Foto: divulgação
Os credores
Em um determinado momento, na fileira atrás de mim, observei dois espectadores dormindo. Na minha fila, mais dois. Na plateia da frente (a encenação se organiza em galeria, isto é, a audiência se organiza em dois lados com a cena acontecendo no meio. O espectador vê a cena, mas também vê, além dela, a outra plateia), três pessoas de olhos fechados deitadas sobre os próprios ombros ou sobre o corpo da pessoa ao lado. O espetáculo Os credores, cujo texto foi escrito pelo dramaturgo sueco August Strindberg (1849-1912) em 1888, participante do 18º Porto Alegre em Cena, deixa a seguinte dúvida: por que as pessoas dormiram ou ficaram sonolentas na apresentação a que eu assisti? A hipótese de que Strindberg não diz nada para o público de hoje é refutável por qualquer um que entenda um pouco de arte. Logo, o tédio do espetáculo só tem um responsável: o Grupo TAPA, dirigido por Eduardo Tolentino. De que forma é possível atribuir-lhe a culpa, promovendo uma análise do objeto estético teatral em questão? Indo às fontes. Aqui algumas hipóteses.
Strindberg é considerado o pai do teatro expressionista, sendo algumas de suas obras lidas a partir do gênero realista naturalista e outras mais tardias via simbolismo. Os credores está bem no meio dessa encruzilhada. Seu cenário é realista, seus personagens são naturalistas, mas a situação, disposta na forma tragicômica, é expressionista. Algumas marcas importantes: três personagens se encontram no hotel: o ex, o atual marido e a esposa. O que pode parecer um simples vaudeville se torna retrato das relações humanas que, talvez, só o bom teatro realista pode fornecer. Na abertura, o atual marido, Adolf, não sabe que Gustav é o ex de Tekla, sua esposa. Na sequência, Tekla não sabe que Gustav está no quarto ao lado ouvindo a conversa entre ela e o marido. No final, Tekla não sabe que Adolf está no quarto ao lado ouvindo a conversa entre ela e o ex-marido. Nos dois últimos pequenos atos, há uma peça dentro da peça e o mais importante desse jogo é que a parte principal, Tekla, desconhece isso. Esse, na verdade, é um recado da obra aos futuros realizadores: no teatro realista, a quarta parede precisa ser mantida. O expressionismo está na situação e não na realização.
Eduardo Tolentino, quando adapta Os credores para uma situação de galeria e organiza os atores para que eles, em vários momentos, busquem no público um certo contato visual, inibe qualquer chance de catarse, diminui as forças do texto, deixa a situação por demais previsível e, assim, muito entediante. O português extremamente correto dos personagens não foi adaptado para a nova situação. O figurino permanece bastante realista também. A situação de prisão vivida pelos personagens é marca naturalista mantida igualmente. O problema está no jogo entre os personagens e na relação com o público, esses sinais de que estamos diante de um novo ponto de vista sobre a obra.
Sergio Mastropasqua interpreta Gustavo, o ex-marido. Dos três atores, é quem sustenta a construção menos interessante justamente porque é quem mais joga (ou tenta jogar) com o público. Suas falas são ditas de forma irônica em várias ocasiões, a retórica se apresenta com pouca variação de tom, os gestos são enrijecidos, marcados, negativamente “teatrais”, nada naturais e, por tudo isso, bastante inverossímeis. O ator se movimenta no palco de forma muito precisa deixando ainda mais falsa sua performance. José Roberto Jardim (Adolf, o atual marido) e Sandra Corveloni (Tekla, a esposa), aparentemente mais concentrados no interior das quatro paredes, têm melhores resultados, embora sustentem marcas rígidas e pausas pouco críveis, sinais de que todos esses elementos concretizam uma concepção da direção. Bastante rica é a participação de Conrado Sardinha. Sem nenhuma fala e com atos a princípio bastante inexpressivos, o ator eleva a qualidade da peça nas poucas oportunidades que tem: seus olhares manifestam um personagem real, seu movimento tende ao natural e o modo como ele olha as cenas não traz nenhum registro de que estamos ali a observar-lhe.
Novos pontos de vista sobre obras são bem vindos sempre que estruturados em todos ou em vários aspectos necessários a sua viabilização. O contrário disso é desequilíbrio e insucesso. Nesse caso, monotonia.
* Texto escrito em setembro de 2011 por ocasião do 18º Porto Alegre em Cena.
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