domingo, 17 de setembro de 2017

10o Festival Niterói em Cena - Mostra de Cenas Curtas (RJ)

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Foto: divulgação

Ivan Fernandes em "Jogo da velha"


28 esquetes no 10o Festival Niterói em Cena

O 10o Festival Niterói em Cena teve a etapa da Mostra Competitiva de Cenas Curtas encerrada ontem à noite. Foram 28 esquetes apresentadas ao longo de quatro dias, de 13 a 16 de setembro, unindo cidades como São Gonçalo, Niterói e Rio de Janeiro, mas também São Paulo e Belo Horizonte em um evento bastante bonito. Os espetáculos concorrem a vários prêmios a serem conferidos pela comissão julgadora formada por Ivan Sugahara, Vilma Melo e Moacir Chaves em cerimônia de premiação que acontecerá no próximo domingo, 24 de setembro. Todas as apresentações foram gratuitas e aconteceram no Teatro Popular Oscar Niemeyer, no centro de Niterói. Destacaram-se positivamente as esquetes “Jogo da Velha” (Cia Ávida), “Aguarde para ser atendido obrigado por aguardar” (Vendaval Fulminante), “2 homens e 1 um dinheiro” (Melan Cia), “Enjaulados de la passion” (Cia. Crisálida) e “Last dance” (Este coletivo). Abaixo alguns comentários gerais sobre todos os espetáculos apresentados.

1o dia – 13 de setembro
“Jogo da velha” – Produzida pela Cia. Ávida (São Gonçalo – RJ), a esquete foi dirigida por Gabriel Mendes. Com tons épicos, a dramaturgia narra a história de uma cidade aterrorizada pela chegada de uma Velha Senhora (Ivan de Oliveira), que traz a morte para toda a vida da pequena população. Como desafio, ela impõe que só irá embora se alguém conseguir com que ela faça algo sem a sua vontade. Então, dois irmãos gêmeos (Kadú Monteiro e Michael Alves) bolam um plano para expulsá-la com a ajuda de uma música incessante e ensurdecedora e o público torce para que os corajosos heróis vençam a batalha. Com belíssimos trabalhos de interpretação e um precioso investimento estético em todos os aspectos da direção de arte, a peça que abriu a programação do Festival foi um dos melhores trabalhos apresentados nele. Excelente!

“Offshore – afastado da costa” – Assinada pelo Coletivo Criativo (Rio de Janeiro – RJ) a peça surge a partir do desejo de duas atrizes (Júlia e Lívia Bravo) que, na vida real, são irmãs gêmeas idênticas, de falar sobre sua relação com seu pai. Defendendo a proposta a partir da operação de todos os elementos estéticos (visuais, sonoros, plásticos) do espetáculo, elas têm algum mérito na aproximação do tema e de seus meios de realização com o público sobretudo quando assumem a subjetividade de sua narrativa. A esquete foi dirigida por Wellington Fagner e teve seu maior valor nos desafios da proposta de encenação, alguns bravamente vencidos, como a criatividade no uso dos signos teatrais.

“Berenice” – Realizado pelo Grupo descarte (Rio de Janeiro – RJ), o monólogo de Juliana Bittencourt com direção de Kako Leitão teve seu melhor mérito pela inclusão na pauta do evento do tema da velhice. Não há dúvidas, pois, de que é preciso discutir o que fazemos e faremos com o número cada maior de idosos em nosso mundo. Apesar da concepção apresentar algumas incoerências vistas pela indecisão sobre quais referencias estéticos utilizar – se o realismo, se o teatro contemporâneo –, a esquete conquistou o público pelo carisma da atriz e, mais ainda, do tema.

“Selecionado” – Da Arrebol Companhia de Teatro (Rio de Janeiro – RJ), a comédia escrita e dirigida por Isabele Riccart narra o azar de um homem que, enfrentando a notícia de que seu filho é homossexual, recebe constantes ligações de uma empresa de telemarketing querendo lhe vender um plano de Seguro Personal. O diálogo entre os dois personagens, interpretados por Betina Rezende e Rafael Queiroz, com destaque mais positivo para a primeira, vence a graça através da ironia. Como um todo, no entanto, a esquete perde oportunidades de aproveitar as possibilidades da narrativa, investindo mais na comédia nonsense e parando por aí.

“A mui lamentável advertência de Píramo e Tisbe” – Produzida pelo grupo Primitivos (Rio de Janeiro – RJ), a esquete dirigida por Jéssika Menkel adapta a versão de William Shakespeare (1564-1616) da lenda grega que está no meio de “Sonho de uma noite de verão” (1594), mas que ele adaptou do original de Ovídio (43 a.C – 18 d.C.) e também da de Geoffrey Chaucer (1343-1400). Com muitos méritos, sobretudo pelo modo como a concepção deu ótima unidade aos trabalhos de interpretação, a esquete tem seus pontos mais sensíveis na introdução e na finalização da narrativa. No elenco, Alex Marcolini, Raphael Joia, Francisco de Assis, Ian Oliveiras e Marcelo Britto, com destaques para os dois primeiros positivamente.

“A grande festa” – Com texto e direção de Rafael Souza-Ribeiro, o monólogo interpretado por Paula Valente teve, como seus pontos mais altos, a dramaturgia e a concepção de direção. Em cena, Valente interpreta uma socialite que dá uma festa luxuosa em seu apartamento, mas vê, diante de si, toda a decadência da sociedade que a circunda. Seu ponto de vista ultrarreacionário, como uma espécie de espelho invertido para os valores culturais que cada vez mais são difíceis de defender, se responsabilizam pela comicidade ácida que o espetáculo propicia. Além disso, a personagem surge como que uma escultura dura e fria, resistindo às transformações e sofrendo as consequências de seu conservadorismo. Por isso, foi um dos melhores trabalhos da primeira noite do festival.

“Linha de frente” – Realizada pela Espantalhos Cia. de Comédia (Rio de Janeiro – RJ), a esquete com texto de Léo Gaviole e direção de Lipe Dál-Col narra alguns momentos entre dois soldados medievais (Léo Gaviole e Luiz Prata) que estão em frente ao exército inimigo, esse último com mais chances de vencer a batalha. O despreparo e sobretudo o medo dos militares fazem nascer o temor em meio à coragem, o que vai deixando a dramaturgia cada vez mais engraçada. Com bons trabalhos de interpretação em uma proposta bastante simples, a obra encerrou a noite positivamente.

2o dia – 14 de setembro
“Anjo azul acerca de tudo” – Assinado pelo grupo Odara Produções (Niterói – RJ), o espetáculo tem como único (e valoroso!) mérito a inclusão do tema do autismo na pauta. Tanto o texto de Mônica Ferreira e de Joel Vieira, como a direção de Mario Souza, chegando às interpretações de Mônica Ferreira, de Joel Vieira, Silvano Marciano, Luana Cantinin e de Helena Dantas revelam muitas carências no uso da linguagem teatral. No todo, sobraram incoerências e faltou unidade. O trato superficial do tema, porém, não impediu o espetáculo de receber os aplausos por suas boas intenções na abertura da segunda noite de apresentações.

“A balança” – Realizada pelo grupo Teatro 96 (Rio de Janeiro – RJ), a esquete com texto e direção de Wladimir Alves Fernandes narra a história de um homem (Silvio Garcia) que chega ao inferno e lá, diante do diabo, descobre os motivos de sua condenação. O altíssimo fundo moralista da dramaturgia e sua monótona linearidade no desenvolvimento da narrativa dificultaram, talvez, os trabalhos do elenco composto por Danilo Maia, Silvio Garcia, Mariana Pompeu, Elisa Barbosa e Rodrigo Ladeira de obterem melhores resultados. O jeito superficial como os recursos estéticos foram utilizados também trouxe problemas ao espetáculo infelizmente.

“Fragmento Pagú pra quê?” – Assinado pelo grupo UchoArte (Rio de Janeiro), o monólogo dirigido por Luã Batista tem texto e atuação de Gleice Uchoa. Os belíssimos usos da luz e do figurino colaboraram para aproximar o público da personagem histórica Patrícia Rehder Galvão, a Pagu (1910-1962), figura célebre do movimento modernista da primeira metade do século XX e sobretudo da luta comunista no Brasil no mesmo período. A esquete, no entanto, apesar dos seus esforços, não conseguiu apresentar bem a personagem histórica e nem tampouco aproximá-la do público talvez pelo limite de tempo que a situação exigia. Ficou, apesar disso, o mérito pela intenção e pelo bom trabalho de interpretação.

“Do lado de cá” – Produzida pela Cia. Parioca de Teatro (Rio de Janeiro – RJ), a esquete apresenta uma deliciosa brincadeira com os códigos do teatro contemporâneo. No texto escrito por Fabrício Branco, um casal (Bayron Alencar e Cristiane Maquiné em ótimas atuações) está sentado na plateia de uma peça de teatro reagindo ao que supostamente vê. Os interesses distintos deles em relação ao programa, suas compreensões diversas de mundo e seus backgrounds artísticos opostos geram conflitos engraçados que divertiram a plateia. Eis uma ótima comédia!

Raquel Alvarenga em
"Aguarde para ser atendido obrigado por aguardar"
“Aguarde para ser atendido obrigado por aguardar” – Realizada pela Vendaval Fulminante (Rio de Janeiro – RJ), a excelente esquete foi um dos melhores trabalhos apresentados no Festival. O belíssimo texto escrito por Clara Meirelles é dividido em dois monólogos. No primeiro, uma mulher (Ana Abbott) às portas da meia idade requisita por telefone o congelamento de seus ovários e ganha, de “brinde”, a possibilidade de congelar-se inteiramente de modo que nem envelheça e nem morra. No segundo, décadas depois, a mesma mulher (Raquel Alvarenga) liga para o mesmo serviço e tenta oferecer suas impressões sobre o serviço utilizado, tentando modificar o plano. De maneira leve e carismática, a comédia oferece ao público uma discussão pertinente que é tratada com complexidade e poesia. Os excelentes trabalhos de interpretação qualificaram ainda mais o todo positivamente. Excelente!

“Caim” – Assinado pela Oficina Social de Teatro (Niterói – RJ), o espetáculo com texto de Sylvio Moura e direção de José Geraldo Demezio começa com a luta de Caim e de Abel e o consequente assassinato do segundo pelo primeiro. O mote bíblico, desafiando os preconceitos e vencendo todos eles com relativo mérito, é ponto de partida para um embate entre os homens e deus. O excelente trabalho de interpretação de Jean Maciel (Caim), ao lado da ótima dramaturgia, alçou a esquete dramática para lugar de destaque na noite positivamente. Valeu a pena ter visto!

“Amor em 8 tempos” – Produzido pelo grupo Potcha (Rio de Janeiro – RJ), o espetáculo é uma comédia romântica como zilhões das outras que se conhece bem. O texto de Raul Franco apresenta um homem e uma mulher (Raul Franco e Gizzela Mascarenhas) que se conhecem, se apaixonam, passam a morar juntos, brigam e se separam, oferecendo à direção de Carmem Frenzel o desafio de oxigenar a velha história batida que, sem qualquer preconceito, continua agradando o grande público. A colaboração de Frenzel, vencendo o desafio com criatividade, parece ter sido vital e mereceu os aplausos recebidos no encerramento da última noite de apresentações do festival.

3o dia – 15 de setembro
“El salto de la muerte” – Realizado pelo Núcleo Artístico Gema (Rio de Janeiro), o monólogo circense tem texto e atuação de Renato Garcia. De algum modo recuperando o universo da palhaçaria, o espetáculo apresenta uma situação bem simples, mas que é, em certa maneira, interessante: um palhaço se propõe a saltar sobre o chão e permanecer vivo. Com a participação do público, obstáculos são impostos a esse salto, desenvolvendo a narrativa. Em questão, está o risco físico, elemento vital capaz de aproximar o público do texto espetacular de forma ímpar. Com méritos, a esquete consegue atingir o objetivo de fazer o público torcer pelo herói e ganha “de brinde” uma cena final com uma poética relativamente interessante. Um bom espetáculo na abertura da terceira noite de apresentações.

“Os construtores da ponte” – Produzido pela Agromelados Cia. Teatral (Niterói – RJ, o espetáculo revelou problemas interessantes no choque entre a dramaturgia literária e a dramaturgia cênica, embate esse tão caro à pesquisa em artes cênicas. De um lado, o texto de Sylvio Moura quis adaptar um conto homônimo do indiano Rudyard Kipling (1865-1936) que narra a história da construção de uma ponte sobre o rio Ganges sob uma forte tempestade que dificulta o trabalho dos operários. De outro, a direção de Erika Ferreira quis explorar ao máximo as potencialidades estéticas de três escadas de alumínio dobráveis. No palco, Ferreira venceu com facilidade, tornando obsoleta a dramaturgia e boa parte das interpretações, além dos figurinos e das interpretações. O resultado foi uma propaganda de como pode ser usada de maneiras interessantíssimas uma escada de alumínio, mas quase nada além disso.

“Do fim para a frente” – Assinada pela Coletivo Dupla de 3 (Rio de Janeiro 0 RJ), a esquete com texto de Isis Pessino e interpretação dessa e de Julianna Firme apresenta uma divisão entre mente consciente e corpo de uma mesma personagem aprisionada em um buraco no fundo o mar. Na encenação, de um lado, a mente fazendo seus percursos em busca da compreensão do momento e da saída das dificuldades. De outro, o corpo com suas idiossincrasias. No geral, o espetáculo teve maiores méritos pelos bons usos das ferramentas cênicas na viabilização dos objetivos aparentes da obra.

“Elenco de apoio” – Produzida pela Cia. de três (Rio de Janeiro – RJ), a comédia com texto baseado no original de Fernanda Crescêncio e de Katia Letícia traz duas jovens personagens atrizes na luta pelo reconhecimento profissional. Elas (Patrícia Oliveira e Laura Serpa em ótimas atuações), depois de vários testes para trabalhos em vídeo, são escaladas para uma novela das 21horas na Rede Globo e, por causa disso, embarcam para o Rio de Janeiro. As coisas, infelizmente, não saem exatamente como o esperado e o público se diverte com as desventuras das duas garotas. De um modo simples e bastante positivo, a obra agradou o público e recebeu merecidamente calorosos aplausos.

Akauã Santos e Cássio Duque em
"2 homens e 1 dinheiro"
“2 homens e 1 dinheiro” – Assinado pelo grupo Melan Cia (Rio de Janeiro – RJ), o espetáculo recupera com vigor e muita qualidade a estética da palhaçaria. No palco, em excelentes interpretações, Akauã Santos e Cássio Duque, que assinam também a dramaturgia, são dois desconhecidos que esperam um ônibus com apenas o dinheiro da passagem em seus bolsos. Embates acontecem entre eles e, dessa situação simples, muitas coisas acontecem. Elogiáveis usos dos tempos, dos corpos, dos elementos visuais e sonoros, elevaram a já alta qualidade do trabalho nessa que foi uma das melhores esquetes do festival. Brilhante!!

“Sobre Viver” – Realizado pela Fantástica Cia. (Rio de Janeiro – RJ), o espetáculo dirigido por Carmen Frenzel apresenta uma situação abstrata, unindo notícias reais tiradas da mídia brasileira e mundial à reflexões filosóficas sobre vários temas caros à contemporaneidade. No elenco, Andra dos Anjos, Deco Mansilha, Marcelo Alvim, Mariana Queiroz, Max de Oliveira e Nathália Araujo são veículos de expressão desse discurso que revela o absurdo da época em que vivemos. Como maior mérito, está o esforço em pautar a estética do absurdo na programação do festival.

“Aracy” – Escrito, dirigido e interpretado por Flavia Millioni, a esquete retoma parte dos muitos méritos do seu espetáculo “O quadro ou Pequeno poema para o fim do mundo” com galhardia. Em cena, a atriz narra, de um jeito cuja simplicidade é seu maior e melhor elemento poético, o suicídio de sua avó materna, personagem que dá nome ao trabalho. A pureza do discurso cênico ajuda o público a se conectar com o espetáculo de maneira vibrante de modo que a terceira noite do festival terminou de um jeito doce, delicado e sensível positivamente.

4o dia – 16 de setembro
Maria Hermeto e Guilherme Gomes em
"Respiro"
“Respiro” – Produzido pelo grupo nós + 2 (Rio de Janeiro – RS), esse espetáculo de dança abriu de maneira vibrante a quarta e última noite do festival. Convocando parte do público para dividir o palco com os intérpretes-bailarinos (Guilherme Gomes e Maria Hermeto), a produção criou um meio de fazer com a audiência se aproximasse fisicamente dos personagens, mas, mais e melhor do que isso, talvez para pontuar a responsabilidade do olhar alheio nas relações humanas. Ao longo da sessão, de algum modo, o olhar silencioso do público parecia invadir a relação estabelecida entre os personagens e essa parece ser uma questão cara o projeto artístico visto. Foi uma excelente participação da dança no evento.

“O último delírio de Van Gogh” – Realizado pela Cia de Arte EM CriAção (Rio de Janeiro – RJ), a dramaturgia do espetáculo assinada por Jiddu Saldanha apresenta um conjunto de desabafos imaginários do pintor holandês Vincent Van Gogh (1853-1890) ao seu irmão Theo Van Gogh (1857-1891), que era comerciante de obras de arte. Através de uma verborragia mental, o espectador adentra à parte do universo mental do artista interpretado de maneira brilhante por Rafael Mannheimer. O limite do tempo talvez tenha sido o maior desafio para o alcance de objetivo tão nobre que houve aqui um belo uso das potencialidades dos signos na defesa de um espetáculo bastante interessante.

Thalita Ribeiro e Rafael Silva em
"Enjaulados de la passion"
“Enjaulados de la passion” – Assinada pela Cia. Crisálida (Rio de Janeiro – RJ), a comédia foi uma das mais aplaudidas de todo o festival. Com texto, direção e atuação de Thalita Felix Ribeiro e de Rafael Peixoto da Silva, ela satiriza as telenovelas mexicanas, fazendo o público se lembrar de “El Pánico”, ótima comédia de Rafael Spregelburd que Ivan Sugahara dirigiu há dois anos. Com ótimos trabalhos de interpretação, excelente uso do palco e desenho de ritmo vibrante, o espetáculo divertiu o público. Foi ótimo!!

“Meu corpo noite adentro” – Realizada pelo Grupo Übermensch (São Paulo – SP), a peça começa narrando uma noite na vida da travesti Mona (Wallace Ruy), mas, lá pelas tantas, abandona a proposta para assumir um tom mais de discurso direto em defesa da luta contra o preconceito de orientação sexual e de identidade de gênero. Em termos estéticos, os valores da esquete caem nesse segundo ponto, embora a força política da obra continue. Com texto de Rafael Carvalho e de William da Silva, e direção do primeiro, o espetáculo se conecta com os célebres “BR-Trans” (de Silvero Pereira) e “Borboletas de sol de asas magoadas” (de Evelyn Ligocki), mas fica atrás desses por investir pouco nos recursos estéticos além da dramaturgia. Destaque positivo para o uso das projeções.

“A boneca e a borboleta” – Produzido pela Ato I Cia de Teatro (São Gonçalo – RJ), o espetáculo com texto, direção e atuação de Bruno Praxedes e de Suelen Gom narra a história de um cientista que, ao criar uma boneca de brinquedo, enfrenta a reprovação dela quanto a diversos aspectos de sua existência. Desconsiderando o mito de “O pigmalião”, que a gente conhece por Ovídio e por George Bernard Shaw (1856-1950) principalmente, a dramaturgia estanca monotonamente em cima de um diálogo infindável e extremamente redundante. Isso prejudicou bastante as interpretações e impediu o espetáculo como um todo de se aproximar mais do público e, assim, conseguir melhores resultados infelizmente.

Lorena Tófani e Henrique Cordoval
em "Last Dance"
“Last dance” – Realizado pelo grupo Este coletivo (Belo Horizonte – RJ), o espetáculo foi um dos mais belos trabalhos apresentados ao longo do festival. Criada pelos excelentes Lorena Tófani e por Henrique Cordoval, a obra coloca em questão as transformações ocorridas nas relações ao longo da convivência: os distanciamentos, as aproximações, as diferenças, os caminhos diversos que ora afastam, ora unem as pessoas. Unindo dança e teatro em um excelente uso do tempo, dos aspectos plásticos da luz e do figurino e sobretudo dos corpos, das vozes e das interpretações como um todo, eis um dos pontos altos da noite.

“Contorções afogadas” – Produzido pelo grupo InVersos (Rio de Janeiro – RJ), o espetáculo investiu no lirismo para tratar do modo como duas pessoas se conhecem e estabelecem suas relações. Escrita por Iza Lanza e dirigida por Edney D`Conti, a obra, que teve interpretações de Lanza e de D`Conti, parece ter procurado acessar signos sensoriais na defesa de seus intentos artísticos. Talvez um tanto quanto abstrato demais em alguns momentos, nem sempre parece ter mantido a conexão com o público, perdendo oportunidades de se viabilizar de jeito mais simples, mas mais efetivo. Encerrou, porém, o festival, apresentando corajosamente um contexto estético altamente poético.

Edilene Água Suja

Edilene Água Suja: uma hostess memorável

O 10o Festival Niterói em Cena começou no dia 12 de setembro e vai até o próximo dia 24. A partir de hoje, começa a mostra de espetáculos longos e continuam as atividades formativas (as oficinas), as festas e os debates entre os grupos e com o público. Ressalta-se que todas as atividades são gratuitas. Eis uma bela oportunidade para respirar arte, conhecer pessoas novas, revisitar obras já conhecidas e ser feliz. Aplausos para a equipe produtora, liderada por Fábio Fortes, e para a hostess Edilene Água Suja, sem dúvida, um dos pontos mais altos de todo o evento. Mais informações, confira no site: https://www.niteroiemcena.com.br/

sábado, 9 de setembro de 2017

Suassuna – O Auto do Reino do Sol (RJ)

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Elenco em divulgação


Um dos pontos mais altos da temporada nacional de 2017

“Suassuna – O Auto do Reino do Sol” é o mais novo excelente espetáculo da companhia Barca dos Corações Partidos, o mesmo grupo que recentemente assinou sucessos como “Auê” e “Gonzagão – A lenda”. Com texto de Braulio Tavares e canções de Chico César, Alfredo Del Penho e de Beto Lemos, o musical é inteiramente original para a glória do teatro brasileiro. Trata-se de uma peça escrita para o dramaturgo paraibano Ariano Suassuna (1927-2014), que estaria completando 90 anos em junho último. Não é uma biografia dele, nem tem colagens de textos dele, mas é uma homenagem inédita composta a partir do seu universo. Produzida por Andrea Alves da Sarau Agência, a obra dirigida por Luís Carlos Vasconcellos fez uma elogiada primeira temporada no Teatro Riachuelo, na Cinelândia, Rio de Janeiro, e agora está em cartaz em São Paulo, no Sesc Vila Mariana, até o início de outubro. Vale a pena correr para garantir os ingressos a fim de não perder um dos pontos altos da temporada nacional de 2017. 

Dramaturgia, direção e trilha sonora excelentes!
A história começa com a chegada de um Circo-Teatro a uma região fictícia chamada Vale do Soturno, no interior do sertão nordestino, onde os estados do Ceará, do Rio Grande do Norte, da Paraíba e de Pernambuco se confundiriam. A trupe, liderada por Sultana (Adrén Alvez), ensaia seu novo espetáculo: “As novas aventuras de Dom Quixote de La Mancha”, em que Escaramuça (Eduardo Rios) interpretará o personagem título, Cabantõe (Renato Luciano) será o fiel escudeiro Sancho Pança e Mosquito (Fábio Enriquez) será a mula Rocinante. De repente, às vésperas da apresentação, chegam ao acampamento o casal Lucas Fortunato (Alfredo Del Penho) e Iracema Moraes (Rebeca Jair). Um diz que eles estão casados há um ano, outro que há um mês. É preciso decidir se eles serão aceitos ou não no grupo de artistas. Aos poucos, fica-se sabendo o que está por trás do interesse desses dois últimos em fugir com o circo.

A região dO Soturno é dominada por duas famílias inimigas: a do major Antônio Moraes (Ricca Barros) e a da matriarca Eufrásia Fortunato (Ádren Alvez). Ele é tio da jovem Iracema, ela é avó do jovem Lucas. Quando Lucas raptou Iracema, matou dois jagunços do tio de sua amada. E agora Antônio Moraes quer vingança. Nesse sentido, a trupe de Sultana se vê no meio de uma guerra sertaneja com a qual tem mais relações do que gostaria.

Em “O Auto do Reino do Sol”, questões de honra, a dureza da vida no sertão, a religiosidade, a habilidade de resolver problemas e o amor são ingredientes para uma narrativa popular originalmente escrita por Braulio Tavares. Coberta de influências do universo do saudoso dramaturgo paraibano Ariano Suassuna, a obra acaba não sendo nem de Suassuna, nem sobre o homenageado, mas para ele. Com tão magnífica montagem, a Barca dos Corações Partidos, em uma declaração de amor a tudo o que Ariano amava, eleva a ele um sublime agradecimento em nome do público brasileiro e de si próprio.

Chico César, Beto Lemos e Alfredo Del Penho assinam as músicas originais. Cada uma é mais bonita que a outra, tocando fundo na alma dos brasileiros de todas as regiões, embargando as vozes das audiências de todos os Brasis. Temas das canções, a guerra que o sertanejo trava contra a dureza da seca, o amor como pedra de salvação dos espíritos em meio à corrupção, a força da natureza e o poder da religião são como impulsos que unem os homens entre si, mas também com sua gente e com o lugar por onde perambulam. são. Todas elas são tocadas e cantadas pelo elenco com tamanha maestria que só nos resta orgulhar-se da oportunidade de estar diante de tal experiência estética e, mais ainda, de reconhecer que eles são artistas brasileiros, nossos irmãos, em luta como nós em país tão castigado. Gabriel D’Angelo, e André Garrido e Bruno Pinho, como designers de som associados, valem ser citados.

Sobre palco quase vazio, sem quase qualquer cenário, a direção de Luiz Carlos Vasconcelos, assistido por Vanessa Garcia, faz do palco metáfora para a aridez do sertão em que os personagens lutam para se impor através de suas existências. Cada quadro viabiliza um jogo de movimentações que propõe novas regras, defende-as e as subverte na manutenção de um ritmo interessante, que é rico em possibilidades. O público vence o desafio de identificar as forças que circundam cada novo panoramas. E ganha com o registro dessas variedades que, às vezes, se repetem de modo a conservar a unidade estética da obra como um todo e, às vezes, são surpreendentes de maneira a manter ativo o estado de atenção. Dramaturgia, trilha sonora e direção, assim, são três bases iniciais sobre as quais fundam-se os primeiros méritos do texto espetacular, sendo eles acrescidos de outros, não menos valorosos, mas mais ricos em detalhes.

Belas contribuições do figurino, do cenário e da iluminação
O figurino de Kika Lopes e de Heloísa Stockler polui o quadro inicial com enorme carga de texturas, cores, formas, detalhes e referências em um embaraço neomaneirista que faz “O Auto do Reino do Sol” lembrar o Grupo Galpão em espetáculos definitivos como “Romeu e Julieta”. Pouco a pouco, porém, a profusão se estabiliza e, do meio do emaranhado de temas, começa a se ver relativa particularidade. Ao final do espetáculo, a glória do figurino será contemplada, no todo e por cada parte, pela ebulição proposta. Trata-se talvez um comentário sobre as oposições temáticas de que o espetáculo fala: a vida e a morte, a esperança e a conformidade, a riqueza e o começo, o sol e a noite, o amor e o ódio, a partida e a chegada, o fim e o começo. Tudo isso parece estar ao mesmo tempo em um só quadro que é difícil de explicar, mas muito fácil de identificar. Vale nomear nesse item o visagismo assinado por Uirandê de Holanda e por Angélica Ribeiro.

A cenografia de Sérgio Marimba tem dois grandes momentos: um carro metálico por onde se movimenta a trupe de Sultana pelo sertão e a lona que, multiforme, assume várias funções no fundo do palco, às vezes, desparecendo e deixando ver o infinito. São participações pequenas, mas que, dentro das possibilidades, elevam as qualidades estéticas da obra como um todo, inclusive por nobremente oferecer espaço para outros elementos, como o figurino e a trilha sonora, atingirem maior importância. A iluminação de Renato Machado, do céu estrelado às inclusões da plateia através da luz cumpre igualmente mais modesta colaboração, mas nem por isso menor ou menos valorosa.

Eduardo Rios, Renato Luciano, Fábio Enriquez, Adrén Alvez nA Barca dos Corações Partidos
A Barca dos Corações Partidos é uma companhia, isto é, um coletivo onde diversos artistas unidos entre si constroem uma história conjunta unindo histórias pessoais. Nesse sentido, é inválido destacar o trabalho desse ou daquele profissional se não se entender o resultado como um fruto de processo que se deu e que se dá pela parceria espetáculo após espetáculo. Em “Suassuna – O Auto do Reino do Sol”, há quatro destaques que refletem as brilhantes participações de Beto Lemos (o advogado de Dona Eufrásia), de Ricca Barros (o Major Antônio Moraes), de Alfredo Del Penho (Lucas), de Rebeca Jamir (Iracema) e de Chris Mourão e de Pedro Aune. São eles: Eduardo Rios e Renato Luciano (a dupla de palhaços), Fábio Enriquez (o jagunço Casimiro) e Adrén Alvez (Dona Eufrásia e Sultana).

Renato Luciano e Eduardo Rios
Eduardo Rios (Dom Quixote) e Renato Luciano (Sancho Pança) defendem a difícil arte da palhaçaria, uma técnica centenária de artes cênicas sobre a qual inúmeros teóricos, historiadores e pesquisadores escrevem há dezenas de anos. Em suas construções, se dão a ver toda a complexidade da forma – uma esquina de claros e escuros, de tragédias e comédias, de ironia, de ingenuidade e de esperteza, de dor e alegria – mas também um fluxo de marcas que assinala seus envolvimentos com a particularidade da dramaturgia. Seus personagens Escaramuça e Cabantõe, que por sua vez interpretam outros personagens na peça dentro da peça, são artistas sertanejos, palavras que cheiram à redundância. Neles se encontram a criatividade e a força do povo, a alegria e a ingenuidade, a malandragem e a pureza das quais tantas vezes Ariano Suassuna se utilizou para compor seus heróis. O público se diverte em seus números de plateia, torce por eles nas partes da narrativa em que essa se apresenta mais fechada e vibra pelos trabalhos aplaudindo os intérpretes ao final da sessão. É maravilhoso!

Adrén Alvez
“O Auto do Reino do Sol” tem ainda o excelente trabalho de Fábio Enriquez e o fenômeno Adrén Alvez. Sobre o primeiro, que se destacou também em “Auê”, vale ressaltar o modo como o palco enorme parece pequeno em seus solos. O intérprete capta a atenção e devolve ao público exuberante gestual, expressões mergulhadas em técnica e com altíssimo controle da espontaneidade e uso da voz magnificamente meritoso. Sem dúvida, é um dos grandes trabalhos de interpretação de 2017. Sobre o paraibano Adrén Alvez, a recorrência dos elogios que ele acumula ao longo de sua já sedimentada carreira nos palcos da região sudeste seja como ator, seja como cantor aponta para alguém sobre quem o futuro dirá se tratar de um dos mais notórios artistas desse início de século XXI. Ele é um fenômeno da natureza por sua potência musical, por sua força interpretativa, por seu enorme talento e sobretudo pelo modo ímpar como a cada nova produção ele se renova e ganha mais notoriedade. Vale a pena assisti-lo desde já para fazer parte dessa história.

Por fim, na análise das interpretações, há que se dizer que esse espetáculo apresenta Rebeca Jamil, cujo brilho aumenta gradativamente ao longo do espetáculo até seu personagem Iracema dominar a narrativa através de seu trabalho bastante positivo como atriz. Eis um novo nome nascendo que se merece acompanhar!

Relato de audiência: o mais longo aplauso
Há muito tempo não uso a primeira pessoa do singular na escrita das críticas publicadas aqui, mas talvez valha agora uma exceção porque há muito tempo não presencio o que eu testemunhei na plateia de “Suassuna – O Auto do Reino do Sol”. Eu assisti à peça em uma sessão corriqueira, isto é, nem estreia, nem estreia vip, mas ao lado de um público de pessoas anônimas, que compraram seus ingressos e que se prepararam, em um dia qualquer, para ver uma peça sem atores globais. No instante em que o espetáculo acabou, a massa de pessoas pôs-se de pé a aplaudir sonoramente em um movimento vibrante que durou muito além do normal. Isso, aos meus olhos acostumados com a gentileza do público brasileiro, criou uma energia capaz de marcar o momento para sempre. Relatar essa ovação longa, espontânea, afetuosa e grata da audiência à montagem vista quer ser aqui um convite para se prestar a atenção nessa peça e no que ela causa em nossa história. Eis um grande espetáculo!

*

SUASSUNA – O AUTO DO REINO DO SOL

Uma encenação de Luiz Carlos Vasconcelos
Texto: Bráulio Tavares
Música: Chico César, Beto Lemos e Alfredo Del Penho
Idealização e Direção de Produção: Andrea Alves

Com a Cia. Barca dos Corações Partidos: Adrén Alvez, Alfredo Del Penho, Beto Lemos, Fábio Enriquez, Eduardo Rios, Renato Luciano e Ricca Barros.

Atriz convidada: Rebeca Jamir
Artistas convidados: Chris Mourão e Pedro Aune

Cenografia: Sérgio Marimba
Iluminação: Renato Machado
Figurinos: Kika Lopes e Heloisa Stockler
Design de som: Gabriel D’Angelo
Assistente de direção: Vanessa Garcia
Coordenação de Produção: Leila Maria Moreno
Produção Executiva: Rafael Lydio

Apoio: One Health e ONS