Foto: Mariano Czarnobai / PMPA
Ecossistema
Embora saibamos todos que tudo pode ser transformado em objeto artístico e que a expressão não tem limites, nem quanto a forma, nem quanto a conteúdo, não é difícil acordar que há um jeito de fazer determinadas coisas que contribuem mais para o projeto do que outro. Assim, Plínio Marcos tem muitas formas de ser montado, mas garanto que há uma em que os sentidos investidos pelo autor ganham plenitude suficiente para se estabelecer nas suas relações. Tratamos aqui do Realismo Naturalista.
Os personagens são vistos como conseqüência do meio em que vivem. O meio é o protagonista, aquele que é responsável por todos os acontecimentos, a única causa e o único fim. Não há heróis, nem bandidos, nem mocinhas e nem vilões. Tudo e todos são considerados a partir do lugar onde estão, ou seja, não há nem certo, nem errado, mas o sufocamento, a prisão, a fervura. Plínio Marcos escreve todos os seus textos utilizando esse universo estético, esse ambiente natural, animalesco, selvagem, em que o instinto determina as ações muito mais do que a consciência. O realismo naturalista é o contrário do realismo psicológico: o primeiro olha de dentro pra fora, enquanto o segundo vê de fora para dentro.
Dirigida por Pedro Granato, a montagem de Navalha na carne que participa do 17º Porto Alegre em Cena acerta o alvo quando coloca o público próximo e ao redor do espaço cênico. Não há para onde fugir: o espectador é obrigado a olhar e a ouvir o que está acontecendo sem a possibilidade de sair antes. É tudo muito “na cara” e desviar o olhar é um gesto que causa constrangimento, nesse ambiente do qual quem vê também participa. Em frente, está a carne aberta, sangrenta, dilacerada. A alma humana está ao ponto de não ser humana. ”Somos gente?”- pergunta, aliás, Plínio Marcos através de Neusa Sueli. O sexo, a higiene e a alimentação são feitas sem cuidados racionais. A racionalidade ficou do lado de fora: dentro, há o instinto, as coisas feitas sem pensar.
Neusa Sueli é uma prostituta que entrega todo o seu dinheiro para Vado, seu macho. Veludo é um homossexual que rouba o dinheiro para dar a um outro menino, seu macho. Vado rouba, bate, come e dorme sem pensar no amanhã, como também não o fazem os outros dois.
Plínio Marcos não é imoral, ele é amoral.A mesma Neusa Sueli que beija Vado, minutos depois, irá bater nele. A inconstância é o parâmetro, porque todas as ações são tomadas sem reflexão. E são excelentes os três atores nessas construções. Gero Camilo anda de patins e mistura inglês com espanhol sem muito saber quando e o porquê. O som das palavras lhe chama a atenção e ele as repete. Gustavo Machado e Paula Cohen são fortes e não ficam abaixo da agilidade de Camilo. No entanto, neles se encontra um aspecto em que a direção deixa a desejar.
Por vezes, o espectador sente pena de Neusa Sueli diante das ações de Vado. Há uma forte tendência do espetáculo em situar ela como protagonista, correndo o risco de se tornar um melodrama. É difícil de reconhecer a maldade de Neusa quando ela acusa Veludo de roubo. Ou a sensibilidade de Vado quando ele oferece a Veludo algumas tragadas no cigarro. Já em Veludo, que não é coadjuvante, é possível ver o equilíbrio entre as ações: vê-se o roubo de um lado e, de outro, a desculpa dele. Afinal, sem dinheiro, ele jamais teria tido uma noite de prazer com seu homem. Nesse personagem, acertadamente, o bem e o mal se neutralizam.
No realismo naturalista, o contexto situacional é visto como um ecossistema em que os organismos agem pela sua sobrevivência. EmNavalha na carne, um come o outro, porque assim é a lei. Dessa forma, já era nos anos sessenta quando foi lançado. Assim continua sendo. Cabe aos leitores desse texto tão magnífico e aos expectadores desse ótimo espetáculo gerenciarem os diversos níveis e fruírem a experiência em suas próprias vidas.
* Texto escrito em setembro de 2010 por ocasião do 17º Porto Alegre em Cena.
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