Foto: Andrea Teixeira
O corte na academia
Ao falar de dois aspectos apenas, proponho uma análise que, sem a pretensão de abranger o todo de Kabul, a mais nova produção do Grupo Amok Teatro, consiga dar conta do que seja essencial no destaque que esse espetáculo tem na larga programação do 6o Festival Palco Giratório. São eles: o modo como os atores dizem o texto e a transição das cenas/quadros.
O português é corretíssimo (quase sempre). As palavras são ditas com uma dicção perfeita, ultrapassando quaisquer limites que o sotaque poderia manifestar. Stephane Brodt, que, sendo francês, muito honra os brasileiros pela sua permanência aqui, trabalha seu jeito natural de falar de forma a acrescentar ao personagem afegão que interpreta. Ana Teixeira, a diretora, por seu turno, trabalha as vozes dos demais atores da peça, todos num nível altíssiomo de excelência, a também buscarem a tonalidade afegã, de forma que, importando menos a bagagem do ator, de um modo geral, os tons se aproximem. Todas as frases são ditas pausadamente, como se algo superior à situação fizesse os falantes controlarem-se. Por outro lado, a sensação é de subserviência às regras do dizer, pois não há quem se sinta bom o bastante para quebrar essa norma, nem quem tenha vontade de. O resultado é lentidão, amargura e peso.
Estamos falando em tragédia. Kabul, que trata da vida na cidade de Cabul, capital do Afeganistão, e que começa com a divulgação de algumas leis promulgadas em 1997 (trezes anos atrás apenas), do ponto de vista de suas interpretações, cheira à tragédia, das gregas. Os personagens encaminham suas direções por entre limites muito bem marcados, definidos, superiores a eles e suas vontades/idiossincrasias. Não há o que fazer a não ser aceitar e conviver com as novas determinações políticas. Daí a lentidão que é conseqüência do alto peso de cada vida em jogo no jogo cênico, isso expresso no jeito como cada personagem fala, mas também em como ele se move, como ele se relaciona, como se prepara. O cenário é horizontal: os atores permanecem bastante tempo sentados ou deitados. O nível é baixo como que evidenciando que há um plano superior e ordenador. Quando há um grito, ele dura por frases inteiras e não apenas é uma interjeição. O que de cenário ocupa pontos altos são cortinas que se estendem por além de um metro e não apenas por um único centímetro. A concepção de Teixeira, pela forma coesa que se expressa, faz do Amok, nesse espetáculo, como também em outros, um dos melhores grupos teatrais do país nesse tamanho continental que ele tem.
E, ainda no mesmo aspecto, indo além da encenação e chegando na recepção, o clima instaurado de dor contínua e peso se estende ao público. O espetáculo sufoca. Quem vê se sente preso nesse estado de coisas tolhedor de qualquer liberdade: não podemos nos mexer, não podemos olhar para outro lado, não podemos não ouvir e, principalmente, não nos é permitido não compreender o que está sendo dito. Tudo é claro o bastante para nos obrigar a experimentar. Nessa situação, vemos os personagens como resultado desse meio, sem moral, nem ética, sem culpa, nem intenções. A narrativa nos faz cogitar a hipótese do instinto.
Em Cabul, nenhum tipo de divertimento é permitido. Não se pode cantar ou dançar, ouvir ou produzir música, pintar, escrever, fotografar ou fazer teatro. Um jovem (Marcus Pinna), que casou-se um pouco antes de todas essas normas entrarem em vigor, sente-se amordaçado nessa situação desumana. Um dia, diante do horror do apedrejamento público de uma condenada, pega uma pedra e participa da punição. Seu ato é julgado pela moral, pela ética, por sua própria história e, principalmente, por sua esposa. Por que ele tomou parte disso e manchou suas mãos nesse assassinato cruel? O clima animalesco toma conta da cidade e só a partir disso é possível absolver o jovem, cujos hormônios encontraram no show negro um motivo para explodirem. O realismo naturalista se encontra com o psicológico, ou seja, tentando analisar teoricamente esse trabalho do Amok Teatro, sugiro a hipótese de compreensão do personagem tanto a partir da situação como do seu próprio universo psicológico.
Permanecendo na questão da encenação, adianto sobre a transição dos quadros. Cada troca de cenário é mais terrível que a anterior. O ritmo lento de cada quadro muda repentinamente quando ele termina. Os atores fazem barulho, correm, agem. É um tormento vê-los saírem da situação cênica embora sejam precisos e necessários. Então, reflito sobre o incômodo que se sente e encontro lugar na experiência de que falava parágrafos acima. Kabul faz reviver uma situação política verdadeira em Cabul. O tormento sentido pelo espectador absorto é necessário à peça, ao que se quer, à catarse épica, se é que Aristóteles e Brecht possam conviver. Quanto mais rápidos são os atores na contrarregragem, mais cortante se torna a cena conseqüente. E, me parece, ser esse corte o material que o grupo precisa para fazer acontecer sua proposta: transportar a assistência para aquele contexto e, de lá, fruir a cena.
Quando Jorge Arias diz que Kabul foi um dos melhores espetáculos dessa edição do Festival, ele não só está certo do ponto de vista artístico como também do teórico. Afinal nem só de Lehmann deve viver a academia.
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Texto e Direção: Ana Teixeira e Stephane Brodt / Elenco: Stephane Brodt, Fabianna de Mello e Souza, Kely Brito e Marcus Pina / Figurino: Stephane Brodt / Cenário: Ana Teixeira / Iluminação: Renato Machado Música: Beto Lemos / Produção: Erick Ferraz / Duração: 1h20min / Classificação: 16 anos
* Texto escrito em maio de 2011 por ocasião do 6º Festival Palco Giratório do SESC/RS
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