Foto: Jonathan Heckler / PMPA
Babau ou a vida desembestada do homem que tentou engabelar a morte
Dirigido por Marcondes de Lima, o espetáculo de mamulengos pernambucanos, uma técnica parecida com a de teatro de fantoches, mas que tem um quê de especial: os bonecos seguem uma tradição familiar. Feitos pelos próprios manipuladores, os bonecos, assim como a arte de “brincá-los”, passam de pai para filho e o sabor disso sente quem lhes assiste. O carinho, o peso, o jeito, a energia emanam do boneco e operam sobre o público. No caso de uma plateia de crianças, dois espetáculos surgem: o que eu vejo no palco e o que eu vejo na audiência.
A história escrita por Carla Denise, uma das atrizes-manipuladoras, é simples e isso é sinônimo de boa. Um mamulengueiro morre, mas pede que seus bonecos sejam queimados. Um amigo do morto pede um dos bonecos e a viúva resiste, mas aceita o pedido. Esse boneco faz história nas mãos do novo dono que acaba, ele também, morrendo. Babau, o boneco que sobreviveu a fogueira, é deixado como herança para um antigo aluno desse novo dono. A peça, assim, além de contar uma história, conta de si, de sua cultura, de sua própria história no folclore pernambucano.
Babau é um personagem que descende de Arlechino, de João Grilo, de Didi (não esse personagem que hoje está na TV, mas aquele que o mesmo Renato Aragão fazia nos anos 80). Pobre e esperto, feio e charmoso, é um brasileiro a vagar pelo sertão, fugindo da fome, perseguindo o prazer, vivendo um dia de cada vez. Não há um só momento em que, ao entrar em cena, tudo não pare e ninguém mais consiga olhar para outra coisa que não ele. Se o carisma dos outros bonecos é grande, de Babau é ainda mais.
Com cenário simples, sotaque forte, trilha e iluminação a enriquecer os diversos momentos, o espetáculo participante do 17º Porto Alegre em Cena agrada grandes e pequenos, diversas culturas e origens, quem vê pela primeira vez e quem já conhece esse teatro ou essa história. Os atores mostram para o público que estão manipulando os personagens e, ao fazer isso, dizem que todos podem também fazer. A relação é de igual para igual, porque quem deve brilhar são os bonecos, os mamulengos. É para eles que nós todos fazemos a peça: os atores interpretando e nós concordando em aceitar o que eles propõem. E não é difícil fazer isso uma vez que, de um lado, os atores são bons e a equipe é muito bem dirigida conceitualmente. Por outro lado, por que não deixar-nos encantar pela magia dos bonecos, essa tão bem executada?
A ressalva que eu sinto ser preciso fazer é com relação à assistência, ou melhor, uma pequena parte dela. A escola que recebeu a peça através do valoroso Projeto de Descentralização do Poa Em Cenaprecisa lembrar aos seus professores de serem professores. Quando o teatro vai à escola, não vai como recreio. Nem para os alunos, nem para os professores. E, por recreio, não entendo como algo divertido em oposição à chatice da aula. Professor é aquele que tem prazer em ensinar e faz do ensino o seu prazer. É aquele que transforma a aula em algo bom e quem tem como objetivo fazer que, quando ela termine, seus alunos aspirem pelo seu reinício. Na plateia, fiquei envergonhado de ser professor e ver minhas pseudo-colegas escoradas nas paredes enquanto alguns de seus alunos, desacostumados com a experiência teatral (e ninguém nasce sabendo!), perdidos em acompanhar a história, comentar com seus amigos e ainda resolver sua vida que não pára nem na aula, nem no teatro, nem em qualquer outro lugar. Professores só existem no mundo para ensinar e aquele que não o faz é um inútil. E, quando eu digo isso, não estou falando em ensinar o grupo de alunos que constam no seu caderno de chamada, mas todos. Professor deve ser exemplo a ser seguido e isso não tem limites nem de turma, nem de horário, nem de local. E essa discussão não aceita qualquer argumento salarial, porque bons professores são bons sendo públicos ou privados, para crianças ou para adultos, na escola e no parque.
Fora essa decepção tão tardia, fica a lembrança, em mim e em todos, de que os espetáculos vistos foram bons, mesmo que, em deles, houve uma falha grave que quase comprometeu o todo, enquanto que, no outro, tudo foi só excelência. Palmas também para a Adriane Azevedo que coordenada esse projeto tão bonito do Festival.
* Texto escrito em setembro de 2010 por ocasião do 17º Porto Alegre em Cena.
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