quarta-feira, 30 de março de 2016

Medida por medida (SP)

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Foto: João Caldas


Luisa Thiré e Marco Antônio Pâmio
Ótima montagem de comédia de William Shakespeare

“Medida por medida”, comédia do inglês William Shakespeare (1564-1616), fez parte do projeto “Repertório Shakespeare” em cartaz no Rio de Janeiro entre fevereiro e março de 2016 na Cidade das Artes e no Teatro João Caetano. Ao lado de “Macbeth”, a peça foi dirigida por Ron Daniels e protagonizada por Marcos Suchara, Thiago Lacerda, Luisa Thiré e por Marco Antônio Pâmio. A montagem foi uma ótima oportunidade do público de se reencontrar com o maior dramaturgo do teatro universal.

Comédia sobre a fornicação
A comédia revela o desprendimento de Shakespeare em tratar de temas aparentemente atuais como a fornicação. Na ficcional Viena, uma antiga lei esquecida prevenia a população contra os males do sexo irresponsável. A peça começa quando o Duque Vincentio (Marco Antônio Pâmio) anuncia que fará uma viagem. Na verdade, ele pretende secretamente descobrir os segredos que não vê por estar no poder. Em seu lugar, Ângelo (Thiago Lacerda) assume o comando e resgata o velho regulamento, enchendo as prisões da cidade com cidadãos de vida lasciva. Entre eles, está Cláudio (Rafael Losso) que recentemente engravidou Julieta (Stella de Paula), sem casar-se com ela. Em socorro do prisioneiro, que foi condenado à morte, sua irmã Isabella (Luisa Thiré) é convocada. Ela está prestes a fazer os votos como religiosa quando tudo isso acontece. Quando Isabella se encontra com Ângelo, ele se apaixona por ela e, em troca da vida de Cláudio, exige que a noviça durma com ele.

A solução do conflito da peça revela outros personagens: Lúcio (Marcos Suchara), o melhor amigo de Cláudio; Mariana (Ana Kutner), ex-noiva de Ângelo; o cafetão Pompeu (Lourival Prudêncio) e sua esposa, a Sra. Bem-passada (Giulia Gam); o prisioneiro Barnabé (Felipe Martins); entre outros. Disfarçado de Frei Ludovico, o Duque Vincentio terá o desafio de punir os malfeitores poderosos de sua cidade com a mesma medida que esses punem os mais fracos. Escrita entre 1603 e 1604, a peça estreou no primeiro ano do reinado de Jaime I, que sucedeu Elizabeth I no trono da Inglaterra.

Excelente conjunto de interpretações
Ron Daniels, que já dirigiu, no Brasil, “Rei Lear” (2000) e “Hamlet” (2013), além de outras produções na Inglaterra, mantém nesse espetáculo seu desejo de aproximar a narrativa shakespeariana do público de agora. Faz bem. “Medida por medida”, traduzido por ele e por Marcos Daud, tem linguagem fluente, acessível e que não descaracteriza o texto original. A estética do espetáculo, em um limbo onde se unem referências da Idade Moderna e elementos contemporâneos, agrega agilidade ao modo de contar a história com jovialidade e graça.

A cenografia de André Cortez, com painel de Alexandre Orion, ao lado dos figurinos de Bia Salgado e da luz de Fábio Retti, potencializam a proximidade entre o contexto da narrativa e aquele em que o espetáculo se apresenta. Relações líquidas e erotismo fazem parte do cotidiano de nossa sociedade conhecida mundialmente por seu carnaval. O todo é bonito, visualmente valoroso e intelectualmente interessante. A trilha sonora original de Gregory Slivar auxilia no estabelecimento e na manutenção do ritmo que os atores mantêm tão bem na direção de Daniels assistido por Gustavo Wabner. O espetáculo tem direção de movimento de Sueli Guerra.

Todos os trabalhos de interpretação do numeroso elenco estão ótimos, o que é outro mérito da direção certamente. Felipe Martins (Barnabé), Ana Kutner (Mariana) e Giulia Gam (Sra. Bem-passada) dão vitalidade a seus personagens menores, revelando a força da encenação mesmo nos detalhes da narrativa. Marcos Suchara (Lucio) e Lourival Prudêncio (Pompeu) se responsabilizam por grandes momentos cômicos do espetáculo, obtendo enormes gargalhadas do público que se diverte com suas excelentes interpretações carismáticas. Thiago Lacerda (Ângelo) vence o desafio do vilão com méritos ao lado de Marco Antônio Pâmio (Duque) e de Luisa Thiré (Isabella), os protagonistas. Eles, em torno do qual toda a estrutura se organiza, apresentam trabalhos coesos, coerentes em que tudo é claro, forte e vital para a viabilização da história. Aplausos!

Público merecia temporada maior
“Medida por medida” ficou em cartaz apenas um mês no Rio de Janeiro. O público merece temporadas mais longas de trabalho tão bom assim.

*

FICHA TÉCNICA
Texto: William Shakespeare
Tradução: Marcos Daud e Ron Daniels
Concepção e Direção: Ron Daniels
Curadoria Artística: Ruy Cortez
Instalação cênica | Painéis: Alexandre Orion
Instalação cênica | Cenografia: André Cortez
Figurinos: Bia Salgado
Desenho de Luz: Fábio Retti
Composição e trilha original: Gregory Slivar
Diretor assistente: Gustavo Wabner
Preparação corporal e direção de movimento: Sueli Guerra
Coordenador de ação: Dirceu Souza
Visagismo: Westerley Dornellas
Preparação vocal: Lui Vizotto
Preparação de luta: Rafael Losso
Cenotécnica: Fernando Brettas | Onozone Studio
Figurinistas assistentes: Alice Salgado e Paulo Barbosa
Indumentária e adereços: Alex Grilli e Ivete Dibo
Costureiras: Francisca Lima Gomes e Marenice Candido de Alcantara
Camareiros: Conceição Telles e Regina Sacramento
Projeto de sonorização: Kako Guirado
Operador de som: Renato Garcia
Operadora de luz: Kuka Batista
Contrarregra: João Pedro Meirelles e Diro Faria
Diretor de palco: Ricardo Bessa
Edição de texto: Valmir Santos
Foto de cena: João Caldas
Foto do processo | Still: Adriano Fagundes
Design Gráfico: 6D
Assessoria de Imprensa: Factoria Comunicação
Relações institucionais: Guilherme Marques e Rafael Steinhause
Administração: Flandia Mattar
Assistente administrativa: Mara Lincoln
Assistência de produção: Claudia Burbulhan, Diego Bittencourt, Marcele Nogueira Produção Executiva: Luísa Barros
Direção de Produção: Érica Teodoro
Produção: CIT-Ecum, TRL e Pentâmetro
Realização:Sesc, CIT-Ecum, TRL e Pentâmetro

Elenco:
Thiago Lacerda: Angelo
Giulia Gam: A Sra. Bem-passada
Marco Antônio Pâmio: Duque
Luisa Thiré: Isabella
Sylvio Zilber: Éscalo
Marcos Suchara: Lucio
Lourival Prudêncio: Pompeu
Felipe Martins: Cotovelo e Barnabé
Ana Kutner: Mariana, Freira
Rafael Losso: Claudio
André Hendges: Superintendente
Fabio Takeo: Frei Thomas, Guarda, Franchão
Stella de Paula: Julieta
Lui Vizotto: Lelé, Guarda, Frei Pedro

terça-feira, 29 de março de 2016

Chabadabadá – manual prático do macho-jurubeba (RJ)

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Foto: divulgação

Marcos França

Monólogo machista sobrevive graças à intepretação de Marcos França

"Chabadabadá – manual prático do macho-jurubeba" é o monólogo musical interpretado por Marcos França com músicas do Wando (1945-2012). Dirigido por Thelmo Fernandes, o texto é uma adaptação de três obras de Xico Sá: “Modos de machos e modinhas de fêmeas” (2003), “Chabadabadá” (2010) e “Os machos dançaram” (2015). Depois de temporada no Teatro II do Sesc Tijuca, o espetáculo cumpriu temporada no Teatro Ipanema no fim do último verão. Bastante desconectado de um ideal de sociedade livremente defensável no mundo contemporâneo, o espetáculo começa muito mal. Se atinge lugar melhor ao longo da encenação, é pelo enorme mérito do intérprete, da direção e da música que o circundam nesse trabalho. Pode passar batido.

Dramaturgia machista
A narrativa se passa no estúdio de uma rádio AM durante uma madrugada. Em seu programa, o radialista Francisco Reginaldo (Marcos França) conversa com os ouvintes que telefonam, dando conselhos sobre comportamento. Consideradas machistas (ou, citando Marília Moschkovich, machistas filóginos) as teses dos livros são retrógradas mesmo que, com boa vontade, fofas. Tivesse sotaque carioca e contemplasse uma defesa da Ditadura Militar, caberiam perfeitamente na boca de Jair Bolsonaro. Deus nos livre!

Na visão de mundo que a dramaturgia revela, a humanidade se divide em machos e fêmeas de um lado e os errados, aqueles causadores do males da contemporaneidade, de outro. Se essa dicotomia fez sucesso nas comédias da Idade Moderna e alguns dos seus temas facilitaram o sucesso das rádio e telenovelas latinas, hoje em dia, são difíceis de engolir. Machos podem ser fêmeas continuando como machos e o contrário: sobra a arte que abdica do seu poder na luta por um mundo mais humano (e, por isso, complexo). Se “Chabadadá” almeja representar o pensamento de alguma localidade do interior do Brasil, falta oferecer a crítica, o contraponto, expurgando o saudosismo e cumprimentando valores mais condizentes com um novo tempo que seja livre da violência.

O “macho jurubeba”, uma versão sertaneja dos cavalheiros a la Don Juan, finge que não representa um pensamento condenável: o homem não pode ser traído, não pode investir na sua aparência, é quem toma as iniciativas e domina a situação. Submissa, a fêmea precisa ser delicada, cuidar dos afazeres domésticos e manter-se bonita. Os benefícios desses comportamentos, no entanto, na história da cultura, carregam infelizmente a violência doméstica, a homofobia, a sociedade patriarcal entre outras mazelas. Por isso, celebrá-los só merece ser aplaudido se vierem acompanhados do convite à reflexão. “Chabadadá” não faz isso.

Lá pelas tantas, o comportamento de Francisco Reginaldo se contradiz. Da metade para o fim da peça, ele se apresenta mais sensível, valorizando o amor, creditando ao homem a possibilidade de chorar sem parecer efeminado, ou ser efeminado sem que isso pareça uma redução negativa de sua imagem. Desse momento em diante, o espetáculo parece se comunicar melhor com o público e assisti-lo menos agressivo. É quando os méritos se apresentam enfim.

O ótimo trabalho de Marcos França
Marcos França (Francisco Reginaldo) tem uma figura carismática e seus méritos parecem ainda maiores dada a crueza do desafio imposto pela dramaturgia. Como intérprete, nesse trabalho, sua voz surge com clareza, movimento, profundidade e indefectível afinação, todas essas características fundamentais na viabilização do personagem radialista. Suas intenções bem postas garantem a evolução da narrativa e o interesse do público nobremente.

A direção de Thelmo Fernandes propicia bom jogo entre França e André Siqueira, que está em cena, acompanhando ao vivo o protagonista com instrumentos musicais. Discretas, mas pontuais participações do cenário de Natália Lana e do desenho de luz de Aurélio de Simoni permitem que o espetáculo se mantenha equilibrado ao lado do figurino de Lana e do texto de Sá.

Em “Chabadadá”, os problemas do livro que inspirou a peça quase afogam a encenação. Tenso!

*

Ficha Técnica
Texto: Xico Sá
Direção: Thelmo Fernandes
Elenco: Marcos França
Direção Musical: André Siqueira
Cenário e Figurino: Natália Lana
Iluminação: Aurélio de Simoni
Programação Visual: Guilherme Fernandes
Direção de Produção: Ana Paula Abreu e Renata Blasi
Produção: Diálogo da Arte produções Culturais

O impecável (RJ)

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Foto: divulgação

Luiz Fernando Guimarães


Bom monólogo de Luiz Fernando Guimarães

“O impecável” é o monólogo interpretado por Luiz Fernando Guimarães que cumpriu temporada no verão 2015-2016 no Teatro dos Quatro, no Shopping da Gávea. Atualmente fora de cartaz, a produção deve estar se organizando para alçar novos voos. Com texto de Charles Möeller e de Claudio Botelho e com direção de Marcus Alvisi, a comédia narra um sábado no Salão Impecável Beauty, na zona sul do Rio de Janeiro, onde funcionários e clientes conversam entre si e consigo próprios. Desafio vencido com muito esforço, o trabalho é uma boa oportunidade do público teatral de se reencontrar com esse jovem ator cuja célebre carreira completará na próxima primavera 42 anos.

Primeiro texto não musical de Möeller e Botelho
Em cena, dependendo apenas da ajuda de seu próprio corpo e voz, Luiz Fernando Guimarães interpreta oito personagens. O faxineiro evangélico Seu Francisco, o atendente Ednardo, a manicure (e prostituta) Chanderley, o cabelereiro heterossexual Guido, o hairstylist Serginho e a proprietária (e ex-miss) Eleonara trabalham (de alguma forma) no centro de beleza, envolvendo-se em certa medida com sua rotina. O psicólogo Dr. Ivan e o traficante Getúlio Vargas são clientes e, como tal, também participam do universo que bem pode ser metáfora para nossa sociedade.

O título aponta para o objetivo que une todos os personagens: estar impecável significa não apresentar defeitos. No entanto, há outra simbologia envolvida. Impecável também é um adjetivo que remete à incapacidade de pecar. Primeiro texto não-musical de Charles Möeller e de Claudio Botelho, a comédia parte de um panorama dos pecados capitais, lista que tem origem no século VI e que foi formalizada por São Tomás de Aquino no século XIII: luxúria, gula, avareza, ira, soberba, vaidade e preguiça.

Em sua estrutura dramatúrgica, o texto evolui na alternância de focos entre os personagens. Nem todos eles surgem de modo claro, tampouco desaparecem justificadamente. Isso mantém de modo positivo o ritmo, impedindo a peça de ser previsível. O mesmo contexto, em contrapartida, mantém linear a narrativa de maneira que a constância é, em certa medida, prejudicial. Lá pelas tantas, percebe-se que é a habilidade do intérprete em oferecer sempre novas variações que sustenta a atenção durante a maior parte dos 110 minutos de espetáculo. Um desafio e tanto!

Luiz Fernando Guimarães merece aplausos
“O impecável” parte e se mantém no talento de Luiz Fernando Guimarães, já sem naturalmente a vitalidade de outrora mas ainda muito capaz de atender a tudo o que esse desafio lhe impõe. A direção de Marcos Alvisi, de modo salutar, parece ter oferecido as marcas necessárias para manter o espetáculo intacto sem barrar a participação do público com quem o ator inevitavelmente interage em alguns momentos. Com largos investimentos no cenário de Natália Lana, talvez aqui no seu melhor trabalho, e na interpretação de Guimarães, a peça esconde parte da concepção firme que propicia a leveza sem tirar da proposta o respeito. Em outras palavras, mesmo aquilo que parece ter sido simples provavelmente surgiu de reflexão eficaz dada a fluente articulação do todo em cena. A iluminação de Carlos Lafert, o figurino de Maria Diaz e a trilha sonora de Biltre e do diretor, discretos mas essenciais, entram nesse ponto da análise.

Com um humor um tanto conservador, sem vistas majoritariamente à reflexão, a peça fornece nobre momento de diversão. Ninguém poderá dizer que ele também não é um meio meritoso de transformar a sociedade. Luiz Fernando Guimarães merece aplausos.

*

Ficha Técnica:
Texto: Charles Möeller e Claudio Botelho
Direção: Marcus Alvisi
Cenário: Natália Lana
Figurino: Maria Diaz
Iluminação: Carlos Lafert
Trilha: Marcus Alvisi e Biltre
Designer Gráfico: Milton Menezes
Direção De Movimento: Sueli Guerra, Alessandro Brandão
Preparação Vocal: Rose Gonçalves
Assistente De Direção/Palco: Júlio Miranda
Assistente Luiz Fernando: Katia Jorgensen
Assistente De Figurino: Viviane Castelleoni
Operador De Som: Léo Magalhães
Operador De Luz: Juninho
Camareira: Maninha
Produtora Assistente: Paula Valente Fraga
Produção Executiva e Administração: Cristina Leite
Direção De Produção: Alessandra Reis
Realização: Brainstorming Entretenimento e Alessandra Reis 27 Produções Artísticas

segunda-feira, 21 de março de 2016

Dorotéia (RJ)

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Foto: Carol Beiriz


Alexia Deschamps, Rosamaria Murtinho, Jacqueline Farias e Letícia Spiller
Rosamaria Murtinho completa 60 anos de carreira no melhor espetáculo da temporada carioca

No Rio de Janeiro, a melhor programação teatral de 2016 começa com “Dorotéia”, espetáculo dirigido por Jorge Farjalla a partir de texto de Nelson Rodrigues com Rosamaria Murtinho e Letícia Spiller no elenco. A ótima montagem melhora vários problemas dessa obra do nosso grande dramaturgo, oferecendo uma versão maneirista que, embora não resolva de todo seus problemas de ritmo, faz pontual contribuição. Assim como as protagonistas, as atrizes Anna Machado, Dida Camero, Jacqueline Farias e Alexia Deschamps também apresentam excelentes interpretações na produção em que cenário, luz, figurino e direção musical concorrem positivamente com os destaques. Em cartaz até 3 de abril no Teatro Tom Jobim, no Jardim Botânico, eis aqui uma agenda obrigatória nesse início de outono carioca!

Duas forças nessa narrativa de Nelson Rodrigues
Escrita em 1949 por Nelson Rodrigues (1912-1980), a peça é, para o crítico Sábato Magaldi, a última do grupo dos textos míticos em que também estão “Álbum de família”, “Anjo negro” e “Senhora dos afogados”. A história começa quando a personagem Doroteia (Letícia Spiller), cujo filho recentemente faleceu, aparece na casa de Dona Flávia (Rosamaria Murtinho), Maura (Alexia Deschamps) e de Carmelita (Jacqueline Farias). Ela diz ser prima delas e estar decidida a mudar de vida. Ocorre que as mulheres da família são marcadas por dois sinais hereditários: seus olhos não enxergam os homens e todas, desde a bisavó, sentiram náuseas após a primeira relação sexual em suas noites de núpcias.

De maneira catalisadora, duas forças paralelas estruturam a narrativa. A primeira delas é a dúvida sobre a real ascendência da Doroteia que chega - valendo lembrar que, na família, há outra de mesmo nome. A segunda força diz respeito ao destino de Das Dores, filha de Dona Flávia, cuja noite de núpcias acontece ao longo do espetáculo. A expectativa de que a noiva sinta as náuseas como suas parentas determina a força argumentativa de sua mãe, que é líder da casa.

Sob vários aspectos, esse quadro rodrigueano é uma resposta crítica à complexa cultura brasileira, essa cuja transformação dos anos de 1950 para cá talvez tenha sido menor do que se pensa. O catolicismo retrógrado (que hoje é um evangelismo emburrecedor) e um tropicalismo americanizado eram duas faces de uma só moeda que, ainda que opostas, estavam unidas. No texto, o empenho de Flávia, Maura e de Carmelita em se afastar do prazer se vê pela sagração da feiura, pela valorização da vigilância contínua e pelo isolamento social. Em exata contrapartida, esses três posicionamentos conduzem para a exaltação dos próprios egos em um comportamento definitivamente nada santo.

Inspiração maneirista da direção de Jorge Farjalla
A direção de Jorge Farjalla, assistido por Diogo Pasquim e por Raphaela Tafuri, rejuvenesce o aspecto mítico já considerado relevante no texto desde sua estreia em 1950. No modo como essa encenação acontece, no formato de arena, as palavras de Nelson Rodrigues e as vozes das atrizes ecoam. Dessa maneira, a terra onde essas figuras habitam é meio do caminho entre céu e inferno, e o homem lugar de conflito entre sua salvação e sua perdição. Em resumo, esse é o contexto cultural em que o renascimento deu lugar ao barroco na Europa entre séculos XVI e XVII. É visível a inspiração do diretor nessas estéticas e bastante eficaz seu resultado.

O palco emerge no centro da visão do público. Na disposição de palco adotada, a plateia vê a si mesma na borda, chegando à cena após passar por uma zona de indefinição. No belíssimo cenário de José Dias, grandes árvores estão postas nesses lugares e, de dentro delas, saem os músicos que, não sendo público, também não são atores. Essa imagem sustenta a tese de que Flávia, Maura e Carmelita estão abrigadas das tentações mundanas, embora distantes do céu. Nesse ambiente, o lirismo de Nelson Rodrigues nesse texto ecoa através de microfones que espalham as vozes das atrizes, os sons dos instrumentos musicais e outros registros sonoros participantes.

Farjalla, porém, não consegue dar conta dos problemas de ritmo do texto original. Redundantes, os diálogos são longos demais. A conversa final entre Doroteia e Flávia parece interminável, o que impede a chegada mais fluente do aplauso. É uma pena!

Rosamaria Murtinho em magnífica interpretação
Os trabalhos de interpretação são ótimos no conjunto e em cada parte. Chave para a interpretação de "Dorotéia", Das Dores é a única personagem que não sente culpa após a relação sexual. No texto de Nelson Rodrigues, ela não nasceu, isto é, saiu morta do ventre de Dona Flávia e cresceu sem consciência de seu próprio falecimento. A atriz Anna Machado, ao interpretá-la nessa montagem, exibe feminilidade em um misto de menina e de mulher que expõe o quadro rodrigueano de modo excelente. A forte presença cênica da vigorosa Dida Camero rejuvenesce a narrativa em suas rápidas, mas excelentes participações como Dona Assunta, sogra de Das Dores. Jacqueline Farias (Carmelita) e Alexia Deschamps (Maura) aprofundam o lugar discursivo protagonizado pela antagonista Dona Flávia com exuberância.

Letícia Spiller, no papel título, apresenta aqui talvez sua melhor interpretação no teatro sobretudo considerados os desafios. Há, no entanto, a perda de parte do protagonismo nessa re-hierarquização dos signos que estruturam a narrativa. Potencializados de modo diverso, nessa nova versão, as forças secundárias concorrem com a primeira mais fortemente, o que traz elogios à montagem, mas também aumenta as dificuldades de quem interpreta Doroteia (e seus méritos). Prova desse mérito da intérprete é a qualidade das cenas entre Spiller e Rosamaria Murtinho, que interpreta Dona Flávia. Comemorando sessenta anos de carreira, essa última brilha em cena em todos os aspectos. Sua voz é alta e clara, sua movimentação é segura, o balanço das intenções é vivo, o jogo que se estabelece com todas as personagens é interessante. Base sobre a qual toda a narrativa da personagem Doroteia se apoia, a de Murtinho tem aqui magnífica interpretação.

Imperdível!
Os figurinos de Lulu Real (com maquiagem e visagismo de Anderson Calixto), a direção de arte e cenografia de cenário de José Dias e o desenho de luz de Patrícia Ferraz compõem o quadro estético com possibilidades significativas riquíssimas. A referência mística alarga a qualidade da obra com ainda nobre contribuição da potente direção musical de João Paulo Mendonça com trilha original dele, de Leila Pinheiro e de Fernando Gajo. Essenciais, o conjunto de Homens Jarros é composto pelos músicos Gajo, Pablo Vares, André Américo, Du Machado, Daniel Veiga Martins e Rafael Kalil.

É possível que essa seja a melhor encenação de “Dorotéia” dentre as poucas versões oficiais do texto. Imperdível.

*

Ficha Técnica
Texto: Dorotéia
Autor: Nelson Rodrigues
Diretor: Jorge Farjalla
Assistente direção: Diogo Pasquim
Elenco: Rosamaria Murtinho, Letícia Spiller, Alexia Deschamps, Dida Camero, Anna Machado e Jaqueline Farias
Homens jarro (músicos): Fernando Gajo, Pablo Vares, André Américo, Du Machado, Daniel Veiga Martins e Rafael Kalil
Cenografia: Zé Dias
Figurino: Lulu Areal
Desenho de luz: Patrícia Ferraz
Direção Musical: JP Mendonça
Direção de produção: Bruna Petit
Produção executiva: Sandra Valverde
Produção operacional: Lu Klein

Como me tornei estúpido (RJ)

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Foto: Desirré do Valle

Marino Rocha (no alto), Gustavo Wabner, Alexandre Barros e Rodrigo Fagundes
Reflexões interessantes em espetáculo a partir da obra Martin Page

A partir da obra homônima do francês Martin Page, a comédia "Como me tornei estúpido" tem ótima direção de Sergio Módena e valorosas interpretações de Alexandre Barros, Gustavo Wabner, Marino Rocha e de Rodrigo Fagundes. O único senão do trabalho é a adaptação de Pedro Kosovski, que conserva o que há de mais pueril no romance, mas abdica do cerne da questão da obra original. Na história, o jovem Antônio está cansado de ser inteligente e infeliz e parte em busca da transformação, se tornando alguém estúpido. Divertido, o espetáculo propõe uma reflexão que fica aquém da possível infelizmente. A produção está em cartaz no Teatro Sesc Ginástico, no centro do Rio de Janeiro, até o dia 27 de março.

Adaptação superficializa a proposta original de Martin Page
Na adaptação de Pedro Kosovski, o personagem Antônio (Alexandre Barros) vê o mundo como que dividido em dois grupos opostos de pessoas: os inteligentes e os estúpidos. Ao notar que todo o conhecimento acumulado nos seus vinte e cinco anos de vida não lhe trouxe felicidade, ele resolve mudar de lado, se tornando o contrário do que era antes. Abandona os livros e se dedica às redes sociais, substitui Beethoven e Descartes por Romero Brito, IPhone e por calças Diesel, e troca amizades antigas e uma vida mais modesta pelo álcool, aulas de suicídio e por dívidas com cartões de crédito. Desse modo, o espetáculo sugere que determinados comportamentos, preferências ou bens determinam se uma pessoa é inteligente ou estúpida, valorizando o primeiro grupo e, do ponto de vista (superior) desse, criticando o segundo.

Embora atravesse ideias similares, o premiado livro de Martin Page não é assim. No romance, ser estúpido não é gastar mais do que pode, desconhecer línguas antigas e filosofia nem ganhar milhões. Esses são níveis superficiais do trato da questão. Para o autor, a estupidez é sinônimo de falta de consciência moral. Nesse sentido, o que move o herói do livro em direção a uma mudança de vida é o desejo que ele tem de ser feliz. Antoine pensa que alcançará esse estado de espírito somente quando pensar menos, medir menos as consequências e apostar mais. E o leitor percebe que a problemática da reflexão não é o comportamento humano em si, mas o que move (ou deixa de mover) esse direcionamento de nossa sociedade.

Assim, Page e Kosovski propõem uma crítica interessante ao mundo contemporâneo. No entanto, se o primeiro parte de estereótipos para questioná-los, o segundo fica neles talvez em favor dos efeitos (lucrativos) da comédia. Nem todo mundo que reconhece a Nona Sinfonia de Beethoven é inteligente assim como o sucesso comercial de Romero Britto gera reflexões interessantíssimas sobre arte. O contrário disso é um pensamento reacionário contra o qual há que se lutar.

Mais um ótimo trabalho do diretor Sergio Módena
A direção de Sergio Módena abre espaço para excelente jogo nas interpretações, providenciando à ação ótimo movimento. Gustavo Wabner, Marino Rocha e Rodrigo Fagundes apresentam vários personagens com exuberância, marcando suas aparências em hábil mobilização dos seus recursos expressivos. Alexandre Barros, que interpreta o protagonista, tem presença forte em torno do qual a boa dramaturgia e a ótima direção se estruturam. "Como me tornei estúpido" mantém o ritmo ao longo da encenação em franca defesa do seu conceito. Destaque para o modo como as cenas se articulam em linha ascendente, definindo o maior mérito de Módena nesse trabalho.

A produção conta ainda com boas colaborações do figurino de Flávio Souza e do cenário de Carlos Augusto Campos e do diretor, e melhores ainda da iluminação de Fernanda e de Tiago Mantovani e da trilha sonora de Marcelo Alonso Neves. Todo esse visível investimento estético corrobora para o sucesso do espetáculo positivamente.

"Como me tornei estúpido" é uma boa opção na programação de teatro carioca nesse início de outono. Vale a pena ver, mas sobretudo pensar sobre o que a peça sugere.

*

FICHA TÉCNICA
Elenco: ALEXANDRE BARROS, GUSTAVO WABNER, MARINO ROCHA e RODRIGO FAGUNDES
Livre adaptação da obra de: MARTIN PAGE
Dramaturgia: PEDRO KOSOVSKI
Direção: SERGIO MÓDENA
Iluminação: FERNANDA E TIAGO MANTOVANI
Cenário: SERGIO MÓDENA e CARLOS AUGUSTO CAMPOS
Figurinos: FLAVIO SOUZA
Trilha Sonora: MARCELO ALONSO NEVES
Projeto Gráfico: GUSTAVO WABNER
Foto: DESIRÉE DO VALLE
Registro Audiovisual: EDUARDO CHAMON
Assessoria de Imprensa: DUETTO COMUNICAÇÃO
Cenotécnico: ARTICULAÇÃO CENOGRAFIA
Assistente de Produção: TAIANA STORK E PEDRO PEDRUZZI
Direção de Produção: ANA PAULA ABREU e RENATA BLASI
Produção: DIÁLOGO DA ARTE PRODUÇÕES CULTURAIS
Produtores Associados: ALEXANDRE BARROS, GUSTAVO WABNER, MARINO ROCHA E SERGIO MÓDENA
Idealização: ALEXANDRE BARROS, GUSTAVO WABNER, MARINO ROCHA, SERGIO MÓDENA E PABLO SANÁBIO

Curral grande (RJ)

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Foto: divulgação


Lucas Lacerda, Brunna Scavuzzi, Carlos Darzé e Brisa Rodrigues

Grupo estreia estreia no Rio ótimo espetáculo

O ótimo “Curral grande” é o primeiro espetáculo do Coletivo Ponto Zero no Rio de Janeiro, grupo constituído por egressos da Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia. A história trata dos “campos de concentração” abertos pelo governo cearense entre 1915 e 1932 como política de retenção dos flagelados da seca que migravam para Fortaleza. Dentre os vários méritos da produção, está o texto de Marcos Barbosa que nobremente sugere uma velha ferida na história do país que precisa ser tratada. A direção de Eduardo Machado usa de modo ímpar os signos teatrais, qualificando a viabilização cênica da proposta. No elenco, Brisa Rodrigues, Brunna Scavuzzi, Carlos Darzé e Lucas Lacerda apresentam ótimos trabalhos de interpretação no todo e individualmente. Em cartaz até o dia 25 de março na Sala Bel Garcia da Sede das Companhias, na Lapa, eis um espetáculo que deve ser visto.

Excelente dramaturgia de Marcos Barbosa
O caso dos “campos de concentração do Ceará” merece renovada atenção porque ainda hoje exibe o tamanho do problema das políticas públicas da região nordeste do país. O termo “higienização”, usado na abertura dos “Currais”, revela uma cultura em que algumas pessoas se acha(va)m melhores do que outras, justificando a medida de “proteção” da capital cearense. Castigado principalmente pela seca, o interior daquele estado merecia maiores investimentos públicos, o que equilibraria as possibilidades de acesso de cidadãos de áreas diferentes à melhor qualidade de vida. A existência desses campos deixa clara a complexidade do modo como alguns brasileiros olhavam para outros brasileiros. E sabemos que essa realidade hoje não é tão diversa no território nacional.

O nome “campo de concentração”, porém, não é bom. A Segunda Guerra, iniciada em 1939, deu novo significado para a expressão e não se pode confundi-los. Os campos de concentração alemães foram lugares mantidos para exterminar em massa o povo judeu (além de homossexuais, ciganos e de pessoas com deficiência física ou psicológica) dentro da tese da superioridade ariana. Isso não se compara com o que aconteceu no nosso país. Os “currais do governo” foram criados para conter a massa de flagelados que, fugindo da seca, migravam para Fortaleza. Por piores que tenham sido, não havia dentro dos “Currais” câmaras de gás.

Para além da proposta, no que diz respeito ao conteúdo, o mérito da dramaturgia de Marcos Barbosa está na sugestão de que o conceito de diferenciação social ainda existe. “Curral grande”, tratando de algo que aconteceu há mais de 80 anos no Ceará, convida o público carioca a olhar para a sua contemporaneidade e perceber que o cerne dessas mesmas mazelas ainda sobrevive infelizmente.

Mas há ainda os valores formais. Estruturada em episódios, a peça se apresenta através de quadros independentes que justapostos se relacionam. Cada nova cena, constituída de partes muitos bem definidas, oferece ao todo nova abordagem. Em cada variedade, do drama à comédia, aprofunda-se um novo grau de complexidade de maneira que o tema é tratado com a seriedade que ele merece. Excelente dramaturgia!

Direção e elenco têm trabalhos destacáveis
Pelo visível domínio de linguagem, a direção de Eduardo Machado é também excelente. Com poucos elementos, o uso que se faz deles no palco é riquíssimo. Cada nova informação que surge – objetos, movimentos, cores, texturas – aparece em meio a um contexto estético que potencializa seus sentidos. A luz através de elásticos dá a ver a chuva, a oposição entre cores quentes e frias no figurino (Agamenon de Abreu) e no cenário (Eric Fuly) revela o conflito social entre o litoral e o interior, pobres e ricos, entre poderosos e flagelados. Referências à era de ouro do rádio brasileiro e ao cinema mudo unem aspectos reais e fictícios em paralelo ao drama e à comédia que, em “Curral grande”, apontam para a profundidade do tema. Narrativas abrigadas pela quarta parede e trechos em que os atores se dirigem diretamente ao público se alternam. Tudo isso, contribuindo para um ritmo mais contemporâneo de exposição, renova o interesse do público sobre o que se está vendo. Parabéns!

Brisa Rodrigues, Brunna Scavuzzi, Carlos Darzé e Lucas Lacerda, no elenco, apresentam ótimos trabalhos de interpretação. Em todos, é possível perceber usos variáveis do corpo, dos tons, das intenções, dos movimentos pelo espaço, tempo e assim pela narrativa. Os muitos personagens são apresentados através de inflexões diferentes, exibindo domínio de potencialidades expressivas que merece ser valorizado. O maior mérito, no entanto, é conseguir driblar o desafio de ser novo a cada momento, atingindo a proposta de manter viva a poética que o trabalho parece defender.

Tema essencial na programação de teatro
Se o mundo civilizado pensa que a diferenciação entre seres humanos deixou de existir, a existência dos Currais nos questiona a respeito disso. Esse espetáculo do Coletivo Ponto Zero, como aconteceu com “Hominus Brasilis” (2014) e “Hamlet ou Morte!” (2015) há de fazer bela carreira. Tomara!

*

FICHA TÉCNICA
Texto: Marcos Barbosa
Direção: Eduardo Machado
Elenco: Brisa Rodrigues, Brunna Scavuzzi, Carlos Darzé, Lucas Lacerda
Concepção Cenográfica: Eric Fuly
Ass. de Cenografia: Thiago Pessanha
Concepção de Figurino: Agamenon de Abreu
Desenho de Luz: Marcelo Mármora e Elton Pinheiro
Preparação Vocal: Luciana Lucena
Fotografia: Ricardo Borges
Arte Gráfica: Uriel de Souza
Realização e Produção: Coletivo Ponto Zero

quarta-feira, 9 de março de 2016

Alice mandou um beijo (RJ)

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Foto: divulgação


Cia. Cortejo

Com ótimas interpretações, espetáculo apresenta visão pessimista do luto

Terceiro espetáculo da Cia Cortejo, “Alice mandou um beijo” apresenta personagens interessantes e belas imagens, mas um enredo tão exaustivo que acaba por esvaziar as boas propostas. Ao longo de oitenta minutos, a história se apresenta em episódios, mas todos eles ganham tamanha importância que não se conseguem revelar qual é o eixo principal da narrativa. No todo, a peça é um comentário sobre a ausência com belas imagens sensoriais, mas que perde oportunidades de se comunicar com mais efetividade. Bruna Portella, José Eduardo Arcuri, Luan Vieira, Tairone Vale e Vivian Sobrino têm ótimas atuações dirigidas por Rodrigo Portella que também assina o texto. A produção está em cartaz na Sala Mezanino do Espaço SESC Copacabana até 13 de março.

O aspecto pessimista da dramaturgia
Poucos dias antes do Ano Novo, Alice, a filha mais nova do Sr. Araújo (Jose Eduardo Arcuri), faleceu depois de meses doente. Além do pai, sobraram, na velha casa da família, seu marido Osvaldo (Tairone Vale), sua irmã mais velha Oneide (Vivian Sobrino), a mais nova Jandira (Bruna Portella), e Robério (Luan Vieira), o filho dessa última. A partir desse fato, “Alice mandou um beijo” pode ser vista a partir de seis episódios cujos títulos bem poderiam ser: “Limpar o guarda-roupa”, “A mala”, “Osvaldo”, “À venda?”, “O aniversário” e “O Ano Novo”. Eles compreendem um ano de luto da família pela ausência (talvez) de sua membro mais nobre.

De modo muito positivo, o texto de Rodrigo Portella deixa ver um comentário sobre o vazio deixado por Alice. Em todos os episódios, um determinado fato surge capaz de reorientar em alguma medida a vida dos personagens, mas esse vai à falência antes que termine e outro tome o seu lugar na narrativa. O ritmo se perde nesse excesso de constância, tornando o espetáculo menos interessante a cada novo momento apesar dos esforços da encenação. De modo similar, desde a dramaturgia, quatro dos cinco personagens querem manter a situação na qual sempre viveram embora essa esteja em aparente derrocada. Jandira quer manter-se no cuidado do pai doente e do filho autista. Osvaldo quer continuar morando na casa da família de sua esposa falecida. Inacessíveis, Araújo e Robério não vislumbram formas de sair de seus mundos particulares. A única exceção é Oneide.

Apesar da dramaturgia, principalmente a cênica, dar protagonismo para Jandira, é Oneide a única personagem que olha para fora. Ela é a menos tocada pela ausência da irmã falecida, a mais disposta a encontrar um meio de ressignificar a existência e a mais capaz de resolver os próprios problemas. A força de Portella sobre Jandira define a posição pessimista de “Alice mandou um beijo” na qual não há salvação para os personagens embora o tempo ofereça a eles algum alívio.

O tempo é o elemento mais importante da narrativa de Portella, outro sinal que marca a visão do espetáculo sobre o tema tratado. As cenas estão unidas umas às outras em articulação invisível, deixando para leves sinais nos diálogos a responsabilidade de expressar que um ano está passando. Chronos atravessa os acontecimentos, imperioso sobre as individualidades, devorando seus filhos, aqui completamente subservientes (com exceção de Oneide). É ele quem une e desune os personagens sem conferir-lhes mérito por isso. Eis o posicionamento da peça: só o tempo cura as feridas, pois os feridos não têm essa chance.

Espetáculo explora experiências sensoriais
Na direção de Rodrigo Portella, o maior mérito é a qualidade das interpretações de todo o elenco. Bruna Portella, Jose Eduardo Arcuri, Luan Vieira, Tairone Vale e Vivian Sobrino apresentam ótimos trabalhos, oferecendo segundos e terceiros níveis para os mais óbvios. A movimentação, no cenário que não tem paredes nem outras divisões, é equilibrada, comedida, conferindo à encenação o que o texto não faz: hierarquia. Em outras palavras, o público sabe o que ver, onde olhar, em qual ponto a peça quer ser assistida em primeiro plano. Sem exceção, todos os intérpretes fazem potente uso das oportunidades, marcando suas presenças no conjunto de maneira excelente.

Portella oferece ainda imagens sensorialmente potentes: a audição, através da trilha sonora do codiretor Leo Marvet; a visão, da cena em que balões invadem o palco; e o tato, dos banhos de água fria. São boas tentativas da peça de alcançar o público, valorosas principalmente depois da falência do insólito apego à metáfora da zebra. “Alice mandou um beijo” oferece boas colaborações do desenho de luz de Renato Machado, do cenário de Raymundo Pesine e do figurino de Danielle Geammal, mas sem grandes destaques.

Como bem apontou o crítico Renato Mello, do site Botequim Cultural, “Alice mandou um beijo” conversa com dois espetáculos interessantes de 2015: “Inútil a chuva”, da Armazém Companhia de Teatro; e “Consertam-se imóveis”, de Cynthia Reis. Há também “Nômades”, de Márcio Abreu e de Patrick Pessoa, de 2014. O tema da ausência merece mesmo boas reflexões como essa.

*

Ficha técnica
Autor e diretor: Rodrigo Portella
Codireção e Trilha Sonora: Leo Marvet
Elenco: Cia Cortejo / Bruna Portella, Jose Eduardo Arcuri, Luan Vieira, Tairone
Vale e Vivian Sobrino
Iluminação: Renato Machado
Figurinos: Daniele Geammal
Cenografia: Raymundo Pesine
Projeto Gráfico: Raul Taborda
Fotos de Divulgação: Renato Mangolin
Assessoria de Imprensa: Ney Motta
Produção: Cia Cortejo
Realização: Sesc Rio

O primeiro musical a gente nunca esquece (SP)

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Foto: divulgação


Marcelo Varzea e Amanda Costa

Bia Montez e elenco brilham no mais novo musical da Aventura Entretenimento

“O primeiro musical a gente nunca esquece” é a nova produção da Aventura Entretenimento, que assinou recentemente bombas como “Barbaridade” e maravilhas como “SamBRA”. Rodrigo Nogueira, apesar da enxurrada de críticas negativas aos seus últimos trabalhos, assina mais um péssimo texto, mas dessa vez também uma ótima direção. Talvez esse seja o seu melhor caminho como artista. Ao longo de cem minutos com intervalo, uma colagem de recriações dos comerciais mais famosos da história da televisão brasileira divide espaço com cenas clássicas do gênero comédia musical. Na história, a dona de casa Dora sofre a desatenção do marido Franco com quem está casada há vinte anos. Suas alternativas para ganhar espaço, no aniversário de união, no entanto, saem pior do que ela esperava. Apesar de machista, o espetáculo agrada pelo ótimo desempenho de todo o elenco principal, coadjuvante e coro. Amanda Costa e Marcelo Varzea, ao lado de Hugo Kerth, Reiner Tenente e mais oito pessoas brilham em cena, mas Bia Montez tem glorioso destaque. Depois de temporada em São Paulo e no Rio, a peça há de fazer outras apresentações pelo país.

Texto apresenta uma opinião machista sobre o casamento
A protagonista Dora (Amanda Costa) vê, no aniversário de vinte anos de casada, uma oportunidade de retomar o contato com Franco (Marcelo Varzea), seu amado marido. Apesar de morarem na mesma casa e tratarem-se cordialmente, é como se os dois não falassem a mesma língua. Ela gosta de musicais e ele é fissurado pelo seu trabalho como publicitário. Os dois estão há um certo tempo sem relações sexuais, mas a problemática fica mais clara quando ele, tendo esquecido da data comemorativa do casal, prefere celebrar os oitenta anos da primeira transmissão de TV no mundo (22/03/1935 na Alemanha (de Hitler)).

Aos poucos, amigos próximos do casal tomam conhecimento da questão que os envolve: a vizinha Madalena (Bia Montez), seu neto Leonardo (Hugo Kerth) e Eliseo (Reiner Tenente), sócio de Franco. Todos se compadecem de Dora, mas, por motivos óbvios, resistem em se intrometer. Sem modificações, as quatro cenas iniciais repetem o que disse a primeira e, até o intervalo, a pouco o espectador assistirá além da ratificação desse quadro de oposições entre o universo de Dora e de Franco.

O maior problema da dramaturgia de “O primeiro musical” se dá a ver no segundo ato. Unicamente dedicada ao cuidado da casa e do marido, Dora, em um momento de fúria, explode, mas, do momento em que as cortinas reabrem até as cenas finais, a personagem é punida como se todo o contexto que antecedeu a sua explosão tivesse inexistido. Os números de musicais que representam Dora perdem gradativamente espaço para os quadros de comerciais de televisão que lembram Franco. No desfecho, talvez não tanto por amor, mas mais por uma questão de sobrevivência, ele abre uma exceção parcial, trazendo o universo dela para o seu próprio. Sem dúvida, o todo revela um posicionamento negativamente conservador.

Ainda em termos de dramaturgia, os personagens secundários de Nogueira têm pouco investimento aqui. Graciosa, Madalena (Bia Montez) permanece linear durante toda a peça sem qualquer alteração. Leonardo (Hugo Kerth), em uma reviravolta nada surpreendente, reproduz um clichê batido. Eliseo (Reiner Tenente) é um publicitário de sucesso em 2015 que não sabe como funciona um smartphone, o que exibe uma falta de compreensão do dramaturgo sobre a diferença entre realismo e verossimilhança. Valorizado pela Aventura Entretenimento, Rodrigo Nogueira ainda não dá sinais aqui de melhora no seu fazer artístico como autor depois de todas as reprovações que já recebeu.

Os méritos da direção de Rodrigo Nogueira e de Tony Lucchesi
“O primeiro musical a gente nunca esquece”, como os primeiros musicais do início do século XX em Nova Iorque e em Londres, tem sucesso inicial garantido por partir de um contexto querido pelo público. De um lado, o universo de Dora é representado por números clássicos da comédia musical. No coro, cada ator representa um deles: “Hair” (Leilane Teles), “Cantando na chuva” (Pedro Arrais), “O mágico de Oz” (Carol Botelho), “O fantasma da Ópera” (Leandro Melo), “A noviça rebelde” (Fabiana Tolentino), “Grease” (Marcelo Ferrari), “Sweet Charity” (Débora Polistchuck) e “Ópera do malandro” (Junior Zagotto), fazendo menções também a outras histórias conhecidas do repertório mundial dentro do gênero. De outro, o antagonista Franco surge através das cenas em que se recriam os comerciais mais famosos da história da televisão brasileira. Em cena, se veem as propagandas da cerveja Brahma, Guaraná Antártica, Estrela, Varig, Bamerindus, Danoninho, Casas Pernambucanas e outros além do sutiã Valisère cuja referência está no título da peça. O público adora!

Bia Montez
Além disso, todo o elenco apresenta trabalho excelente de atuação em que o canto e a dança participam com vitalidade nas coreografias de Rodrigo Negri e de Priscilla Mota e da direção musical e arranjos de Tony Lucchesi. A direção de Rodrigo Nogueira é ágil, é fácil identificar enorme carisma na relação palco e plateia e parte dos problemas da dramaturgia se driblam através dos esforços meritosos que a encenação faz em seu favor. Tudo isso é muito positivo e precisa ser elogiado. Amanda Costa (Dora), Marcelo Varzea (Franco), Reiner Tenente (Eliseo), Hugo Kerth (Leonardo) e principalmente Bia Montez (Madalena) defendem seus personagens com galhardia, apresentando construções com as melhores possibilidades que cada figura parece ter tido. Parabéns!

Há porém um senão que remete à problemática conceitual da dramaturgia. Essencialmente bastante bem composta por novas versões dos musicais tradicionais e por jingles publicitários célebres, a trilha sonora de “O primeiro musical” tem também a participação de três canções originais compostas por Nogueira e por Lucchesi. A última é uma (auto)crítica irônica ao gênero comédia musical, o que é um contrassenso. Em primeiro lugar, há que se considerar como preconceito qualquer avaliação genérica justamente porque ela discorre sobre o todo da produção e não sobre o objeto que ela avalia. Ao contrário do que diz a letra da música, não é valoroso dizer que “o musical é cafona”, embora se possa considerar como cafona essa ou aquela produção. Em segundo lugar, muito parecido com o que foi destacado em “Barbaridade”, esse ponto de vista só exibe o quanto a produção desvaloriza o seu próprio público. Eis um tipo de deboche deplorável, desnecessário, ofensivo e burro.

As colaborações do figurino de Paula Acioly e da iluminação de Adriana Ortiz aumentam as qualidades de “O primeiro musical”, melhorando o ritmo da dramaturgia e reforçando os méritos da encenação. O cenário inóspito de Jackson Tinoco, sem contextualizar bem a personalidade dos personagens em cuja casa se dá a ver toda a história, nem qualquer outra coisa, se perde na tentativa nada articulada de aparecer sozinho.

Uma boa ideia!
“O primeiro musical a gente nunca esquece”, apesar dos problemas apontados, é uma boa peça, divertindo o público sobretudo com as nobilíssimas atuações. É ótimo, além disso, revisitar as propagandas de TV que fizeram a nossa história. Uma boa ideia da Aventura Entretenimento.

*

Ficha técnica
Consultoria criativa – Washington Olivetto
Texto e direção – Rodrigo Nogueira
Coreografia – Rodrigo Negri e Priscilla Mota
Direção Musical e Arranjos – Tony Lucchesi
Direção de arte e cenografia – Jackson Tinoco
Figurino – Paula Acioly
Design de som – Carlos Esteves
Iluminação – Adriana Ortiz
Casting – Marcela Altberg
Consultoria publicitária – Lula Vieira
Elenco – Marcelo Varzea, Amanda Acosta, Bia Montez, Reiner Tenente, Hugo Kerth, Marcelo Ferrari, Leandro Melo, Junior Zagotto, Pedro Arrais, Leilane Teles, Fabiana Tolentino, Debora Polistchuck e Carol Botelho
Músicos: Tony Lucchesi (teclado), Alexandre Queiros (teclado e violão), Diogo Gomes (trompete), Thais Ferreira (violoncelo), Luiz Felipe (violino), Pedro Aune (contrabaixo) e Léo Bandeira (bateria)
Realização – Aventura Entretenimento

sexta-feira, 4 de março de 2016

Lucrécia (RJ)

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Foto: Linn Jardim

Eliane Costa


Eliane Costa em excelente atuação

“Lucrécia” apresenta o ótimo trabalho de interpretação de Eliane Costa, mas quase nada além disso. Escrita por Leandro Baumgratz a partir de ideia original de Alexandre Mello, que dirigiu a montagem, a peça quis oferecer, no teatro, a importância que o som tem nos filmes da cineasta argentina Lucrecia Martel. Um dos motivos de não ter alcançado o objetivo apresentado na divulgação pertence à natureza do teatro, que não é a mesma do cinema, mas há outros. Oscar Saraiva, Guilherme Prates, Paula Loffler, Nina Reis, Rogério Garcia, Jojo Rodrigues e Luana Salazar também estiveram no elenco na temporada do Teatro 1 do Sesc Tijuca que encerrou no último dia 28 de fevereiro.

Barco sem porto
A história narrada em “Lucrécia” não é uma adaptação daquelas contadas nos filmes de Mertel. Em uma casa velha, uma família vive de modo diferente um dia de carnaval. A divulgação apresenta o lugar como Villa Lucrécia, um ficcional palacete em decadência construído no fim do século XIX no bairro Engenho Novo, na zona norte do Rio de Janeiro, onde atualmente mora a quarta geração de moradores. A protagonista Sulamita (Eliane Costa) passa o dia bebendo enquanto às voltas do que acontece com sua prole. Seu marido, o aposentado Soriano (Oscar Saraiva), filosofa no segundo andar. Os filhos Murilo (Guilherme Prates), Miriam (Paula Loffler) e Mirtes (Nina Reis) brincam, descobrem a sexualidade e as questões do mundo adulto. A empregada Clarice (Luana Salazar) procura um meio de resolver seus problemas com o namorado sem desagradar os patrões. A prima Estefânia (Jojo Rodrigues) e seu marido Rodrigo (Rogério Garcia) chegam e acabam se envolvendo com as questões dos anfitriões.

De modo sutil, surge uma questão interessante. Há, no seio dessa família, um elo forte de ligação com sobrenatural. Um dos personagens julga ver Jesus Cristo, outro prevê o futuro. Lá pelas tantas, um fato terrível ocorre e esses dons podem auxiliar no desenrolar dessa situação, que é, de alguma maneira muito sutil, referencial ao contexto narrativo de “A menina santa”, longa de 2004 de Lucrecia Martel. Na peça muito mais do que no filme, esse aspecto submerge em meio às várias outras situações.

Ao final, “Lucrécia” parece ter tentado falar de várias questões sem ter desenvolvido mais profundamente nem uma delas. O conflito de gerações, problemas sociais, sexualidade, poderes sobrenaturais são temas que entram e saem, arrastando a história que avança como um barco sem porto e cuja viagem demora para terminar.

Eliane Costa em excelente atuação
A divulgação de “Lucrécia” apresenta o interesse do diretor Alexandre Mello em investigar meios de reconstruir no teatro a importância do som nos filmes de Lucrecia Martel. A proposta é interessante, mas o problema é que, em cena, não se vê o resultado desse estudo em sua melhor potência. O modo mais privilegiado com que o som aparece no espetáculo perde espaço ao longo da peça para o desenrolar dos fatos. A partir de três microfones instalados no palco (que não são vistos por quem se senta mais à esquerda da plateia), os atores produzem sonoplastia no esforço de materializar o intento do diretor. Na narrativa, porém, isso não encontra lugar e colabora para prejudicar a tarefa do público em discernir sobre o que está vendo.

De um modo geral, os atores têm esforços visíveis na viabilização dos personagens, defendendo bem seus papéis. Oscar Saraiva (Soriano), no mais insólito dos desafios, diz o difícil texto com clareza e demais ótimos resultados. Guilherme Prates (Murilo), Paula Loffler (Miriam) e Nina Reis (Mirtes), com mais e menos possibilidades, aproveitam bem o que têm em mãos. O mesmo se pode dizer de Rogério Garcia (Rodrigo). De todos, mais privilegiada também, Eliane Costa se destaca. O habilidosíssimo uso do tempo pela atriz dá aparência de tensão nos diálogos e nos silêncios, apresentando uma solidez por trás da personagem que qualifica a história como um todo. Um excelente trabalho!

Cinema e Teatro na obra de Christian Metz
“Lucrécia”, na relação entre sua proposta e o modo como ela se encaminhou, faz lembrar sobre a teoria de Christian Metz sobre a maneira como os acordos da plateia com cinema e com o teatro são diferentes. Com luz assinada por Renato Machado, desenho de som por Phillippe Baptiste, figurinos por Nina Reis e cenário pelo diretor Alexandre Mello, a produção vale pela reflexão que provoca e por convidar o público a conhecer o trabalho de Lucrecia Martel dentre outros nobres motivos.

*

Ficha técnica e artística
Direção, cenografia e ideia original: Alexandre Mello
Texto: Leandro Baumgratz
Produção: Rogerio Garcia & Paula Loffler

Elenco
Eliane Costa é Sulamita
Oscar Saraiva é Soriano
Guilherme Prates é Murilo
Nina Reis é Mirtes
Paula Loffler é Miriam
Rogério Garcia é Rodrigo
Jojo Rodrigues é Estefânia
Luana Salazar é Clarice

Banda sonora e desenho de som: Phillippe Baptiste
Desenho de luz: Renato Machado
Figurinos: Nina Reis
Assistência de figurino: Yanna Bello
Cenotécnico: Marcelo Dertonio
Assistente de produção e direção: Lays Ariozi
Assessoria de imprensa: Gabriela Mota
Programação visual e redes sociais : Paula Sattamini
Fotos: Linn Jardim

quinta-feira, 3 de março de 2016

Cinco Júlias (RJ)

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Foto: Kaio Caiazzo

Bruna Hamú, Carol Garcia, Gabi Porto, Malu Rodrigues e Isabella Santoni

A proposta de um musical indierock

O maior mérito de “Cinco Júlias” é o modo como o espetáculo conversa com uma geração pouco contemplada no teatro: a dos anos 90. Escrita e dirigida por Matheus Souza, a produção deixa ver uma estética que caracteriza a controversa geração Y, aquela que já era adulta quando a internet chegou, mas não velha o bastante para curti-la desde o seu início. Bruna Hamú (verde) e Isabella Santoni (amarela), mas principalmente Gabi Porto (laranja), Malu Rodrigues (rosa) e Carol Garcia (azul) são cinco Júlias cujas vidas se cruzam na noite em que o mundo virou de cabeça para baixo. Na história, um grupo de hackers invadiu todas as redes sociais e publicou, em um site chamado uLeaked.com (“vazado”), todo o conteúdo que até então estava privado: fotos, mensagens inbox, e-mails. Com belíssima direção musical de Pablo Paleologo e colaborações interessantes da luz de Rodrigo Belay, do cenário de Miguel Pinto Guimarães e dos vídeos de Dudu Chamon, apesar de longa, a peça tem presença marcante na programação teatral do Rio. Ela está em cartaz no congelante Teatro das Artes, no Shopping da Gávea.

A geração Y
Para quem nasceu do início dos anos 80 ao dos 90, o mundo não é tão colorido como era para os hippies e nem tão precursor como para os yuppies. Paira uma ânsia pela calma, mas ao mesmo tempo a consciência de que é na tempestade em que se lembra de que se está vivo. A internet, que revolucionou o mundo e nele as relações entre os homens, não apagou a lembrança de quando se deixavam mensagens em secretárias eletrônicas, se compravam CDs e se faziam pesquisas em enciclopédias. Essa melancolia burguesa não esconde a autocrítica junto ao lamento, o medo junto da euforia, a preguiça junto com o orgulho. “Cinco Júlias” proporciona essa reflexão através do seu ideário estético, mas perde inúmeras possibilidades de dar conta do recado com mais eficiência.

Nessa dramaturgia de Matheus Souza, não há história o bastante para cento e vinte minutos de espetáculo. A peça abre com monólogos em primeira pessoa em que cada uma das cinco personagens – todas elas têm o mesmo nome – se apresenta. Esse trecho dá lugar para a situação em que elas se conheceram e essa para o final acrescido de um epílogo. Uma hora depois de ter começado, o espetáculo, na ordem da dramaturgia e da encenação, apresenta uma sucessão de fins que confirmam as expectativas, oferecendo mais do mesmo em uma gordura cansativa.

A amizade une duas Júlias opostas, o sexo outras duas também diferentes. A quinta, que é narradora, participa circuntancialmente do todo. Algumas questões bastante relevantes ficam sufocadas em um conjunto de clichês melodramáticos, que têm algum mérito em uma análise sem preconceitos, mas fazem com que a narrativa perca a força.

Méritos e problemas
De um lado, a excelente direção musical de Pablo Paleologo estrutura um argumento que tem pouca - mas visível - colaboração dos diálogos. Canções de Radiohead, Florence and The Machine, Arcade Fire, Smashing Pumpkins e outras bandas, interpretadas ao vivo pelas atrizes-cantoras, pontuam, entre várias outras questões, o contexto essencial do drama. O olhar do outro é fator determinante não apenas na construção da identidade, mas sobretudo de sua autocrítica. No dia em que todos os segredos do mundo foram revelados, a individualidade de cada um(a) entrou em choque consigo mesma. E esse movimento promoveu, para todas as Júlias, uma viagem adentro de si que, no palco, se permite ver através da fuga das personagens do Rio de Janeiro para São Paulo.

Além da música, o cenário em perspectiva de Miguel Pinto Guimarães marca o protagonismo de todas elas através de quem o mundo se vê e é visto. E essa problemática é essencial ao indierockismo de “Cinco Júlias”: o fato de você não saber o mesmo que eu me faz especial, mas só estamos conversando porque há algo em mim que você não sabe e algo em você que eu não sei, mas quero saber.

Por outro lado, as personagens são da geração Z, ou seja, tendo sido já alfabetizadas no computador, sentem a problemática da internet de um modo diferente. Elas, vistas a partir dos coloridíssimos figurinos de João Lamego e da luz de Rodrigo Belay, sobretudo nas partes mais açucaradas da dramaturgia, se pasteurizam. Em outras palavras, o indie vira pop, Bjork fica ao lado de Taylor Swift, o público alvo se indefine e a discussão perde a força (porque se vende). “#meninos e meninas”, assim como “Mamma Mia! – O musical”, só têm nobres valores porque mantiveram-se firmes em suas concepções. Sem comparações, vale lembrar também de "Trilhas sonoras de amor perdidas" e de "Música para cortar os pulsos".

Carol Garcia, Gabi Porto e Malu Rodrigues
Bruna Hamú e Isabella Santoni apresentam bons trabalhos, mas Carol Garcia, Gabi Porto e Malu Rodrigues se destacam positivamente. Seja pela graça da primeira, seja pelas belíssimas vozes das duas últimas, elas garantem os melhores momentos de “Cinco Júlias”. As cinco apresentam valorosas interpretações, defendendo suas personagens e suas questões mais essenciais através de dicção clara, intenções bem postas e de movimentação limpa. Vale também o destaque para os vídeos de Dudu Chamon, elevando as qualidades artísticas do desenvolvimento da proposta inicial com vibrante potência.

Bem como sua equipe, Matheus Souza é um dramaturgo que merece atenção. Aplausos.

*

FICHA TÉCNICA:
TEXTO E DIREÇÃO GERAL: MATHEUS SOUZA
ASSISTE DE DIREÇÃO: HAMILTON DIAS

ELENCO
JULIA 1: GABI PORTO
JULIA 2: BRUNA HAMÚ
JULIA 3: CAROL GARCIA
JULIA 4: MALU RODRIGUES
JULIA 5: ISABELLA SANTONI

DIREÇÃO MUSICAL: PABLO PALEOLOGO
ASSISTENTE DE DIREÇÃO MUSICAL: ANDRÉ SIGAUD E MARCELO DURHAM
PRODUTOR MUSICAL: MARCELO DURHAM
PREPARADORA VOCAL: DANI CALAZANS
DESIGN DE SOM: ROD OLIVIEIRA

Músicos:
BAIXO: MARCELO DURHAM
BATERIA: FELIPE AGUIAR
GUITARRA: ANDRÉ SIGAUD
TECLADO: PABLO PALEOLOGO
VIOLINO: FELIPE VENTURA

COREOGRAFIAS: ANA PAULA BOUZZAS
SAPATEADO: JULIANA MOULIN

CENÁRIO: MIGUEL PINTO GUIMARÃES
FIGURINOS: JOÃO LAMEGO
PRODUÇÃO DE ARTE: BRUNA ZACCARO
ASSISTENTE DE PRODUÇÃO DE ARTE: MARCIE PORTO
DESENHO DE LUZ: RODRIGO BELAY
VÍDEOS: DUDU CHAMON
MAPPING E VJ ESTRÉIA: DADO MARIETTI
ASSISTENTE DE DIREÇÃO: KAIO CAIAZZO
ASSISTENTE DE CAMERA: LUIS SIMPSON
ASSISTENTE DE EDIÇÃO: HUGO ROCHA
ASSISTENTE DE PRODUÇÃO: THAIANE MACIEL
ASSESSORIA DE IMPRENSA: LEILA MEIRELLES E MARCELA NUNES
DESIGN GRÁFICO: VENTO ESTUDIO
FOTOS DE DIVULGAÇÃO: PAPRICA FOTOGRAFIA
VISAGISMO: VIVI GONZO
RAFAEL NSAR
DIRETORA DE PALCO: LUCIA MARTINUSSO
CONTRARREGRA: MAYCON SOARES
OPERADOR DE LUZ: MARCELO ANDRADE
OPERADOR DE SOM: RODRIGO OLIVEIRA
VJ TEMPORADA: BRUNO GRIECO
EQUIPE DE PRODUÇÃO: LEILA MEIRELLES
MARCELA NUNES
PRODUÇÃO EXECUTIVA: ANA MOTA
DIREÇÃO DE PRODUÇÃO: TATIANNA TRINXET