quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

Hominus Brasilis (RJ)

Foto: divulgação



Essencial na programação de teatro

“Hominus Brasilis” vem recebendo merecidos elogios desde o fim de novembro de 2014 quando estreou. Sem cenário, com um figurino neutro, sem desenho de luz, nem trilha sonora, com raras palavras e nenhum diálogo verbal, os atores Dio Cavalcanti, Helena Marques, Matheus Lima e Patrícia Ueba da Cia. De Teatro Manual contam a história da humanidade. O resultado, cujo nível de beleza é altíssimo, expõe a potencialidade do homem em fazer criar o mundo nem que seja (e já é muito!) na imaginação. Participante do Festival Midrash de Teatro, o espetáculo cumpre apresentações às quintas-feiras até o início de fevereiro próximo no centro cultural que fica no Leblon, zona sul do Rio de Janeiro. Imperdível pra toda a família!

A dramaturgia tem o grande mérito de partir do encontro entre os atores com o público. A peça começa quando Dio Cavalcanti, Helena Marques, Matheus Lima e Patrícia Ueba sobem na pequena plataforma retangular (2m por 1m) onde toda a encenação acontecerá. De um lado, o momento cria as bases para a poética do acontecimento teatral. De outro, ao fazer isso, o grupo de intérpretes se veste da poética criada, tornando-a potencialmente ainda mais criadora e criativa. A partir disso, ainda que o contrato já esteja feito, restará ao público a confirmação de que sua imaginação será ricamente alimentada. Aos atores, caberá nutrir a audiência de imagens cada vez mais exigentes. Supervisionada por Julio Adrião, célebre por sua montagem de “A descoberta das Américas”, do início ao fim, a peça “Hominus Brasilis” confirma as expectativas e realiza em plenitude seu intento maior que parece ser o de glorificar o homem e a sua infinita capacidade criadora.

No trabalho interpretativo, os atores dão conta dos sons, das imagens corporais, da movimentação e principalmente da musicalidade de que essa produção, na sua “pobreza”, se vale para ser comparada, como tem sido, aos melhores espetáculos da temporada. Dos dinossauros ao nascimento do fogo, do aparecimento do homem às grandes navegações, das batalhas políticas à sociedade de consumo, a interpretação luminosa de Patrícia Ueba, o vigor altamente expressivo do gestual de Matheus Lima e todo o elenco em conjunto e em cada parte apresentam excelente trabalho.

“Hominus Brasilis” talvez lembre um dos motivos pelos quais o teatro é uma arte tão antiga e tão importante para a humanidade. No melhor da sua essência, é sempre uma arte do encontro entre alguém que interpreta com alguém que assiste de forma que todo o resto fica em segundo plano. Pela excelência de ser o que é, valem aplausos repetidos, temporadas cheias e vida longa. Evoé!

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FICHA TÉCNICA:
Idealização: Matheus Lima e Helena Marques
Dramaturgia, Concepção e Direção: Cia de Teatro Manual
Supervisão de Cena: Julio Adrião
Elenco: Dio Cavalcanti, Helena Marques, Matheus Lima e Patrícia Ubeda
Colaboração Artística e Stand In: Camila Nhary, Bernardo Schlegel, Diego de Abreu
Iluminação: Gustavo Weber
Operação de Luz: Júlia Faria
Identidade Visual (Arte Gráfica): Thais Gallart
Desenhos: Nicole Schlegel
Ilustrações: Nicole Schlegel
Figurino: Camila Nhary
Assessoria de Imprensa: Clarissa Cogo
Produção Executiva: Bernardo Schlegel e Juliana Trimer
Produção: Botão Cultural
Realização: Cia de Teatro Manual (Dio Cavalcanti, Helena Marques, Matheus Lima e Patrícia Ubeda

Noite Infeliz (RJ)

Foto: divulgação

Françoise Forton, Maria Bia, Érico Brás, Rodrigo Fagundes e Mariana Santos

Boas interpretações

A maior sorte de “Noite Infeliz – A Comédia Musical das Maldades” são as interpretações de Érico Brás, Mariana Santos, Maria Bia, Rodrigo Fagundes e de Françoise Forton. De resto, a debilidade na dramaturgia e nos movimentos e a falta de concepção melhor articulada nos figurinos e nas projeções enchem de responsabilidade a atuação. Em cartaz no Teatro dos Quatro, no Shopping da Gávea, zona sul do Rio de Janeiro, essa comédia escrita por Maurício Guilherme e com direção de Victor Garcia Peralta começou sua primeira temporada há pouco e há de afinar seus contornos ao longo de sua carreira, espera-se.

O texto começa com o produtor de variedades Fausto Carrera (Érico Brás) se apresentando. Uma série de quadros cômicos que versam sobre a maldade compõem a primeira parte do “drama” vivido pelo personagem em busca da fama, do reconhecimento e da sobrevivência. Aqui está a melhor fatia desse espetáculo cujos méritos se apoiam no ótimo jogo que os atores protagonizam nas esquetes. Aparentemente cansada da simples justaposição de cenas unidas em redor de um tema, a dramaturgia segue por um outro caminho nos momentos finais. Estruturada de forma bem mais complexa que as anteriores, o último quadro faz alusão à obra de Goethe. Fausto Carrera fizera um acordo no passado com o Diabo (Rodrigo Fagundes) e, sentindo-se enganado, vem cobrar-lhe o prometido. Ainda que, na primeira parte, o protagonista apareça tentando uma audiência com alguém importante, sendo impedido por imensa burocracia, identificar o espetáculo como um todo coeso é difícil inclusive porque isso só pode acontecer no final.

É possível reconhecer que a direção de Victor Garcia Peralta, assistida por Alcemar Vieira, tentou imprimir na última cena a mesma estética que a das anteriores. O desafio foi maior que o alcance infelizmente. Os quadros da primeira parte são independentes, os personagens são figuras farsescas e com vínculos narrativos superficiais próprios da comédia popular. Já a última cena, que dá sentido para a história, exige mais complexidade. A curva se torna decrescente, o ritmo mais lento e a graça mais difícil. Por outro lado, em todo o espetáculo, os movimentos são flácidos e as articulações entre as esquetes azeitadas demais. Falta firmeza.

Experientes no gênero comédia, Rodrigo Fagundes e Mariana Santos tiram excelente proveito do texto, construindo quadros engraçados que divertem o público. Maria Bia e Françoise Forton não decepcionam positivamente, protagonizando alguns números muito bons também. Érico Brás, que faz também outros personagens além de Fausto, estabelece ótima conexão com o público, conseguindo liderar, na medida do possível, as atenções por sobre a saga de seu herói.

Porque o tema da maldade garante a unidade da obra até a chegada da cena final, a estética do Teatro de Revista pode ter servido de inspiração para a parte visual e para a escolha da trilha sonora. A mistura de cores e de texturas, formas e de estilos diferentes no vestuário de Antônio Guedes, que repete a concepção de “Bodas de Fígaro”, também não ajuda o espectador a se encontrar no espetáculo. Cerca de 50 inserções de vídeo assinadas por Rico Vilarouca fazem parte da narrativa cênica que resulta em uma explosão visual na qual más interpretações poderiam submergir, o que felizmente não acontece. As músicas, escolhidas a partir do assunto de suas letras, são bem defendidas pelo elenco. A direção musical é de Paula Leal. “Noite infeliz” tem ainda boa contribuição de Maneco Quinderé no desenho de luz.

Com problemas principais na ordem da dramaturgia, “Noite Infeliz” oferece ao espectador bom resultado no mais essencial: as interpretações.

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Ficha Técnica 
Texto: Mauricio Guilherme
Direção: Victor Garcia Peralta
Produção: Rodrigo Velloni
Elenco: Érico Brás, Mariana Santos, Rodrigo Fagundes, Maria Bia.
Atriz Convidada: Françoise Forton
Iluminação: Maneco Quinderé
Direção Musical: Paula Leal
Cenografia: Cris Novaes
Figurinos: Antônio Guedes
Diretor Assistente: Alcemar Vieira
Projeto Multimídia: Rico Vilarouca
Fotografia: Priscila Prade
Produção Executiva: Giovani Tozi e Adriana Souza
Realização: Velloni Produções Artísticas

#Meninos e Meninas (RJ)

Foto: Marilene Cândido
Elenco em cena

Sucesso entre os adolescentes

“#Meninos e Meninas”, em cartaz no Teatro das Artes, no Shopping da Gávea, na zona sul do Rio de Janeiro, apresenta os dramas vivenciados por adolescentes na passagem por essa etapa da vida. No elenco, estão Anna Rita Cerqueira, Eduardo Mello, Douglas Sampaio, Gabi Cavalcanti, Ingrid Klug, Lucas Cotrim, João Fernandes, entre outros famosos por suas participações em novelas como “Malhação” e “Rebelde”, por exemplo. Afra Gomes e Leandro Goulart assinam juntos o texto e a direção dessa produção que tem tido merecido sucesso entre jovens, mas que também pode ser descoberta por pessoas de outras fases etárias que queiram se divertir.
         A dramaturgia de Afra Gomes e de Leandro Goulart é composta por quadros que apresentam uma galeria de imagens típicas da adolescência. Momentos de crise como o primeiro beijo, a primeira relação sexual, os combates com os pais e os professores, a percepção da morte, a definição dos papéis sociais na escola e entre os amigos, a posição a respeito dos preconceitos mais comuns, as pequenas ideologias, a constituição da identidade, a questão do uso do álcool e das drogas, etc., estão representados no interior de cada cena e na peça de um modo geral. Embora não haja uma narrativa que una os personagens, é fácil reconhecer que eles dividem a mesma história. Todos são conectados à internet, todos são parte de uma classe média, todos são brancos, saudáveis e relativamente estruturados financeiramente. Com certeza, essas não são as características de todos os adolescentes, mas a forma hegemônica com que elas foram exploradas pela mídia até aqui as tornaram constituintes de um modelo através do qual é possível chegar às especificidades. Com poucas pretensões, mas bem desenvolvidas, o texto de “#Meninos e Meninas” é elogiável também porque manifesta boa construção dos diálogos e ótimo uso do glossário pertinente ao público-alvo. Eis aqui um retrato, um bom retrato.
         De um modo amplo, há bons trabalhos de interpretação no conjunto, mas é possível fazer alguns destaques positivos. Ana Rita Cerqueira e Gabi Cavalcanti usam bem as palavras, movimentando-se com delicadeza pelo palco. Interpretando o galã com segurança, Lucas Cotrim também tem performance elogiável. Os melhores trabalhos, no entanto, são dos carismáticos Eduardo Mello, João Fernandes e Douglas Sampaio e principalmente de Ingrid Klug, protagonista do melhor momento de toda a encenação. Sem grandes movimentos, efeitos expressivos nem qualquer apoio, Klug apresenta seu monólogo com seriedade, força e emoção.
         “#Meninos e Meninas” tem desenho de luz de Luiz Paulo Nenén que valoriza o ritmo do espetáculo, esse que conta com trilha sonora popular interpretada ao vivo pelos intérpretes. Há que se valorizar, no mesmo sentido, as coreografias e a direção de movimento de Anna Magdalena que investem na jovialidade do elenco e do público-alvo, ratificando a construção de uma peça divertida, mas com momentos mais reflexivos.
         Ainda que seja direcionado ao público adolescente, “#Meninos e Meninas” interessa às plateias de todas as idades, porque tem o mérito de apresentar uma dramaturgia potente no âmbito de sua despretensiosa complexidade. Nesse sentindo, fica fácil atender ao gracioso convite do espetáculo e comparar a vida, os problemas e as alegrias dos personagens da peça com os temas que estiveram presentes quando também nós passamos por essa idade tão peculiar. O resultado dessa avaliação pode emocionar, pode divertir, mas sem dúvida fazer pensar. Aplausos!

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Ficha técnica:
Texto, Direção e Cenário: Afra Gomes e Leandro Goulart
Figurino: Renata Grimberg
Iluminação: Luiz Paulo Nenén


Elenco (em ordem alfabética):
Anna Rita Cerqueira
Bárbara Dias
Biel Portela
Bruna Natali
Douglas Sampaio
Eduardo Melo
Gabi Cavalcanti
Ingrid Klug
João Fernandes
José Victor Pires
Larissa Bougleux
Luã Bregeron
Lucas Corsino
Lucas Cotrim
Matheus Tederiche
Vitória Vianna

Direção de Movimento e Coreografia: Anna Magdalena
Direção Musical: Juliana Veronezi
Sound Design: André Breda
Produção: Eduardo Barata e Alina Lyra
Realização: Alkaparra Produções

domingo, 25 de janeiro de 2015

O branco de seus olhos (RJ)

Foto: Ana Rovati

Amanda Vides Veras, Karine Teles e Fabiano Nunes

As relações de poder em peça dirigida por Alexandre Mello


Em cartaz no Teatro Poeira, em Botafogo, na zona sul do Rio de Janeiro, “O branco de seus olhos” é o primeiro texto escrito pelo roteirista Álvaro Campos. A bela montagem, que tem Amanda Vides Veras, Fabiano Nunes e Karine Teles no elenco, é dirigida por Alexandre Mello. Na história, a relação de poder existente desde a conversa mais casual até os embates mais agressivos estão expressos nas nuances dos encontros entre os personagens Karina, Lauro e Raquel.


A peça começa com a chegada de Karina (Amanda Vides Veras) ao apartamento onde mora o bailarino Lauro (Fabiano Nunes) e a administradora de investimentos Raquel (Karine Teles). Lauro e Karina foram muito próximos na infância e se reencontraram recentemente nas redes sociais, marcando um primeiro encontro na casa dele. Um desencontro entre o desembarque de Karina e o de Lauro na cidade fez com que ela precisasse chegar antes a casa dele com a chave encontrada em um lugar previamente marcado. Karina leva um susto quando encontra Raquel, quando fica sabendo que Lauro é casado e quando é informada de que o velho amigo é casado com ela. A dramaturgia de “O branco de seus olhos” se divide, a partir daí, entre a conversa entre Karina e de Raquel e as voltas ao passado. Há alguns anos, o casal se mudou para o subúrbio de Buenos Aires por causa do trabalho de Raquel. Lá, a esposa resolve apoiar o marido, investindo na realização de um grande espetáculo em que Lauro possa ser apresentado à cidade como bailarino profissional. Por trás disso, a tentativa de Raquel de se aproximar do homem que ama ou mantê-lo, de alguma forma, sob o seu poder.

Bem desenvolvido até as cenas finais, os últimos momentos do texto de “O branco de seus olhos” decepcionam aqueles que não se identificam com narrativas redondas, finais explicativos, reviravoltas clássicas. Álvaro Campos, com brilhantismo, constrói as falas de Raquel com agudo sarcasmo, conferindo à personagem um humor ferino que a fazem aparentemente imperar sobre Lauro e sobre Karina. Representando bem o movimento das tele-narrativas contemporâneas, em que o público se identifica mais com as vilãs que com as mocinhas, os primeiros dois terços do texto são deliciosos. É uma pena que não termine de forma igualmente potente e complexa.

A direção de Alexandre Mello, que também assina a direção de arte, tem o mérito de criar boas situações cênicas para o espectador fruir o texto. O modo como o palco está dividido e a disposição de elementos simbólicos ajudam a limpar os obstáculos e a abrir campo para o o tempo das conversas. Nessa peça, é possível ver um trabalho de direção que privilegia os tempos, os espaços silenciosos, a clara articulação das palavras, suas intenções, suas consequências significativas na construção do discurso.

Amanda Vides Veras constrói sua Karina repleta de docilidade, dando a ver grandes doses de subserviência e de ingenuidade de modo a se situar no exato oposto da Raquel interpretada por Karina Teles. O resultado é um embate de primeira grandeza. Teles, mais privilegiada também pelo texto, tem destaque positivo no âmbito das interpretações devido à preciosa distribuição das pausas e do excelente uso do jogo das intenções em cada movimento gestual e proxêmico. Fabiano Nunes evidencia molemente seu personagem, mas apresenta um belíssimo número de dança que justifica em certo modo a sua contribuição.

Elisa Faulhaber, na escolha dos figurinos, revela os personagens de forma pontual e bastante bela ao lado do excelente desenho de luz de Renato Machado. A trilha sonora de Paulo Francisco Paes corrobora com o texto na viabilização de um clima claustrofóbico em que Karina é aprisionada por Raquel, construindo uma atmosfera de suspense.

Com ótimos trabalhos de interpretação de Amanda Vides Veras e de Karine Teles, sob a direção detalhada de Alexandre Mello, “O branco de seus olhos” vale a pena ser visto também pelos diálogos bem escritos de Álvaro Campos. Parabéns.

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FICHA TÉCNICA
Autor: Alvaro Campos
Direção: Alexandre Mello
Supervisão de Dramaturgia: Julia Spadaccini
Elenco: Amanda Vides Veras, Fabiano Nunes e Karine Teles
Trilha Sonora e Direção Musical: Paulo Francisco Paes
Figurinos: Elisa Faulhaber
Iluminação: Renato Machado
Cenografia e Direção de Arte: Alexandre Mello
Videomaker: Lucas Canavarro
Coreografia: Fabiano Nunes
Supervisão de coreografia: Paula Maracajá
Direção de Produção: Gabriela Imelk
Produtor Associado: Pablo Sanábio

Cachorro-Quente (RJ)

Foto: divulgação

Sacha Bali, Olívia Torres, Rosanna Viegas e Renato Livera (em cena)


O engraçado reencontro entre João Fonseca e Sacha Bali

Livremente inspirada na obra do escritor norte-americano Chuck Palahniuk, “Cachorro-Quente” é uma comédia muito bem escrita e protagonizada por Sacha Bali. Dirigida por João Fonseca, a peça está em cartaz no Teatro Cândido Mendes, em Ipanema, zona sul do Rio de Janeiro. No elenco em ótimos trabalhos, estão também Laila Zaid (no lugar de Letícia Lima), Renato Góes (substituindo Renato Livera), Rosanna Viegas, Olívia Torres e Pedro Henrique Monteiro. A produção é uma ótima sugestão de bom divertimento.

Luca Mastroianni (Sacha Bali) ganha a vida aplicando golpes em restaurantes caros. Durante a refeição, ele se engasga com a comida, esperando ser salvo por algum cliente rico que, sentindo-se herói, passe a lhe ajudar financeiramente. A tramoia quase sempre funciona de forma que Luca garante o tratamento de sua mãe que está internada em uma clínica para contornar os males do Alzheimer. Antes que ela piore, Luca precisa descobrir detalhes de sua origem. No hospital, ele conhece uma Doutora (Laila Zaid) que pode ajuda-lo também em outra questão: sexo. Luca, que participa de reuniões de terapia em grupo para se curar, é viciado em sexo e reage com estranheza a sua incapacidade de transar com a médica de sua mãe. Estaria ele, enfim, apaixonado? Ao longo da peça, por caminhos inusitados, o protagonista descobre ser descendente direto de um grande personagem da história universal, fato esse que poderá mudar definitivamente sua vida. Cheia de personagens malucos e de situações engraçadas, e contada de uma forma ágil e vibrante, a narrativa acontece de forma exuberante, oferecendo ao Rio de Janeiro um vaudeville moderno, sarcástico e bastante bom.

A direção de João Fonseca em “Cachorro Quente” talvez revele uma volta do encenador ao estilo de produções como “O Casamento” e “Escravas do Amor” da saudosa Cia. Fodidos Privilegiados. As cenas são curtas em uma narrativa em tom farsesco, quase não há uso de elementos cênicos, os atores se sucedem na apresentação de vários personagens, o ápice é bem preparado e não decepciona. Além disso, o diálogo com o público é próximo de modo que o espectador se sente ao lado de Luca, torcendo por ele, acompanhando-o em suas aventuras e mal passos. Eis aqui alguns méritos da direção.

Em ótimo trabalho de interpretação, Sacha Bali dá vida a um malandro carismático que esconde a poética do sofredor que também tem direito ao seu lugar ao sol. Luca protagoniza a história, permitindo que a audiência se divirta com seus percalços docemente. O elenco conta ainda com ótimas composições de Pedro Henrique Monteiro (a Mediadora do Grupo de Terapia), de Renato Góes (o melhor amigo de Luca), de Rosanna Viegas (a Mãe), de Laila Zaid (a Médica) e principalmente de Olívia Torres (as amantes de Luca). O conjunto representa o emaranhado de figuras esquisitas que atravessam o mundo de Luca com o qual a plateia se identifica e se diverte.

O figurino situa bem os personagens, apresentando as figuras dentro do pulp fiction em que a peça esteticamente se dá a ver. O mesmo não se pode dizer do cenário. As caixas de papelão, ainda que usadas de forma neutra pela direção, não são objetos de todo desprovidos de personalidade, não conseguindo também representar as pedras usadas para a construção de um templo nas cenas finais. Negativamente, ficam no meio do caminho. Tanto o figurino como o cenário são assinados por Nello Marrese. Tem destaque positivo o desenho de luz de Luiz Paulo Nenem, ratificando as intenções direção e das interpretações em garantir ritmo veloz em narrativa clara.

Sucedendo “Pão com Mortadela” na parceria entre João Fonseca e Sacha Bali, “Cachorro-Quente” merece ser visto. 

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Ficha técnica:
Direção: João Fonseca
Dramaturgia: João Fonseca e Sacha Bali livremente inspirados na obra de Chuck Palahniuk
Elenco: Sacha Bali, Laila Zaid, Olivia Torres, Pedro Henrique Monteiro, Renato Góes e Rosanna Viegas
Assistentes de Direção: Lucas Massano e Philipe Carneiro
Iluminador: Luiz Paulo Nenem
Cenografia e Figurino: Nello Marrese
Assistente de cenografia: Lorena Lima
Assistente de figurino: Gustavo Henrique
Direção de movimento: Rafaela Amado
Direção de Produção: Miçairi Guimarães
Produção Executiva: Cristiana Miranda
Assistente de Produção: Inessa Azevedo
Técnico de luz: Roberto Macedo
Técnico de som e Contrarregra: Tallys Moreno

O Homem Elefante (RJ)

Foto: divulgação

Davi de Carvalho e Vandré Silveira em cena

Distante

“O Homem Elefante”, em cartaz no teatro Oi Futuro, no Flamengo, é a versão reduzida da original escrita pelo americano Bernard Pomerance em 1977 sobre como se tornou célebre o jovem inglês John Merrick (1862-1890), vítima de neurofibromatose e da Síndrome de Proteus, duas doenças até hoje sem cura. Produzida na Broadway dois anos depois, a peça inspirou o cineasta David Lynch a levar a história para as telas. O filme estreou em 1980, conquistando, entre vários prêmios, oito indicações importantes ao Oscar. No Brasil, “O Homem Elefante” já foi protagonizado por Antônio Fagundes, ao lado de Ewerton de Castro, em produção célebre dirigida por Paulo Autran em 1981. A montagem atual é dirigida por Cibele Forjaz e por Wagner Antônio. No elenco, estão Vandré Silveira, no papel título, ao lado de Daniel Carvalho de Faria, Davi de Carvalho e Regina França em uma produção assinada pela Companhia Aberta e colaboradores. Sem boa direção e com interpretações não relevantes, o resultado deixa a desejar.


O problema central da peça é o modo como a narrativa se dá em cena. A direção de Cibele Forjaz e de Wagner Antônio parece ter se preocupado mais em descrever o “Homem Elefante”, apenas contando a sua história infelizmente. É muito pouco. No fim do século XIX, no auge do racionalismo e em plena Inglaterra vitoriana, um homem deformado é exposto em feiras de horror, depois levado para tratamento em hospital e, por fim, aos salões mais respeitados do império onde se tornou amigo de pessoas célebres. O jeito como John Merrick atravessou o sentimento de asco popular e de delírio intelectual, impondo sua presença grotesca diante de sua mente inteligente, ficou em segundo plano nessa montagem que não toca, que não sensibiliza, tampouco promove a reflexão. Além da confusão entre a Londres da Rainha Vitória com a Lapa do Rio de Janeiro, a direção cumpre o texto, colocando Merrick diante de “Don Gionvanni”, de Mozart, mas nem mesmo faz menção acerca da relação entre o homem que a todos conquistava e aquele que em todos causava ojeriza, e às consequências significativas disso para o público de lá e para o de hoje. Dessa forma, estando a peça fria em seu palco duplo (mas ainda distante), resta ao espectador olhar o relógio e esperar o tempo passar, vendo o protagonista envelhecer e a história, meramente curiosa, terminar.

Há bons momentos no trabalho de Daniel Carvalho Faria (Ross) e no de Regina França (Atriz), mas a superficialidade com que os quadros estão construídos não lhes possibilita a manutenção dos pontos altos. As marcas estão visíveis, as reações estão previamente apresentadas, o ritmo permanece linear em todas as cenas. Davi de Carvalho apresenta o personagem Doutor Treves com vislumbres de inexplicada ardilosidade, não permitindo que a audiência invada o íntimo de seu papel e descubra as camadas que devem haver ali. Vandré Silveira tem apenas a cena final para tudo o que não pode mostrar até então, mas infelizmente é tarde demais para uma bela imagem.

O figurino de Valentina Soares nem contextualiza os personagens e a situação, nem enche de beleza o espetáculo. Em troca do período vitoriano, vê-se um vestuário duro em que as roupas parecem ser maiores ou menores que os atores que as vestem. Falta acabamento em todas as peças, principalmente no vestido da Atriz. Falta ainda uma cobertura sobre as muitas tatuagens do ator que interpreta John Merrick. O cenário de Aurora dos Campos é o melhor elemento em “O Homem Elefante”. Ao opor o vermelho e o azul, a produção pode sugerir dois campos: o do espetáculo e o da ciência, o do ultrarromantismo de Goethe e o racionalismo de Kant, o Merrick que serve às emoções e aquele que serve à intelectualidade. Situar a plateia no meio do caminho entre essas duas opções é outro aspecto positivo, porque permite refletir, diferente do que se pensava no fim do século XIX, sobre se é mesmo preciso (e possível) escolher entre um dos lados. A trilha sonora de Dr Morris tem positiva participação principalmente na cena final.

Embora nem sempre admita, de um modo geral, o cidadão ainda tem asco do mendigo, prefere não tocar pessoas de algum jeito deformadas, tem problemas com as imagens que são diferentes daquelas aceitas pela maioria. Essa montagem de “O Homem Elefante”, ao reduzir-se à função de apenas contar a história de Merrick, perde a oportunidade de contar a história pessoal das chagas da personalidade de cada um e da sociedade. Uma imensa pena!

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FICHA TÉCNICA
Texto: Bernard Pomerance
Idealização: Cia Aberta
Encenação: Cibele Forjaz e Wagner Antônio
Assistente de direção: Artur Abe
Elenco: Daniel Carvalho Faria, Davi de Carvalho, Regina França e Vandré Silveira
Iluminação: Wagner Antônio
Cenário: Aurora dos Campos
Figurino: Valentina Soares
Direção musical e trilha sonora: Dr Morris
Identidade Visual: Balão de Ensaio
Ilustração: Antonio Sodré Schreiber
Fotografia: Vitor Vieira
Direção de produção: Paulo Mattos
Produção executiva RJ: Tamires Nascimento
Produção executiva SP: Paulo Arcuri
Operação de luz: Lívia Ataíde
Operação de som: Dominique Arantes

quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

Selfie (RJ)

Mateus Solano e Miguel Thiré
Foto: divulgação

Excelente

“Selfie”, em cartaz no Teatro Miguel Falabella, no Méier, é excelente em todos os sentidos. Brilhantemente interpretada por Mateus Solano e por Miguel Thiré, a peça tem valorosa dramaturgia assinada por Daniela OCampo e direção coberta de méritos por Marcos Caruso. Vale a pena assistir ao espetáculo e refletir sobre o tema proposto com tanta sobriedade e inteligência.

Na história, Claudio trabalha conectado com várias pessoas quando decide abandonar todas as redes sociais virtuais estabelecidas e focar-se em uma só criada e mantida por ele cujo nome é MyClaudio (em referência ao ICloud, tecnologia da Apple em que os dados armazenados podem ser compartilhados por vários dispositivos via wi-fi). O problema é que a inicialização do novo sistema não acontece como deveria e Claudio perde tudo o que tinha acumulado em mídia digital em sua vida: fotos, documentos, todos os e-mails, tudo. Desesperado, procura pela mãe e pela namorada em busca de cópias enquanto tenta em vão recuperar as informações perdidas através do conserto da rede planejada. Para nunca mais passar por esse percalço, sua mente brilhante cria então um chip capaz de ser instalado dentro de sua própria cabeça, fazendo com que ela consiga se conectar à internet em alta velocidade. Nasce, assim, o “Connected Man”, a versão super informada (e informatizada) de Cláudio. Escrito por Daniela OCampo, o texto apresenta o protagonista e os demais personagens através de situações-problema dispostas em uma ordem crescente, virtuosamente organizadas em direção ao ápice como nos melhores e mais clássicos roteiros do cinema americano. O resultado é que o público facilmente se identifica com o enredo e frui a história com interesse. Excelente.

Se, no âmbito da dramaturgia, “Selfie” fala sobre o modo como a tecnologia pode distanciar o homem de si próprio, a encenação de Marcos Caruso age centrando a narrativa no homem e no que ele pode oferecer para o teatro. Não há projeções, não há cenário e o figurino não se modifica ao longo da peça. Com a ajuda do desenho de iluminação de Felipe Lourenço e com a direção musical e a trilha sonora original de Lincoln Vargas, toda a história é contada por Mateus Solano e Miguel Thiré na excelência de seus trabalhos corporais. Os gestos são limpíssimos, precisos na expressão dos detalhes. O olhar e o tom de voz são claros, hábeis em construir os diversos níveis de cada ponto da narrativa. Na meritosa de direção de Caruso, os movimentos criam a poética de cada cena, sem perder-se no desafio alcançado de unir momentos cômicos, reflexões mais profundas e beleza estética.

De um lado as agruras de um herói que atravessa momentos difíceis, o sucesso e a derrocada. De outro, a graça e a agilidade essencial na apresentação de diversos tipos: a mãe, o amigo, a namorada, o velho e a criança, entre outros. Mateus Solano e Miguel Thiré, que já estiveram juntos em um projeto não menos cheio de valor - a peça “Dois para viagem”, em 2008 - dão a ver trabalhos de interpretação de primeira grandeza. Com o corpo e a voz alinhados na articulação da dramaturgia, ambos atravessam o espaço e o tempo da encenação com pontualidade, segurança, carisma e muita graça.

Idealizado por Solano, Thiré e Carlos Grun, “Selfie” começa com uma cena em que dois macacos estão em uma jaula no zoológico. Um deles rouba a câmera fotográfica de um visitante e faz uma selfie (um autorretrato), gerando uma polêmica sobre quem detém os direitos de imagem da fotografia: o dono da câmera ou o macaco? Mantendo-se longe de qualquer moralismo que possa apresentar regras de comportamento em relação ao uso da internet, distante de uma possível superficialidade na ideia de que “antigamente era melhor”, o espetáculo “Selfie” questiona os problemas da contemporaneidade sem encerrar qualquer discussão. Nisso, celebra o tema complexo cada vez mais essencial nas relações de hoje em dia. Por tudo isso, mas também pela forma como o teatro se apresenta em sua máxima potência, essa produção merece o sucesso que tem feito e que ainda há de aumentar.

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FICHA TÉCNICA
Idealização: Carlos Grun, Mateus Solano e Miguel Thiré
Texto: Daniela Ocampo
Direção: Marcos Caruso

Elenco e personagens:
Mateus Solano: Claudio
Miguel Thiré: Paulista, o amigo técnico / Solange, a mãe / Amanda, a namorada / Álamo, o amigo maconheiro / o Empresário / Suzana Souza, a apresentadora de TV / o Barman / a Mulher do Bar / o Deputado / o Menino / Inocêncio, o velho (personagens por ordem de entrada em cena)

Figurinos: Sol Azulay
Desenho de Luz: Felipe Lourenço
Direção Musical e Trilha Sonora: Lincoln Vargas
Preparação Corporal: Arlindo Teixeira
Fotos: Sergio Baia
Design Gráfico: Raquel Alvarenga
Produção: Carlos Grun - Bem Legal Produções
Assessoria de imprensa: João Pontes e Stella Stephany - JSPontes Comunicação

terça-feira, 13 de janeiro de 2015

Perdas e Ganhos (RJ)

Foto: divulgação

Nicette Bruno em cena

Abraço à família Bruno Goulart

O maior mérito de “Perdas e Ganhos” é o modo como a direção de Beth Goulart constrói o espetáculo, tirando bom proveito do que se sabe da atriz Nicette Bruno fora dos palcos. A carreira brilhante, a constituição da família e a recente viuvez pelo falecimento de Paulo Goulart (1933-2014), seu marido por mais de cinquenta anos, são fatos públicos da vida pessoal de dona Nicette dos quais o espectador não consegue se desvencilhar ao longo da apresentação do texto em que se adapta o livro homônimo de Lya Luft. O efeito é positivo porque o sentido da dramaturgia se estabelece com mais força. Em cartaz no Teatro Leblon, o espetáculo tem ainda belíssimo cenário de Ronald Teixeira e trilha sonora de Alfredo Sertã.

Lançado em 2003, o livro “Perdas e Ganhos” é uma reflexão da escritora gaúcha Lya Luft sobre o desafio do envelhecimento da mulher e vários temas nesse entorno. Adaptado por Beth Goulart, o texto é dito em primeira pessoa em momentos preenchidos por grande serenidade, viabilizando bem mensagens que visam ajudar o homem a atravessar melhor o caminho de sua existência. A dramaturgia é ainda intercalada por três cenas ficcionais, em que se revelam personagens do livro de contos “O silêncio dos amantes”, também de Luft. Publicado em 2008, a obra reúne vinte histórias em que a dor surge como elemento que dá consistência para as relações. Nesses momentos, Nicette interpreta a mãe que perde o filho (do conto “A pedra da Bruxa”), a dona de casa submissa que se descobre sexualmente e a mulher traída que dá a volta por cima (“O silêncio dos amantes”).

Ao contrário do que acontece normalmente, em “Perdas e Ganhos”, a peça começa no aviso de desligar os celulares. A voz de Paulo Goulart, que avisa que o espetáculo é um “encontro de família”, é saudada pelo público com um aplauso ao ator recentemente falecido. Em seguida, vinda de dentro do cenário luminoso de Ronald Teixeira, entra Nicette Bruno em seu primeiro monólogo. A conexão entre a intérprete e as personagens é plena, com a primeira valorizando bastante o texto de Lya Luft. Não se pode deixar de observar a potente sintetização de elementos de dentro e de fora da cena que acontece nesse espetáculo, tornando o momento da audiência em um segundo particular além de especialmente único.

De Alfredo Sertã, a trilha sonora, da qual fazem parte três canções compostas por Nicette Bruno, acerta ao fugir do melodrama, atravessando a pantanosa estética da autoajuda em direção a algo cuja complexidade faça melhor para a arte. No mesmo sentido, o cenário potente de Ronald Teixeira, em sua economia, registra a beleza das palavras do texto no tom dado pela direção e pela atriz. Como sempre, deve-se fazer positiva menção às projeções de Renato e de Rico Vilarouca e ao desenho de luz de Maneco Quinderé. Ocupando um quarto de tempo da encenação, a apresentação do curta-metragem “O anjo” sobra.

“Perdas e Ganhos” trata da capacidade do homem em carregar seu passado, da importância de aprender a se desfazer de lembranças para se adquirir novas vivências e avançar. O espetáculo fala ainda sobre a beleza da família e é uma celebração à força que se deseja àqueles que perderam seus entes queridos. Sobretudo, é uma oportunidade de aplauso à família Bruno Goulart. 

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FICHA TÉCNICA
Texto: Lya Luft
Adaptação e Direção: Beth Goulart
Assistente de Direção: Ana Paula Bouzas
Interpretação: Nicette Bruno
Cenário: Ronald Teixeira
Iluminação: Maneco Quinderé
Preparação Vocal: Rose Gonçalves
Trilha Sonora: Alfredo Sertã
Programação Visual: Studio C - Carol Vasconcellos
Assessoria de Imprensa Nacional: Pierina Morais Comunicação
Fotografia Programa: Nana Moraes
Direção e Realização das Peças Audiovisuais: Rodrigo Benatti e Raquel Couto
Coordenação Geral de Produção / Supervisão: Pierina Ferreira de Morais
Direção de Produção: Amora Xavier
Produção Executiva: Manoela Reis