell’Arte, dois jovens estão apaixonados pela mesma moça, a filha mais nova de um homem que ficou rico através da tesouro herdado pelo seu primogênito. Ocorre que esse primogênito é, na verdade, uma mulher que está apaixonada por um dos rapazes que cortejam a sua irmã. No desenrolar da trama, o ritmo precisa ser rápido, as palavras bem ditas e os personagens bem construídos. Isso, porém, exige uma opção, uma forma de contar conscientemente escolhida. Ivan Fernandes parece não se decidir entre o melodrama, o vaudeville francês ou o teatro do besteirol. Em cartaz na Sala Maria Clara Machado, na Gávea, eis aí uma comédia que não faz rir, mas pode fazer refletir sobre as consequências negativas de uma obra construída apenas com boas intenções. 

A oratória mais próxima do real além da narrativa, mais casual, rotineira ou cotidiana aproximaria a obra do vaudeville francês, mas a falta de ritmo das cenas e de suas articulações afasta a atual montagem de “Apesar do amor" desse gênero. A fidelidade ao texto, em cujo final, há diversos deus ex maquina, em que tudo se resolve com largos exageros e “todos vivem felizes para sempre”, poderia oferecer uma leitura da história a partir dos melodramas cujo auge aconteceu no final do século XVIII e durante o XIX. No entanto, a sensualidade, o uso de expressões cotidianas e a malícia das piadas contemporâneas retiram a peça dirigida por Ivan Fernandes desse ponto de vista definitivamente. O uso de canções atuais e de expressões e pontos de vista do século XXI, bem como um ator representando uma mulher* apontam para uma atualização do gênero besteirol ou do teatro do ridículo. Infelizmente, as marcações firmes, a movimentação rígida e a falta de espontaneidade e de improviso levam a análise para uma concepção que seja contraditória. Ou seja, tudo o que permite à peça ser lida de uma forma também diz algo contra ela, o que reflete ou uma ingenuidade não própria do teatro profissional ou uma falta de reflexão estética sobre a própria obra cênica por parte do diretor, seus produtores e realizadores. 

Os atores, todos eles, não mostram um bom trabalho de interpretação. O texto é mal dito do início ao fim: as últimas sílabas não são pronunciadas, as entonações são regulares e monótonas, a dicção inexiste a contento. As expressões faciais e corporais exibem uma falta de consciência corporal, não há uma estrutura que se organize em forma de jogo com ritmo e flexão. Considerando esta ser uma janela destinada ao teatro profissional, as exigências que se fazem ao grupo são mais altas do que o grupo parece estar preparado.

A inclusão de números musicais (a direção musical é de Mario Fontanive Andrade) é um terrível equívoco tendo em vista a falta total de visível preparo do elenco para o canto (a preparação vocal é assinada por Thiago Roseiro): as músicas são interpretadas de forma mal afinada, sem projeção, sem ritmo e com falta de articulação nas cenas. A trilha sonora que acompanha a entrada dos espectadores na sala e a narrativa é confusa, porque arbitrariamente é interpretada ora ao vivo ora gravada, ora como representante de um estilo e de uma época, ora doutros sem claras justificativas. 

O cenário de Shizue Morimoto proporciona um bom resultado estético que é mal aproveitado no momento em que um dos personagens parece querer se afogar em uma fonte sem água. Quanto aos figurinos, as roupas têm bom desenho, mas causam um grande estranhamento pela forma bastante adversa com que estão construídos: muitos tecidos diferentes, sapatos de borracha, material estético de origem múltipla. Os adereços carecem de beleza e não agregam nem verdade, nem verossimilhança. 

Produzido e realizado pelo Teatro GAS, “Apesar do amor” exibe a importância da pesquisa em artes cênicas, da reflexão sobre a obra, do compromisso com a peça em relação à arte. Peça, aliás, é uma palavra que é sinônimo de Parte, cujo Todo é o idioma, aqui o teatro. A arte de Molière, ainda que ele estivesse vivo, permitiria muitas coisas, mas não todas elas ao mesmo tempo. Daí a importância de uma concepção, agora ausente, que dignifique a montagem e mantenha bem oxigenado o teatro. 


* No texto literário de Molière, há uma atriz que interpreta um homem para que seu pai seja digno de uma herança que só recebeu em função do nascimento desse primogênito. No texto dramático de Fernandes, há um ator que interpretada mulher que interpreta um homem, talvez, como uma relação entre a narrativa clássica e o tema da homossexualidade. A opção estética, infelizmente, carece de uma estrutura que lhe dê base, de forma que sua concretude não possa ser lida como apenas algum tipo de apelo ao riso fácil. 

*

Ficha técnica:
Texto: Molière
Tradução, Adaptação e Direção: Ivan Fernandes

Elenco (em ordem alfabética):
Diogo Borges (Erasmo)
Flavia Spranger (Frosina)
Guga Guimarães (Ascânio)
João Uno (Renatão)
Luciano Martins (Valério)
Maria Clara Nascimento (Marinete)
Raphael Carbone (Alberto)
Ruy Lemos (Polidoro)
Shizue Morimoto (Mascarilho)
Tatiane Albernaz (Lucília)

Musico Convidado: Mario Fontanive Andrade
Direção de Arte: Shizue Morimoto
Direção Musical: Mario Fontanive Andrade
Light Design: João Gaspary
Design de Som: Christian Dias
Preparação de Voz: Thiago Roseiro
Cenário e Figurino: Shizue Morimoto
Preparação de Corpo: Criz Muñoz
Assessoria de Imprensa: Lyvia Rodrigues
Produção Executiva: Paloma Morimoto
Produção e Realização: Teatro GAS

quinta-feira, 16 de maio de 2013

Silêncios claros (RJ)

Cenário de Jorge Roriz e iluminação de Vilmar Olos
são destaques na peça a partir de contos de
Clarice Lispector
Foto: divulgação

Corajosa proposta: desafios transpostos: ótimo espetáculo

A partir de quatro contos de Clarice Lispector (1920-1977), Ester Jablonski surge com “Silêncios Claros”, produção que levou dez anos para ser maturada. Dirigida por Fernando Philbert, a peça, em cartaz no Parque das Ruínas e no Teatro Serrador, reúne quatro textos da escritora ucraniana naturalizada brasileira conhecida por seus personagens intimistas e seu fluxo livre de consciência. Talvez seja por isso, por essa característica tão forte dos textos de Lispector, que o monólogo não seja excelente, apesar de ótimo. As personagens ou a personagem interpretada(s) por Jablonski é sempre duas, no mínimo, ao mesmo tempo: quem faz e quem narra. E as forças de ambas não são as mesmas. Os grandes destaques da produção são a concepção de cenário de Jorge Roriz e de iluminação de Vilmar Olos, que, com inteligência e força, concretizam no palco alguns conceitos essenciais para a fruição da obra cênica. 

A dramaturgia parte dos textos “A fuga”, “O grande passeio”, “Uma tarde plena” e “Uma galinha”. Todos eles, de uma forma geral, refletem a solidão, ou o ponto de vista solitário de alguém em relação ao mundo. O externo das personagens surge filtrado pelo interior sensível de indivíduos que não têm poder nem força para modificar a sua realidade, assistindo aos acontecimentos. Não se tratam de vítimas, nem de cúmplices, mas de um tipo de plateia cuja opinião não interessa a ninguém. O espetáculo que elas vêem, assim, são os fenômenos que acontecem dia a dia diante dos seus olhos: a galinha no canto da casa, a cachoeira, o Maranhão, o bicho que poderia ser um rato,... Nesse sentido, a gloriosa contribuição de Lispector para a literatura é a oferta de uma força que protege suas personagens diante das agruras e das felicidades do mundo, de forma que elas estão, mais do que são. É essa força que a escritora tem a dar através de seus livros.

Na concepção de dramaturgia, direção e de interpretação da peça teatral, Jablonski precisa narrar e interpretar, isto é, sentir e pensar, ou viver e informar o que está vivendo quase ao mesmo tempo. Sem dúvida, eis aí um desafio bastante grande uma vez que expressar a solidão, contando sobre ela para alguém, é uma dialética complexa que, não com facilidade, a arte consegue dar conta. O cenário de Roriz e a iluminação de Olos contextualizam a personagem em um quadro que favorece a transposição desse obstáculo positivamente. Cadeiras suspensas (lugares, posições, cargos, situações discursivas: mãe, filha, parente, desconhecida, companheira de viagem, mulher...) estão unidas por fios em uma rede que expressa relações. O desenho de luz pinta o palco com linhas, valorizando a atriz no momento em que ela necessita ser vista pelo público, mas sempre destacando a forma solitária com que ela dá a ver a sua personagem também solitária. Por fim, a trilha sonora de Marcelo Alonso Neves marca a passagem do tempo e o ritmo da narrativa: tratando a história como se ela fosse algo a ser confessada para si mesmo. Pela forma como todos os elementos estão envolvidos, o resultado é positivo, porque a proposta foi atingida apesar de sua corajosa pretensão. 

O sucesso de Clarice Lispector, assim como o de seu discípulo Caio Fernando Abreu, se dá em função da literatura ser um tipo de arte que se frui sozinho. Com o teatro, o que acontece não é o mesmo. Construir com sucesso uma estrutura propícia, considerando as necessidades de cada dispositivo para narrar (livro e palco), é um problema anterior à narrativa. Jablonksi e sua equipe estão de parabéns. 

*

Ficha Técnica:
Textos: Clarice Lispector
Direção: Fernando Philbert
Elenco: Ester Jablonski
Iluminação: Vilmar Olos
Musica Original: Marcelo Alonso Neves
Operador de Som e Luz: Felipe Antello
Figurino: Kiara Bianca
Cenário: Jorge Roriz
Fotos: Adélia Jeveaux
Programação Gráfica: Cláucio Salles
Direção de Produção: Daniela Paita
Produção: Jablonsky Produções
Assessoria de Imprensa: lu nabuco assessoria em comunicação

segunda-feira, 13 de maio de 2013

Favela (RJ)

Gabriel Chadan, à esquerda,
tem excelente trabalho de interpretação
Foto: divulgação

Excelente texto e ótimas interpretações: bom espetáculo da zona oeste estreia no Leblon

“Favela”, espetáculo que estreou na Festa Internacional de Teatro de Angra dos Reis e cumpriu temporada no Teatro Fashion Mall, chega agora ao Teatro do Leblon, enriquecendo substancialmente a programação de teatro da zona sul do Rio de Janeiro. Entre muitas questões, uma que deve ser destacada é a impossibilidade de descolar a dramaturgia dessa peça do momento presente: “Favela” é 2013, não é 2003 e não será 2023. Nesse sentido, o jeito mais adequado de ler a obra é através do realismo naturalismo justamente por esse gênero oferecer uma descrição mais acentuada do espaço, esse o verdadeiro protagonista da narrativa. Michel Gomes, Rafael Zulu e Renata Tavares, mas principalmente Ana Berttines e Gabriel Chadan impõem à cena o vigor de que ela precisa para realmente aparecer no teatro profissional com galhardia, o que é extremamente positivo. 

Aos moldes de “O Cortiço”, obra de Aluísio Azevedo, ou de “Quando as máquinas param”, de Plínio Marcos, os personagens de "Favela" agem por instinto, nem vítimas, nem algozes, mas distantes de qualquer moral ou ética que os julgue. A “comunidade” (ou, usando o termo politicamente incorreto, “a favela”) é o ecossistema desses seres sem escolha, apesar da falsa ideia de poder escolher. O traficante fortalece a violência, mas expulsa do grupo os baderneiros. O pastor evangélico é preconceituoso, mas é o amor da vida de sua esposa. A fofoqueira é linguaruda, mas ajuda a quem lhe pede. O bonitão é conquistador, mas cuida do bem estar da sua mãe. Um por um, todos os personagens podem ser vistos a partir de pontos positivos e negativos, o que distancia a obra do melodrama e a aproxima da realidade além da narrativa. Com direção e idealização de Márcio Vieira, o espetáculo com cem minutos de duração narra o período de mais ou menos um ano na vida de vizinhos, amigos, pessoas que se criaram juntas e, apesar das diferenças, convivem diariamente uns com os outros. O texto de Rômulo Rodrigues é fluido e, na medida em que se compreendem os diálogos (há problemas na interpretação!), nota-se movimento linear e levemente ascendente que anuncia o fim, mas que também pode ser apenas o anúncio de um recomeço.

O elenco, de um modo geral, exibe bom uso do palco, da movimentação gestual e proxêmica, mas boa parte do grupo tem péssima dicção e praticamente nenhuma expressão facial. Há gritos em exagero, o que dificulta a compreensão, entonações pobres, sem substância e excesso pouco útil de força. Natalio Maria (Pastor Pereira), Helena Giffoni (Mulher do Pastor) e Dilene Prado (Valdira) têm boas oratórias, mas suas construções são tão rasas quanto superficiais. Simplemente não se consegue entender o que dizem Kawane Weza (Marilyn Mou), Gistele Castro (Jane) e Cláudia Leopoldo (Sara) tamanhos são seus problemas de articulação e projeção das palavras do texto. As duplas Carla Cristina (Meire) e Leandro Santana (Osmar), e Rafael Zolly e Wallace Fortunato (bandidos) têm boas figuras, mas nada além infelizmente para ser visto. José Augusto Mathias (O dançarino) não parece estar à vontade em cena, o que prejudica a fruição, considerando o número alto de vezes em que o ator está no palco. 

Fazem boas participações Cinthia Andrade (Elisa), Cridemar Aquino (Seu Euzébio), Felipe Frazão (Kadu) e Dja Martins (Dona Jurema), nenhum deles com grande destaque. O melhor do elenco de “Favela” se encontra nos belíssimos trabalhos de interpretação de Michel Gomes (apesar do terrível trabalho de voz), de Rafael Zulu (Juvenal) e de Renata Tavares (Suelen), sendo possível encontrar  neles força e intensidade, bom usos do tempo e do ritmo e presenças cênicas potentes. Chama-se a atenção para Gabriel Chadan (Murilo) e para Ana Berttines (Dona Vilma) pela forma ímpar com que estabelecem com seus pares os jogos cênicos, as relações de poder e as marcas fortes de verossimilhança.

O cenário de Derô Martins é bom, porque, além de ilustrar, possibilita o uso do palco com profundidades diversas. No entanto, o desenho de iluminação de Djalma Amaral não têm bom casamento com a ambientação, pois os refletores deixam ver os vazamentos de seu feitio, além de deporem contra a fruição em um contraluz negativo na casa de Dona Jurema. A trilha sonora é concordante com a estrutura na articulação da obra, apesar de, em um dos momentos, oferecer leveza em uma situação que exigiria maior peso. 

Diferente das produções teatrais dos períodos mais nacionalistas do teatro brasileiro, “Favela” não surge como síntese da cultura do país, mas como exposição de uma pequena parte dessa cultura. Sem grandes pretensões, assim, agrada porque surpreende positivamente aqueles mais reservados em relação a talentos mais puros e menos conhecidos do circuito profissional. Pelos resultados positivos e pelas cenas tão bem interpretadas, mas sobretudo pelo belo texto, a produção é bem vinda. 

*

FICHA TÉCNICA
Texto: RÔMULO RODRIGUES
Direção e idealização: MÁRCIO VIEIRA

Elenco:
B Boy - João Augusto Mathias
Bandido "D'Bonde" - Rafael Zolly
Bandido "Sinistro" - Walace Fortunato
Dona Antônia - Helena Giffonni
Dona Jurema - Dja Marthins
Dona Vilma - Ana Berttines
Elisa - Cinthia Andrade
Fiel Kadu - Felipe Frazão
Jeomar - Michel Gomes
Juvenal - Rafael Zulu
Meire - Carla Cristina
Menina Marilyn “Mou” - Kawane Weza
Moça Jane - Gisele Castro
Moça Sara - Claudia Leopoldo
Murilo - Gabriel Chadan
Osmar - Leandro Santanna
Pastor Pereira - Natalio Maria
Policial Celso - Nilson Melo
Seu Euzébio - Cridemar Aquino
Suelen - Renata Tavares
Valdira - Dilene Prado

Iluminação: DJALMA AMARAL
Cenário: DERÔ MARTIN
Figurinos: CAIO BRAGA
Direção de Corpo: SUELI GUERRA
Preparação Vocal: PEDRO LIMA
Direção Musical: MÁRCIO EDUARDO
Música inédita: GABRIEL CHADAN - BANDA FULANOS E CICLANOS
Música inédita: JOÃO AUGUSTO MATHIAS - Mc JOTA
Música “Meu nome é favela”: ARLINDO CRUZ
Assistente de Direção: GILBERT MAGALHÃES
Fotografia: FERNANDA SABENÇA
Arte: LEONARDO MIRANDA
Produção: PRAMA COMUNICAÇÃO (Ana Berttines e Rômulo Rodrigues) &
SOBRADINHO CULTURAL ( Leandro Antônio, Milton Filho e Márcio Vieira)

domingo, 12 de maio de 2013

O tempo e os Conways (RJ)

Stela Maria Rodrigues é atriz convidada para viver a
personagem Sra. Conway
Foto: divulgação

Um clássico com exuberantes interpretações

Duas, entre tantas, são as contribuições de J. B. Priestley (1894-1984), autor de “O tempo e os Conways”, para o público de hoje: uma reflexão sobre elegância e a aristocracia e um posicionamento diante de uma lógica de causa e de consequência. Em cartaz no Teatro da Casa da Gávea, a peça dirigida por Vera Fajardo positivamente se curva diante dessas sugestões com humildade e com sabedoria. Trata-se de um drama neorrealista, escrito em 1937 na Inglaterra, em que uma das cenas se passa em 1937 na Inglaterra. Ou seja, as roupas usadas em cena eram as mesmas roupas usadas na plateia. No palco, estavam os pensamentos que povoavam as cabeças da audiência. O iminente fim do período entre-guerras, a ascensão do comunismo na Rússia, a quebra da bolsa de Nova Iorque anos antes, as discussões sobre massa, liberalismo, cultura e identidade, a arte de vanguarda se propondo a não ter outra função que não apenas existir: a sociedade ocidental estava prestes a sofrer um colapso. No cinema, Visconti e Rosselini começam a viabilizar uma narrativa cujo protagonista é o tempo, seguindo o caminho de Virgínia Woolf na literatura. O fluxo de consciência que corre de forma inconsciente concretiza esse tempo. Eis aí o contexto mundial em que nasceu esse clássico imperdível da literatura britânica e do teatro mundial que agora está em cartaz na zona sul do Rio de Janeiro. Stela Maria Rodrigues, Julia Fajardo e Johnny Massaro estão exuberantes em suas interpretações na peça que tem, também, um primoroso cenário de Mirella Maniaci e trilha sonora da diretora e de Kaleba Villela. 

Como todo bom clássico, “O tempo e os Conways” não carece de muitas apresentações. Em um primeiro momento, a família (mãe e seis filhos) está reunida no auge de sua juventude, esperança e de sua felicidade. A primeira guerra havia acabado há pouco e as pessoas voltavam para suas casas. No aniversário de Kay, todos se juntam a amigos e a parentes e fazem jogos cênicos (charadas), além de dançar, cantar e imaginar um futuro glorioso. Em um segundo momento, dezenove anos depois, Kay faz aniversário de 40 anos, mas a comemoração é bem diferente. Já adultos, todos os irmãos manifestam a dureza que o tempo lhes trouxe. Mais velha, a mãe sente-se mais livre para dizer o que pensa sobre cada um. Com esse movimento, Priestley constrói epicamente uma sociedade para, em seguida, destruí-la. Ou evidenciar as fracas estruturas que fizeram com que ela se destruísse sozinha tal qual castelos de areia. Em cena, a Inglaterra de 1937 tem como Rei o gago George VI que subiu ao trono depois que Eduardo VIII abdicou da coroa para casar-se com a divorciada norte-americana Wallis Simpson. A aristocracia engolia um “sapo” quase tão grande quanto suas forças, o que, na peça, acontece através da cena em que a gloriosa Sra. Conway pede dinheiro emprestado ao jovem rico (e sem classe) Ernest Beevers. 

Por outro lado, “O tempo e os Conways” sugere uma reflexão acerca do provérbio “plantam-se ventos, colhem-se tempestades”. Não acompanhados de atos, os sonhos da juventude não se realizam na maturidade, o que expressa uma visão funcional e tecnicista da sociedade. Em termos estéticos, “O tempo e os Conways” não tem protagonista, mas se viabiliza através de uma chave por onde a peça deve ser olhada: a jornalista e escritora Kay Conway (Julia Fajardo), que assiste inerte aos acontecimentos. É nela que Priestley estabelece sua crítica à passividade. 

Cada um dos outros personagens representa simbolicamente um ponto de conflito que estrutura a obra como um todo. Extremamente emocional, Robin (Johnny Massaro) está no exato oposto de Madge (Mariela Figueredo), bastante racional. A mesma oposição se vê entre o desapego estético de Alan (Igor Vargas) e a futilidade de Hazel (Camila Moreira). Partes desse “esquema”, a Mãe (Stela Maria Rodrigues) que centraliza os personagens, Carol (Thaís Müller) cuja alegria não dura e os contrapontos de Joan Helford (o melodrama, Maria Ana Caixe), Gerald Thorton (o capitalismo, Pedro Logän) e Ernest Beevers (a burguesia, Marcel Pierrotti) que fazem a história seguir adiante. Com interpretações adequadas de Pierrotti, Vargas e Müller, a peça encontra seus piores momentos em Moreira, Logän, Figueredo e Caixe, esses últimos ou apagados demais ou gritões demais em seus tons monocordes e em alguns momentos nada bem aproveitados. O melhor da encenação está em Rodrigues, Fajardo e Massaro: os olhos nunca estão ausentes, as atuações permanecem mesmo quando não há falas, os tempos são precisos, os tons vibrantes, a verossimilhança dada a ver nas ações e nas reações. 

Positivas também são as concepções de figurino de Paula Accioli que, assim como o excelente cenário de Mirella Maniaci, constroem espaço ideal para o fluxo da trama realista correr solta em termos de articulada caracterização. Igualmente positiva é a discreta, e por isso providencial, iluminação de Paulo César de Medeiros e a trilha sonora de Vera Fajardo e de Kaleba Villela, este último o instrumentista que interpreta ao vivo as canções que se ouve na peça. Apesar do negativo trabalho de interpretação de parte do elenco, Vera Fajardo tem boa direção, visto o desafio em parte alcançado de fazer atores tão jovens interpretarem personagens que, num determinado momento, carecem de tão grande profundidade. 

Introduzir um clássico do teatro em uma época tão sedenta por novidade é mérito sobretudo quando o projeto é rico em detalhes, cuidadosa manifestação e resultados positivos. “O tempo e os Conways”, sem dúvida, abrilhanta e engrandece a programação do teatro carioca. A ver! 

*

Ficha Técnica:  Autor: J. B. Priestley
Direção: Vera Fajardo
Tradução e orientação teórica: Renato Icarahy

Elenco:
Camila Moreira (Hazel)
Igor Vogas (Alan)
Johnny Massaro (Robin)
Julia Fajardo (Kay)
Marcéu Pierrotti (Ernest Beevers)
Maria Ana Caixe (Joan Helford)
Mariela Figueredo (Madge)
Pedro Logän (Gerald Thorton)
Thais Müller (Carol).
Atriz Convidada Stella Maria Rodrigues (Srª Conway)
Atriz Substituta Luísa Bruno

Assistente de direção: Juliana Betti
Iluminador: Paulo Medeiros
Cenografia: Mirella Maniaci
Figurino: Paula Accioli
Direção de Movimento:Duda Maia
Versões para “Over There” (George M. Cohan) e “I’ll Follow My Secret Heart” (Noël Coward): Claudio Botelho
Visagista: Marina Beltrão
Tilha Sonora: Vera Fajardo e Kaleba Villela
Prep. Vocal/Teclado: Kaleba Villela
Projeto Gráfico: Márcia Cabral
Fotografia: Guga Melgar
Assessoria de Imprensa: Bia Sampaio (BriefCom Comunicação)
Produção Executiva: Mariana Borgerth
Direção de Produção: Andréia Fernandes e Lya Baptista
Produtor Associado: José Mayer
Realização: Sesc Casa da Gávea
Patrocínio:
Petrobras e Secretaria Estadual de Cultura
Lei Estadual de Incentivo à Cultura

Horses Hotel (RJ)

A ideia original de "Horses Hotel" partiu de Ana Kutner,
que aparece na foto ao lado de Renato Linhares
Foto: divulgação

O problema da desmedida
“Horses Hotel” é um bom espetáculo, mas perde a medida em dois momentos: no meio e no final. De matriz surrealista, como em Artaud (mas sem ideologia), em Frida Kahlo e em Salvador Dalí, é interessante o fato da narrativa não ter lógica aparente, abrindo diversas pontes como se não estabelecesse de forma objetiva qualquer relação, o que sugere um sonho inconsciente, ilusório e bastante sensível. Com direção de Clara Kutner e de Alex Cassal, esse último o autor da dramaturgia, o espetáculo está em cartaz no Teatro Oi Flamengo, na zona sul do Rio de Janeiro. O trabalho de interpretação é magnífico! 

Como nos artistas citados, a dramaturgia de Alex Cassal é enquadrada por uma moldura que serve apenas tentar informar à fruição onde começa e onde termina a obra, tendo coerência suficiente apenas para dar traços de narrativa sem que haja uma linha forte que construa a relação de causa e de efeito como no realismo. O valor à sensorialidade, expresso na forma hedonista com que os personagens estão dados a ver, se concretiza nas relações afetivo-sexuais que acontecem no palco. A heterossexualidade, a homossexualidade, a bissexualidade, o voyeurismo, o sadomasoquismo, o desapego do mundo material e a tendência ao lisérgico fazem das imagens dispostas na cena lugares de liberdade e de prazer. Porém, em um determinado momento, quando a linha que, embora apenas tênue, era existente, se desfaz, o ritmo cai. A relação inicial entre o Fotógrafo e a Jovem do interior parece terminar quando ele traz um michê (Theo) para a casa dele (em que ambos moram) e ela viaja para o exterior, trazendo de lá um quarto personagem (Cowboy). A partir daí, a fundação do Fotógrafo como protagonista da obra, em uma cena (excelente enquanto todo, mas negativa enquanto parte de um todo ainda maior), em que ele veste um robe de veludo vermelho, pesa a narrativa, porque faz a obra caminhar para outro lugar. Essa cena e todos os signos que circular, vertical ou horizontalmente a estruturam são negativos, porque demonstram um exagero em relação à forma como os outros elementos são tratados. O mesmo acontece nas cenas finais, em que um show de rock acontece e se alonga (péssima enquanto todo, pior ainda enquanto parte de um todo ainda maior), fazendo, mais uma vez, desaparecer a linha (fina) que dá liga para a obra. 

Em meio às diversas referências do rock, do underground, da arte e da literatura, “Horses Hotel” parece se gabar de não dialogar com o público comum. Na verdade, o resultado desse pastiche pop cultural é positivo, porque constrói uma obra hedonista, uma espécie de Medusa tão bela que puxa o olhar do ser humano, mas o transforma em pedra quando ele não resiste, a olha e a inveja. Renato Linhares (Fotógrafo), Ana Kutner (Jovem) e Emanuel Aragão (Theo, Cowboy e Sam) estão, dentro dessa concepção, excelentes, porque seus personagens são belos, carismáticos, sensuais, capazes de ser invejados dentro de sua liberdade de fazer o proibido ou o nem tão proibido assim. Em discretíssima participação, Roberto Souza tem, também, excelente atuação dentro das possibilidades que seu silencioso personagem tem, o que expressa um trabalho de construção de personagem do conjunto de atores bastante nobre. 

Com figurino de Antônio Medeiros, desenho de luz de Renato Machado, cenário de Guga Feijó, “Horses Hotel” apresenta boa ambientação para o contexto semântico da obra: colchões nas paredes, estética despojada (leia-se: aparentemente sem ordem ou caótica) e climas hedonistas (valorização do prazer). A preferência por uma paleta de cores mais escuras (preto, cinza, azul e marrom) ajuda a construir a ideia de inconsciência, sonho e de liberdade para fazer as coisas sem que os outros saibam, concretizando a sensação de intimidade. 

A direção de Alex Cassal e de Clara Kutner, assistidos por Marina Provenzzano, com direção de movimento de Alice Ripoli, apesar dos problemas de ritmo já apontados, tem como principal ponto positivo o desafio vencido de retomar o ritmo uma vez perdido. É uma pena que o final seja tão ruim. 

*

FICHA TECNICA
Elenco: Ana Kutner, Renato Linhares, Emanuel Aragão, Roberto de Souza (musico)
Dramaturgia: Alex Cassal
Direção: Alex Cassal e Clara Kutner
Assistente de Direção: Marina Provenzzano
Direção Musical: Amora Pêra e Paula Leal
Direção de movimento: Alice Ripoll
Figurino : Antônio Medeiros
Cenário: Guga Feijó
Musico: Roberto Souza
Traduções: Amora Pêra e Marina Provenzanno
Iluminação: Renato Machado
Fotos: Felipe Lima
Programação Visual: Raul Taborda
Ass. Jurídica: Ricardo Brajterman
Produtora Executiva: Sílvia Rezende
Direção de Produção: Ana Kutner
Realização: AKutner Produções e Eventos Ltda

Emily (RJ)

Projeto de "Emily" foi elaborado durante 25 anos
pelo diretor Eduardo Wotzik
Foto: Renato Krueger 

Um bom cálice de lirismo no teatro carioca


Emily” (The Belle of Amherst), de William Luce, é um monólogo interpretado por Analu Prestes e dirigido por Eduardo Wotzik sobre a poetisa norte-americana Emily Dickinson (1830-1886). Influenciada pela literatura neoclássica e romântica, que dividiam os leitores do sul dos Estados Unidos no miolo do século XIX, a escritora, que escreveu mais de 1800 textos, só foi realmente conhecida dos anos de 1950. (Houve uma publicação de seus poemas em 1890, mas sabe-se que nela os textos foram alterados.) O motivo é simples: de verve ora bucólica, ora romântica, Dickinson encontrou eco no período de expansão do “American Way of Life”, em meio à Guerra Fria, quando era interessante ao grande capital fazer com que o povo destinasse sua atenção para os melodramas de Douglas Sirk, a beleza de Marilyn Monroe e para as radionovelas latinas. Durante sua vida, o comportamento recluso da escritora, tido como excêntrico, não permitiu que ela gozasse no devido tempo do sucesso merecido. É, por isso, bem vindo o projeto que traz para o palco o Teatro Poeirinha, em Botafogo, o universo rural e simples das palavras dessa grande artista. 

Dickinson está, para os leitores de língua portuguesa, ao lado de Alberto Caeiro (Fernando Pessoa), Manuel de Barros, Cecília Meireles, Mario Quintana e de Cora Coralina. Com versos simples, os temas bucólicos são desafiados pela ironia, vencendo o combate com rica sonoridade e rimas pobres, manifestando uma ausência de formalismo. No palco, Analu Prestes, celebrando 40 anos de carreira, estabelece uma ponte entre a artista e a sua arte sem positivamente levantar a bandeira da justificativa. Através do texto de Luce, Emily de Prestes conta a sua vida, fala de si e de seu universo, indicando os caminhos e os temas que podem ter sugerido os poemas escritos. Em termos cenicamente estéticos, o espetáculo convida para a atenção às coisas simples, à natureza, aos sentimentos mais puros, aos temas mais cotidianos. Fazendo referências aos símbolos sensoriais, há a valorização do cheiro (flores), do paladar (torta de melado), do tato (o pelo do cachorro), da audição (o canto dos passarinhos) e da visão (os funerais que passam diante de sua casa em direção ao cemitério que fica atrás de sua casa), o que expressa uma continuação dos ideais neoclássicos (no Brasil e em Portugal, árcades) que valorizavam o belo, o humano, a harmonia. 

Analu Prestes é carismática e se utiliza da retórica de forma clara, afetiva, convidativa. Com movimentos simples, vestindo um belíssimo vestido branco (o figurino é de Rita Murtinho), ela circula em um cenário bucólico composto por uma árvore florida, um banco de madeira e um solo branco coberto de folhas (o cenário é da própria atriz e a iluminação é de Fernanda Mantovani). Nesse sentido, a direção de Eduardo Wotzik, assistido por Clarisse Derzie Luz e por Tatiana Muniz, corrobora com o universo sígnico do texto e faz da obra um lugar positivamente coeso e coerente. 

“Emily” é capaz de emocionar, porque toca o ser humano no seu poder de sentir o mundo, também chamado de sentimentos. Com excelente interpretação e afinada direção, o quadro é uma bela e justa homenagem à poesia e à Srta. Dickinson, ambas fontes inesgotáveis de conteúdo e de sensações. 

*

FICHA TÉCNICA
Autor: William Luce
Adaptação e texto final: Eduardo Wotzik
Direção e concepção: Eduardo Wotzik
Elenco: Analu Prestes
Trilha sonora: Paulo Francisco Paes
Direção de arte: Analu Prestes
Iluminação: Fernanda Mantovani
Programação visual: Fernanda Pinto
Assistente de direção: Clarisse Derziè e Tatiana Muniz
Produção executiva: Elaine Moreira
Produção e Assessoria de imprensa: Barata Comunicação

quinta-feira, 9 de maio de 2013

Spa (RJ)

Comédia estreia no Shopping da Gávea
Foto: André Muzelli/ AgNews


Quando o melhor da comédia não é a piada
“Spa” parte de um problema interessante, mas dá poucos passos além. Três mulheres ficam presas em um centro de tratamento junto com sua proprietária em função do mal tempo. Irritadas com a chuva, com o cardápio magro e com a intransigência da dona, elas ainda convivem com os problemas externos que as levaram para o lugar. Nenhuma delas está lá propriamente para perder peso, mas para: 1) Maria: refletir sobre o relacionamento amoroso atual; 2) Cristina: livrar-se do stress; e 3) Luísa: esquecer o ex-namorado. Louca por comidas completamente naturais, de origem vegana, Dra. Wilma é obcecada por saúde e controla com mãos de ferro o seu negócio, enfrentando, no fim de um final de semana, um motim que se estabelece entre as clientes. Escrito por Vítor Hugo Marques, o texto é recheado de piadas. Dirigida por João Batista, a encenação também é coberta de piadas. Nesse sentido, negativamente, cada vez que “Spa” quer fazer rir, o espetáculo causa constrangimento. Carol Loback, porque em mais momentos consegue ganhar a oportunidade de fugir tanto do texto como das partituras corporais, é quem consegue o melhor resultado. Em cartaz no Teatro Vanucci, a comédia carece de espontaneidade e leveza. Em termos estéticos, falta-lhe uma concepção mais articulada.

Todas as falas de todos os diálogos prenunciam uma piada logo nas primeiras palavras de forma que a obrigação de rir prende o espectador que acaba por não se sentir à vontade. Da mesma forma, os gestos são todos partiturizados, os movimentos parecem coreografados, as personagens parecem ter saído de um anime japonês. O cenário de Anderson Dias, além de depor esteticamente contra a obra, necessita de uma movimentação que prejudica o ritmo. A trilha sonora de Pedro Lobo é uma irritante repetição do mesmo tema durante todo período da fruição, alto demais em vários momentos. Em cores quentes (variações de laranja, vermelho e roxo), todos os figurinos de Mauro Leite deixam a desejar por não caracterizarem as personagens, pesarem o quadro visual e pouco variarem. A iluminação sóbria de César de Ramires positivamente aponta para o realismo e, por isso, faz boas afirmações.

Quanto às personagens, os estereótipos marcam uma concepção confusa de comédia. Enquanto o enredo vai em direção de uma comédia de costumes (realismo), o exagero (e superficialidade) das construções deixam ver uma farsa contemporânea nos moldes de “Zorra Total” e de “A praça é nossa”. Ambos os gêneros são válidos, dignos e importantes numa concepção sem preconceitos de análise teatral como aqui se privilegia. Mesmo assim, são entendimentos diferentes e que, numa só produção, se opõem, se confundem e anulam a obra. Interpretada por Dig Dutra, Luísa fala alto demais, tem movimentos muito amplos, suas intenções são constantes (e monótonas) e sua atuação está longe do tempo da comédia seja ela de que gênero for. O mesmo exagero se vê na Dra. Wilma de Pia Manfroni, acrescentando o fato de que, apesar de formada em medicina, a personagem estranhamente fala com muitos erros de português. No entanto, em Manfroni, é possível observar irregularidade, quebras de tempo, intenções bem postas que permitem que a personagem tenha um resultado mais positivo. Vítima do seu namorado, Maria (Helga Nemecsyk) é uma personagem dramaturgicamente mal construída. Depois dos trinta anos, ela quer ser mãe, contrariando a vontade do namorado com quem convive há mais de três anos. Uma vez que, desde Aristóteles, sabe-se que a comédia é o gênero que exalta os defeitos dos humanos, percebe-se nessa personagem um distanciamento negativo das demais. (Não  há nada de errado em uma mulher querer ser mãe nessa idade e em um relacionamento estável.) Nemeczyk, por isso, tem mais desafios a transpor e, por consegui-los em vários momentos, tem resultado positivo. Como já apontado, Carol Loback (Cristina) é quem tem o melhor resultado em seu trabalho de interpretação, apesar de, por vezes, parecer infantilizada em excesso. Nos seus silêncios, na forma como reage às falas alheias e sobretudo quando comenta corporalmente as ações das demais, manifestando aí espontaneidade, ela vence as barreiras impostas pelo péssimo texto e pela terrível concepção de direção e consegue tirar risadas do público. De modo geral, no elenco, sobram gritos, sobram tempos, sobram piadas, sobram movimentos, gestos e feições. 

Vale dizer, por fim, que essa análise provém de uma apresentação que sucede a estreia do espetáculo. Logo, considerando o currículo nobre de boa parte das atrizes, presume-se que o resultado há de ficar melhor quanto mais elas estiverem longe do autor e do diretor. É consenso, nesse caso felizmente, que teatro são atores, seus personagens e o público. Apenas esses três. 

*

Ficha técnica:
Texto: Vítor Hugo Marques
Supervisão Artística: Luiz Fernando Lobo
Direção: João Batista
Elenco: Carol Loback (Cristina), Dig Dutra (Luísa), Helga Nemeczyk (Maria) e Pia Manfroni (Dona Wilma).
Trilha Sonora: Pedro Lobo
Cenografia: Anderson Dias
Figurino: Mauro Leite
Iluminação: Cesar de Ramires
Programação Visual: Thiago Ristow
Caracterização: Rosa Bandeira
Cabelos: Sandro Valerio
Assessoria de Imprensa: Minas de Ideias
Consultoria de Produção: Tuca Moraes
Produtor: Lucas Mansor

quarta-feira, 8 de maio de 2013

Um inimigo do povo (RJ)

Produção fica em cartaz até o final de maio de 2013
Foto: divulgação

Excelente conjunto de interpretações

“Um inimigo do povo” é a 13a produção do projeto “Teatro na Justiça”, com idealização, curadoria e direção artística de José Henrique e de Sílvia Monte. Com direção de Monte, o espetáculo, que fica em cartaz gratuitamente no Centro Cultural do Poder Judiciário do Estado do Rio de Janeiro, no centro, surge a partir de um texto do autor norueguês Henrik Ibsen (1828-1906), já infelizmente quase esquecido dos palcos. Com méritos principalmente no conjunto de interpretações e na viabilização dos aspectos visuais, a peça tem muitos méritos e merece ser vista. Destacando os pontos positivos, a análise a seguir há de destacar algumas questões fundamentais que surgem a partir de uma concepção que não aparece de todo clara negativamente.

Ibsen nasce e cresce no século das luzes quando o mundo colhe os frutos plantados por Kant e por Hegel, valorizando a razão sobre as emoções, definindo a verdade, a efetividade da arte além de dar suporte para a Revolução Francesa e seus ideais liberais. Ibsen se dirige à burguesia que nascia naquele contexto histórico de Revolução Industrial, libertação dos escravos, independência das colônias americanas, ampliação do império britânico e enrubescimento do romantismo que começava a dar lugar a um novo gênero na literatura, na música e no teatro. “Um inimigo do povo” foi escrito em 1882 e, naquela ocasião, para muitos, já era considerado um teatro que hoje chamaríamos de reacionário. (“O Capital”, de Marx, é de 1867) Ou seja, já há muito tempo, a contribuição maior de Ibsen às artes é a construção de um drama realista psicológico e suas potencialidades de jogo estético. O tema de suas obras, de um lado acreditar que só uma arte que leve a pensar é verdadeira; e, de outro, fazer crer que a verdade é privilégio para poucos; já não encontra eco em nossa sociedade felizmente.

Nesse sentido, o mérito maior da presença dessa obra cênica na grade de programação do Rio de Janeiro, além do excelente trabalho dos atores, como mais adiante será comentado, é fornecer ao espectador um brilhante jogo dramático, em que o poder passa de mão em mão, gira de um lugar para outro com uma gangorra regular e eterna (Strindberg produzirá obras referências também nesse sentido). Não há, em Ibsen, como também não em Tchekhov, alguém que seja unicamente bom ou unicamente ruim. O realismo surge como uma resposta ao romantismo justamente por dizer “não” ao superficialismo idealista e evidenciar uma sociedade corrompida desde de sua base ao seu topo. Por isso, “Um inimigo do povo”, embora seja uma grande obra, não é a mais relevante do autor norueguês, o que está longe de tirar-lhe o brilho.

A crítica a Ibsen nesse texto é de que ele esconde a personagem chave dessa história  e valoriza demais um herói, o que confunde a sua própria arte. Com destaque exagerado, o Dr. Tomas Stockmann flerta com Peri (José de Alencar), jovem Werther (Goethe) e com tantas outras figuras românticas, incorruptíveis e superficiais. A partir do realismo psicológico, uma obra é vista sempre através dos olhos de alguém (esse gênero inspirará, por isso, nas artes visuais, o impressionismo). O centro da história, assim, é a Sra. Catarina Stockmann, esposa do doutor. No caso, o público há de se identificar com ela, que se localiza nem tanto na defesa de suas conquistas materiais e de sua posição social, nem tanto ao lado do marido na defesa de seus ideais políticos. É nela que está o equilíbrio.

O Dr. Tomas Stockmann é médico de uma pequena cidade cujo prefeito é seu irmão, Peter Stockmann. O lugarejo vive um período de ascensão econômica desde a abertura de um balneário curativo que atrai turistas no verão em busca de um período mais saudável e da possível cura de seus males. O empreendimento, que tem rendido extraordinários lucros, foi fruto de um imenso esforço da população que pagou caro pela sua viabilização. Ocorre que o médico descobre que as águas do balneário estão contaminadas pela rede de esgotos mal construída e, por isso, são impróprias tanto para o banho quanto para beber. Quem vem se curar pode, na verdade, adoecer fatalmente. O arranjamento de Ibsen parte justamente dessa dialética: o que é bom para a cidade é também o mal para ela. Herói e Anti-herói, o doutor e seu irmão, divergem: um defende o fechamento imediato do lugar e o outro mal cogita a possibilidade de viver sem os ganhos que o negócio traz. Entre os dois, a imprensa (Hovstad, dono do jornal), os pequenos (Aslaksen) e os grandes empresários ( Kiil) e também os oficiais (Capitão Horster, pois Ibsen não deixa claro se ele defende o doutor por ideologia ou por interesse em sua filha, a professora Petra Stockmann). A única que convive com o dilema sem apressar-se em resolvê-lo é Catarina Stockmann, que estimula o marido a fazer uma passeata, mas diz que lhe assistirá da janela de sua casa. Nesse contexto, na montagem atual, Catarina (Nedira Campos), em excelente construção, carecia de maior valorização da direção do espetáculo que, talvez concordante demais com o texto, relegue à personagem um lugar muito pequeno. A impressão é de que os ideais não-estéticos, mas os filosóficos e políticos, além do posicionamento artístico de Ibsen, ainda são o que merecem maior valor, o que seria uma desventura.

Com exceção de Diogo Salles, que manifesta uma construção um tanto quanto apática em cena, todos os personagens, das pequenas às grandes aparições, estão não menos que excelentes, de forma que “Um inimigo do povo” se destaca entre os demais espetáculos da cidade pelo brilhante conjunto de elenco. O texto é dito de forma esplêndida, as intenções são bem postas, as pausas acontecem na medida, os gestos são delicados e potentes, a movimentação é inteligente na medida em que concretiza as relações, a estrutura como um todo é simbólica e, por isso, profunda. De pequenos atos como colocar um livro sobre a mesa ou entregar-lhe um chapéu a grandes acontecimentos como um discurso, o quadro criado por Sílvia Monte é bastante valoroso. Para destacar apenas um exemplo de grande trabalho, vale citar Paulo Japyassú (Aslaksen), cujos pequenos movimentos, sutis contornos na entonação oral e clara expressão, indicam em sua pequena participação o que se verá ampliado nos trabalhos de Alexandre Mofati e de Marcello Escorel, o prefeito e o doutor. Eduardo Rieche (Hovstad), Antônio Alves (Kill), Janaína Prado (Petra) e Nedira Campos (Catarina) têm exatamente trabalhos de igual valor resguardando o tamanho de suas aparições na narrativa.

Ronald Teixeira (cenário e figurino) tem positivo trabalho de caracterização, a elegância em detalhes, atendendo ao gênero de forma adequada e, por isso, bem vinda. A trilha sonora de Sílvia Monte foi extraída de Suíte Peer Gynt, de Eward Grieg, músico de nacionalidade norueguesa, reafirmando a sua concepção romântica da história.

“Um inimigo do povo” faz pensar e, por isso, seria, na concepção de Hegel, uma arte de primeira grandeza. Fazer pensar, isto é, estimular a reflexão e o debate sobre a sociedade, aqui, para esta análise, são apenas um dos muitos motivos que fazem dessa obra grandiosa.

*

Ficha técnica:
Autor: Henrik Ibsen
Tradução: Pedro Mantiqueira
Direção e Trilha Sonora: Sílvia Monte
Cenário e Figurino: Ronald Teixeira
Iluminação: José Henrique
Assistente de direção: Luiz Paulo Barreto e Laura Nielsen
Assistente de figurino: Liza Machado
Assistente de cenário: Eloy Machado
Operação de som: Maria Lemos
Operação de luz e contrarregragem: Cristiane Ferreira
Pesquisa, Montagem e Edição da trilha sonora: Arthur Teixeira
Camareira: Selma Freitas
Projeto Gráfico: Sydney Michelette Junior
Equipe de produção: CCPJ-Rio
Assistente de produção: Carolina Ramos e Sara Machado
Produção executiva: Luciana Adão
Direção de produção: Silvia Monte
Criação e Produção: Centro Cultural do Poder Judiciário do Estado do Rio de Janeiro
Realização: Tribunal de Justiça do Estao do Rio de Janeiro

Elenco (por ordem de entrada):
Nedira Campos
Alexandre Mofati
Eduardo Rieche
Marcello Escorel
Diogo Salles
Janaína Prado
Antônio Alves
Paulo Japyassú