quarta-feira, 28 de outubro de 2015

Talk Radio (RJ)



Foto: divulgação

Leonardo Franco


Novo espetáculo de Maria Maya fala sobre o poder da comunicação

“Talk Radio” é o novo espetáculo dirigido por Maria Maya. A peça é a versão brasileira do texto do ator e dramaturgo norte-americano Eric Bogosian, escrito em 1987 e que estreou na Broadway no mesmo ano e, com mais sucesso, vinte anos depois. Por vários motivos, é possível acreditar que o momento atual seja o melhor para a temática abordada no enredo. Na narrativa, o apresentador de rádio Barry Champlain dá voz para vários ouvintes, tecendo reflexões acerca da sociedade atual. Com ótimos trabalhos de interpretação de todo o elenco, a montagem estreou no último dia 23 de outubro com Leonardo Franco e Bernardo Mendes nos papéis principais ao lado de Stela Maria Rodriygues, Alexandre Varella, Marcelo Aquino, Mariana Consoli e Raul Franco. Em cartaz no Solar de Botafogo até 20 de dezembro, eis uma produção que vale a pena ver.

Escrito há quase trinta anos, texto de Eric Bogosian é profético
Na história, o programa de rádio “Conversas da Noite”, apresentado pelo personagem Barry Champlain, passa a ser transmitido de Cleveland, no nordeste dos Estados Unidos, para todo o país. Ao longo de algumas horas diárias, ouvintes telefonam para participar, colaborando com suas visões acerca de temas sugeridos pelo apresentador. O mosaico de figuras diferentes revela a complexa identidade dos participantes: seus posicionamentos políticos e sociais, suas visões de mundo e sobre si mesmos, sonhos, frustrações, medos e crenças. Uma noite, o jovem Kent conta ao vivo que sua namorada parece ter morrido de overdose, mas Champlain não lhe dá atenção. O caso gera uma comoção entre os ouvintes, o que exige de Barry um posicionamento diferente. Disso, mas também de várias outras participações, surgem algumas reflexões sobre o poder da mídia.

De início, uma análise mais profunda sobre “Talk Radio”, que fale melhor sobre a importância desse texto para a contemporaneidade, precisa acontecer ao lado de três outras reflexões. A primeira delas é sobre 30 de outubro de 1938 quando Orson Welles dramatizou na rádio CBS o romance “A guerra dos mundos”, de H. G. Wells, publicado quarenta anos antes. Sem marcas suficientes que informassem os ouvintes de que se tratava de uma ficção, o programa veiculado na véspera do dia das bruxas causou verdadeiro pânico em várias cidades norte-americanas. A história falava da invasão de marcianos à Terra, unindo entrevistas e apresentando dados que foram ouvidos por seis milhões de pessoas. Tumulto, fugas em massa, incontáveis paralisações marcaram o acontecimento e nutriram reflexões sobre o poder da mídia ao longo do século XX.

As publicações dos filósofos da Escola de Frankfurt, principalmente depois do fim da Segunda Guerra, incentivaram um pensamento crítico em relação à cultura de massa, à indústria cultural e às questões relativas ao uso do poder por meio da arte. De modo muito interessante, o filme “A montanha dos sete abutres”, de 1951, dirigido por Billy Wilder, reflete a potencialidade da mídia em criar fatos e não apenas divulgá-los.

A terceira reflexão que pode amparar um pensamento mais relevante sobre “Talk Radio” diz respeito ao modo como a timeline do Facebook deu acesso a milhões de vozes acerca de qualquer tipo de assunto nos últimos anos. No texto de Bogosian, de fim da década de 80, a participação dos radiouvintes expondo suas intimidades, mas também seus posicionamentos é quase uma profecia sobre a contemporaneidade. A força dos meios de comunicação, a capacidade deles de estabelecer fatos sociais e sua potencialidade advinda de um sistema de participação em rede são aspectos indispensáveis da abordagem dessa peça agora dirigida por Maria Maya.

Ponto positivo e desafio da direção de Maria Maya

O ritmo da narrativa é a única questão menos positiva da direção de Maria Maya para “Talk Radio” e isso em função do modo como os signos do espetáculo se articulam ao longo da encenação. A cena final, o último monólogo de Barry Champlain, revela todo o pensamento visionário de Eric Bogosian e que é, como se disse anteriormente, aquilo capaz de garantir o lugar de relevância dessa dramaturgia. O problema é que essa cena acontece no mesmo nível que todas as anteriores de forma que se perde aí a possibilidade de estiramento de alguma tensão. A ausência do colorido, o jogo de evolução por meio do qual os atores interpretam os vários ouvintes e a valorização da luz e da sombra como único elemento capaz de enquadrar esses personagens fica linear demais. E cansa. Esvai-se a possibilidade de sugerir de um modo mais claro uma reflexão sobre o que se vive aqui e agora.

Apesar dessa questão, reconhece-se que essa montagem de “Talk Radio” é um belo espetáculo. Como aconteceu em “Adorável Garoto”, de Nicky Silver, há que se aplaudir a habilidade da direção de Maria Maya em viabilizar um conjunto de ótimas interpretações, pois, de novo, só há bons trabalhos no conjunto e em cada parte. Isso é um mérito.

Em conjunto e em cada parte, elenco apresenta ótimo trabalho
Os atores Raul Franco e principalmente Mariana Consoli apresentam ótimas contribuições quanto à interpretação dos diferentes ouvintes, garantindo o retrato da complexidade de seres tão diversos. Alexandre Varella (o executivo Dan) e Stela Maria Rodriygues (a assistente Linda), que também interpretam participantes do programa, desempenham bem a tarefa de apresentar as estruturas mais sólidas por meio das quais esse mar de personagens menores passará. No entanto, é em Bernardo Mendes e em Leonardo Franco que se encontram os pontos mais altos dessa versão de “Talk Radio”. Eles interpretam os protagonistas Barry Champlain e o ouvinte Kent de maneira sensual e excêntrica respectivamente, mas sem abusos. São esses aspectos aqueles capazes de opor e, de alguma forma, de igualar as duas figuras: ambos rebeldes e reacionários em suas personalidades tão próximas do real. Um destacável conjunto de elenco.

Sem destaque no que diz respeito ao figurino de Luana de Sá, ao cenário de José Dias e a trilha sonora de João Paulo Mendonça, “Talk Radio” talvez reforce assim o compromisso da montagem em valorizar principalmente a voz dos personagens. É através dela, afinal, que o programa “Conversas da Noite” se faz e move a narrativa. O excelente desenho de luz de Adriana Ortiz, principalmente na cena final, colabora essencialmente com o espetáculo como já se destacou.

Eis aqui um espetáculo capaz de fazer pensar sobre o aqui e agora em que o elenco e a direção se destacam junto ao texto com força elogiável. Parabéns!

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FICHA TÉCNICA
Texto – Eric Bogosian
Direção – Maria Maya
Tradução – Leonardo Franco

Elenco - Personagem
LEONARDO FRANCO como Barry Champlain

ALEXANDRE VARELLA – Dan, Ouvintes
BERNARDO MENDES - Kent
MARCELO AQUINO – Stu, Ouvintes
MARIANA CONSOLI - Ouvintes
RAUL FRANCO - Ouvintes
STELA MARIA RODRIYGUES - Linda

Assistência de Direção – Claudia Ricart
Cenografia – José Dias
Figurinos – Luana de Sá
Produtor Musical – João Paulo Mendonça
Iluminação – Adriana Ortiz
Programação Visual – Mayra Pereira
Visagismo – Marina Beltrão
Preparação Vocal: Verônica Machado
Direção de Movimento: Cynthia Reis
Produção Executiva e Administração – Maria Maria Griffith
Direção de Produção – Leonardo Franco
Realização – LEO FRANCO PRODUÇÕES E ENTRETENIMENTO & CENTRO CULTURAL SOLAR DE BOTAFOGO
Assessoria de Imprensa: JSPontes Comunicação – João Pontes e Stella Stephany


Cenas de um casamento (RJ)


Foto: divulgação

Heitor Martinez e Juliana Martins


Frustrante adaptação de Bergman para teatro


“Cenas de um casamento” estreou no último dia 16 de outubro com muitos problemas estruturais. A peça é uma adaptação da série de TV escrita e dirigida pelo cineasta sueco Ingmar Bergman (1918-2007) produzida em 1973. Com adaptação de Maria Adelaide Amaral e com direção de Bruce Gomlevsky, a montagem é capaz de frustrar quem procura uma comédia romântica motivado pelo título assim como aqueles que se interessam pela obra bergmaniana. No palco, Juliana Martins e Heitor Martinez interpretam com dificuldades os personagens Marianne e Johan, cujo casamento é o tema da história. A produção está em cartaz no Teatro Ipanema, onde fica até 15 de novembro.

Excelente série de TV de Ingmar Bergman
Em uma célebre entrevista sobre “Cenas de um casamento”, o diretor Ingmar Bergman revelava que a série era sobre a incapacidade das pessoas de ler o seu próprio interior. Ao longo de seis episódios, o processo de filmagem trouxera à superfície o modo como os personagens Marianne e Johan se debatiam dentro de si mesmos, perdidos entre instintos desconhecidos, como a agressividade por exemplo. Além disso, o fato notório do aumento do número de divórcios na Suécia durante a exibição na TV também revelava que essa não se tratava de uma comédia de boulevard. Para Bergman, que comentava acerca dessas separações nessa mesma entrevista, esse não era um sinal negativo, mas talvez fosse uma pista de que as pessoas estivessem procurando a si próprias enfim.

No primeiro episódio, “Inocência e Pânico”, Marianne e Johan estão comemorando dez anos de um casamento feliz. Ela é advogada de família e ele é um professor universitário. Nessa noite, eles recebem Katarina e Peter cujos horrores que um diz para o outro deixam ver a podridão em que o casamento deles se encontra. Esse jogo de espelhos através do qual Marianne e Johan veem seu futuro - mas não o enxergam - é o ponto de partida fundamental para tudo o que virá depois. No episódio seguinte, “A arte de empurrar os problemas para debaixo do tapete”, em momentos separados, Marianne e Johan têm novas oportunidades de vislumbrar o que acontecerá com eles. Em seus locais de trabalho, ela se encontra com uma cliente e ele com uma colega. Ambos os encontros talvez sejam convites para eles refletirem sobre suas próprias individualidades. Notar que, de maneira diferente, essa possível proposta é aceita por ambos faz toda a diferença na audiência da série.

Os episódios “Paula”, “O vale de lágrimas”, “Os analfabetos” e “No meio da noite em uma casa escura em algum lugar” vêm na sequência. Neles, sempre com mesma força e enorme capacidade de estimular uma reflexão sobre a complexidade do ser humano, se desenvolvem as alterações no relacionamento entre Marianne e Johan. Interpretados por Liv Ullmann (que recém havia se separado do diretor) e por Erland Josephson, os personagens se reencontraram em “Saraband”, de 2003, o último filme de Ingmar Bergman. Os personagens Katarina e Peter são protagonistas de “Da vida das marionetes”, filme de 1980, adaptado para o teatro com direção de Guilherme Leme, esse um dos melhores espetáculos de 2014 no Rio de Janeiro.

Cortado em um filme de 167 minutos, “Cenas de um casamento” venceu o Globo de Ouro de Melhor Filme Estrangeiro de 1975. A série em seu tamanho original, com 299 minutos, foi lançada no Brasil, em DVD, em 2006. Vale a pena ver!

Versão dirigida por Bruce Gomlevsky é cheia de problemas
Na adaptação de Maria Adelaide Amaral, que chega ao público através da direção de Bruce Gomlevsky, Marianne e Johan aparecem vencidos pela força de seus arquétipos de esposa e de marido discutindo a relação. No início da peça, a cena em que Marianne liga para sua família a fim de cancelar um compromisso para poder ficar mais perto de Johan e de suas filhas é retrato de uma adaptação superficial do original. Quem assiste à série sabe que ela está em uma luta desesperada contra a sensação de que seu casamento está acabando. Nesse sentido, resguardado o direito do teatro de atualizar livremente a série, fica aí um entre vários aspectos capazes de revelar a pobreza dessa versão diante da primeira.

Não há um único momento na encenação em que qualquer dos personagens seja visto a partir de sua solidão, de sua individualidade, nem de sua viagem interior. Nesse sentido, a peça reproduz um resumo parcial da história, mas não dá conta dos planos fechados, da intimidade nem de uma relação entre palco e plateia que seja similar a que acontece entre o telespectador e a série de TV. O ponto alto do original, em que o Johan agride Marianne selvagemente (ele que aparece tão comedido e ponderado no início), se tornou, no palco do teatro, um sutil safanão quase sem importância.

Juliana Martins (Marianne) se movimenta pela cena durante os noventa minutos da duração do espetáculo como se lutasse ferozmente contra um tédio que não deveria haver ali. Em Heitor Martinez, não se veem as nuances através das quais se contemplariam as justificativas maiores de Bergman contra as feministas na ocasião do lançamento da obra. Ambos pairam desamparados pelo desenho de luz pouco colaborativo de Elisa Tandeta e principalmente pelo péssimo cenário de Pati Faedo. Já diante de personagens originalmente difíceis e em um corte ainda mais desafiador, Martins e Martinez têm aqui barreiras a vencer quase instransponíveis. De fato, não as venceram na estreia.

O péssimo cenário de Pati Faedo
De todos, o pior elemento da montagem é o cenário de Pati Faedo. Sem qualquer relação nem com Bergman, nem com os personagens, Marianne e Johan aparecem em meio a uma espécie de Jogo de Tetris, encaixando peças enquanto dizem as falas dos diálogos. O feito, além de impor à encenação uma exigência quanto à ação que só perturba a narrativa, oferece ao público um problema a mais: entender a intenção da cenógrafa. Os méritos do figurino de Ticiana Passos se devem ao fato de que o guarda-roupa da peça deixa claro, com beleza e elegância, que o único problema do espectador de “Cenas de um casamento” deve ser entender a si próprio.

Essa versão de “Cenas de um casamento” frustra os incautos que pensam ir assistir a uma comédia sobre maridos e esposas, porque o texto, mesmo cortado, revela uma certa complexidade que nada tem a ver com o gênero comercial. Também entedia aqueles interessados em (re)encontrar Marianne e Johan e toda a força dos personagens bergmanianos. No meio do caminho, a peça estreia inacabada com problemas estruturais que talvez não se resolvam logo.


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Ficha Técnica

Autor: Ingmar Bergman

Tradução: Maria Adelaide Amaral

Direção: Bruce Gomlevsky

Elenco: Juliana Martins e Heitor Martinez

Trilha Original: Alex Fonseca

Iluminação: Elisa Tandeta

Cenografia: Pati Faedo

Figurino: Ticiana Passos

Assistente de direção: Luiza Maldonado

Projeto gráfico: Thiago Ristow

Agente literário: Cinthya Graber

Prestação de contas: Letícia Napole

Produção executiva: Ana Casalli

Direção de produção: Fábio Amaral

Produtores associados: Anna Magdalena, Fábio Amaral, Fabricio Chianello e Juliana Martins

Idealização: Juliana Martins

Realização: Bubu Produções Artísticas e Ymbu Entretenimento

Assessoria de imprensa: Minas de Ideias

Ludwig/2 (RJ)


Foto: Jackeline Nigri


Manoel Madeira




Bom espetáculo celebra os 20 anos da Artesanal Cia. de Teatro



“Ludwig/2” esteve em cartaz durante o mês de setembro no Mezanino do Espaço SESC Copacabana. O espetáculo foi concebido e produzido em uma residência artística dos diretores Henrique Gonçalves e Gustavo Bicalho na Alemanha. A peça narra a história do Rei Ludwig II (1845-1886) da Baviera (ou Bavária), grande incentivador das artes e uma das personagens mais fundamentais do século XIX. Em ótimos trabalhos, o elenco é formado por Manoel Madeira, ao lado de Suzana Castelo e do ator alemão Andreas Mayer. A montagem tem ainda excelente colaboração de Rodrigo Belay, na iluminação; e de Daniel Belquer, na direção musical e no video mapping. Parte da programação de aniversário de vinte anos da Artesanal Cia de Teatro, eis aí uma produção que merece novas temporadas.

Ludwig II e o século XIX
O retrato de Ludwig II é atravessado pelas questões mais relevantes na história da Europa no século XIX. Sua coroação, em 1864, aconteceu dois anos depois da ascensão de Otto von Bismarck à chancelaria da Prússia, país que se tornaria líder da unificação alemã. Gradativamente voltando suas atenções para a produção industrial, a região se reposicionava a partir do aumento do poderio da Inglaterra, onde a Rainha Vitória reinava desde 1837. Situada entre a Prússia, a Áustria e a França, a Baviera perigosamente se alinhava aos dois últimos, o lado militarmente mais fraco entre as opções. Em paradoxo, a unificação da Alemanha, em 1871, selou um dos momentos mais interessantes da região. Como reino anexado e apesar do poder político reduzido, gozou de estabilidade financeira e grande desenvolvimento social no período.

A morte de Ludwig II ainda é um mistério. O que se sabe é que, preferindo uma vida cada vez mais isolada de suas responsabilidades, a administração do reino passou a ser um problema maior com o passar do tempo. A construção onerosa de castelos enormes, como o Neuschwanstein e o Palácio de Herrenchiemsee, foram um problema para a corte. O grosso investimento em um estilo de vida luxuoso, que o relacionava aos luíses franceses, ia na contracorrente do século. Assolado em dívidas, tanto particulares quanto públicas, o monarca foi afastado do trono. Internado sob um falso diagnóstico de paranoia, morreu três dias depois de sua deposição, em junho de 1886. Seu corpo foi encontrado no lago raso de Starnberg juntamente com o de seu psiquiatra, Dr. Bernhard von Gudden. A coroa passou para seu irmão mais novo Otto e depois para o tio de ambos, Ludwig III, o último rei da Baviera.

Ludwig II era homossexual, o que se revelou nos seus diários e cartas particulares. O noivado com sua prima Sophie Charlotte (1847-1897) durou menos de nove meses e foi terminado por ele sem motivos claros em outubro de 1867. Menos de um ano depois, ela já estava casada com Ferdinand Philippe, irmão mais novo do Conde d’Eu, esse marido da Princesa Isabel do Brasil. Em suas memórias, estão provas de seus sentimentos por Richard Hornig (1841-1911), chefe da cavalaria, e de sua luta contra sua orientação sexual. Além de sua forte religiosidade católica, pairava o exílio imposto ao primo Arquiduque Ludwig Viktor (1842-1919), célebre travesti expulso da corte em 1866. O estilo de vida solitário, ao qual o Rei Ludwig II parece ter sido condenado, é similar ao de Franz Bonaventura, duque da Baviera, herdeiro atual da coroa do primo de seu bisavô.

A encenação da Artesanal Cia. de Teatro tem contradições
Os méritos da dramaturgia de “Ludwig/2”, assinada pelo diretor Gustavo Bicalho, se concentram no modo como o texto celebra a força da arte na personalidade do Rei da Baviera. Também por esse motivo é estranho notar que Richard Wagner (1813-1883), célebre compositor de quem Ludwig II era ídolo, não aparece na história. Nesse sentido, a melhor parte dos diálogos parece estar em conflito com a situação em que eles aparecem. Em outras palavras, enquanto o espectador se envolve com a complexidade do pensamento dessa figura extremamente profunda, tem diante de si como que um triângulo amoroso não-resolvido. O problema é que, historicamente, Richard Hornig (Andreas Mayer) e Sophie Charlotte (Suzana Castelo) são figuras muito mais desinteressantes. O esforço insólito da dramaturgia em dar a eles mais cor é até relevante sob determinados aspectos.

A princípio inexplicavelmente, a encenação rejeitou toda a estética barroca e medieval que tardiamente Ludwig inseriu na paisagem bávara. Em contrapartida, a direção de Gustavo Bicalho preferiu muito preto, botas e cintos de couro, roupas apertadas e poltrona de madeira com molas expostas. O estilo leather black normalmente encontra algumas referências nos boêmios românticos da primeira metade do século XIX na França (esses que inspiraram a segunda geração do romantismo brasileiro e a onda Emocore do fim século XX e início do XXI). Mas Ludwig II nada tem a ver com isso.

Talvez a aposta tenha sido a de apresentar o universo interior do personagem-título, um célebre mistério de sua figura romântica. No entanto, as respostas para isso se encontram na obra de Richard Wagner cujo pensamento e obra exortavam o estabelecimento de uma arte quase litúrgica. Para ele, grande influência da personalidade de Ludwig II, a arte era lugar onde o homem se encontrava com o sagrado (e a ópera “Lohengrin” é repleta de amostras disso). Por isso, a direção de arte do espetáculo impõe novas barreiras à audiência negativamente.

Os entraves no diálogo entre os vários elementos cênicos de “Ludwig/2” podem ser, por fim, resumidos pela alternância de idiomas durante a encenação. O alemão perfeito, sobretudo com a sonoridade característica da Baviera, dá lugar em vários momentos para o português sem justificativas. A trilha sonora de Daniel Belquer também faz esse tipo de concessão, unindo Wagner à MPB. A impressão negativa é de que os realizadores não acreditaram na força inicial de suas ideias e amoleceram frente às necessidades comerciais.

Manoel Madeira e Daniel Belquer em destaques positivos
“Ludwig/2” tem ótimos trabalhos de interpretação, principalmente de Manoel Madeira, que interpreta o protagonista. O modo como o ator dá conta do solilóquio final, esse de enorme dificuldade, é exultante e merece elogios como todo o seu trabalho. Com relação ao modo como Daniel Belquer alarga o espaço cênico através do investimento na experiência sonora é também excelente. Com vitalidade, Madeira e Belquer recheiam a peça com níveis que apontam para a profundidade do trabalho. No mesmo sentido, age o desenho de luz de Rodrigo Belay.

Apertados em concepções mais contraditórias, os atores Suzana Castelo (Sophie) e Andreas Mayer (Hornig) não tiveram as mesmas possibilidades mais férteis. Assim também os figurinos de Henrique Gonçalves e de Fernanda Sabino e o cenário de Linda Sollacher e de Karlla de Luca infelizmente.

Dentro do que se propõe, esse espetáculo, que marca o aniversário de uma célebre companhia, como a Artesanal, é positivo. Os maiores aplausos, no entanto, são direcionados à capacidade da produção de oferecer reflexões. Além disso, há o mérito de pautar a figura de Ludwig II, tão enigmática e tão fundamental, na programação de teatro carioca. Vida longa ao grupo! Parabéns.


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Ficha técnica

Concepção do Projeto: Gustavo Bicalho

Dramaturgia e texto: Gustavo Bicalho

Tradução: Lilli-Hannah Hoepner e Manoel Madeira

Elenco: Manoel Madeira, Suzana Castelo e Andreas Mayer (ator convidado)

Direção Artística: Gustavo Bicalho, Henrique Gonçalves e Daniel Belquer.

Desenho de Luz: Rodrigo Belay

Cenário: Linda Sollacher e Karlla de Luca

Figurinos e Adereços: Henrique Gonçalves e Fernanda Sabino

Direção Musical e Vídeo Mapping: Daniel Belquer

Programação e Trilha Sonora Adicionais: Caeso

Direção de Movimento: Paulo Mazzoni

Programação Visual: Andrea Batitucci

Fotografias: Nadaine Löes e Henrique Gonçalves

Produção: Gustavo Bicalho, Henrique Gonçalves e Manoel Madeira

quarta-feira, 21 de outubro de 2015

Ou tudo ou nada - O musical (RJ)


Foto: divulgação

Sérgio Menezes, André Dias, Mouhamed Harfouch, Claudio Mendes, Carlos Arruza e Victor Maia



Para assistir seis vezes!


O divertidíssimo “Ou tudo ou nada – O musical” estreou em grande estilo no último dia 10 de outubro. Em cartaz no Theatro Net Rio, em Copacabana, a montagem traz alegria e qualidade para a programação teatral carioca. Trata-se da primeira versão brasileira do musical americano “The Full Monty”, que adaptou para a Broadway o filme britânico homônimo de 1997. Na história, o dinheiro e a possibilidade de fazer algo que realmente seja significativo levam um grupo de seis homens a fazer um show de strip-tease em um clube para mulheres. Mouhamed Harfouch, Claudio Mendes, André Dias, Victor Maia, Carlos Arruza e Sérgio Menezes protagonizam o espetáculo em participações cheias de êxito. Sylvia Massari, Patrícia França, Kakau Gomes e Xande Valois são outros grandes trabalhos em um elenco composto por dezessete atores mais oito músicos. O musical tem versões brasileiras assinadas por Artur Xexéo e ótima direção de Tadeu Aguiar com direção musical de Miguel Briamonte. Eis aí uma comédia para assistir várias vezes.

A versão musical de “The Full Monty”
O filme “The Full Monty” foi lançado em 1997, com roteiro escrito por Simon Beaufoy, o mesmo autor de sucessos como “Quem quer ser um milonário?” e “127 horas”. A produção, dirigida por Peter Cattaneo, concorreu ao Oscar de Melhor Roteiro, Melhor Direção e Melhor Filme, mas só venceu a de Melhor Trilha Sonora. Na ocasião, os autores quase foram processados por plágio pela semelhança com a peça neozelandesa “Ladie’s Night”, de Andrew McCarten e de Stephen Sinclair. Essa teve uma adaptação brasileira chamada de “Os adoráveis sem vergonhas”, com direção de Guilherme Leme, bastante elogiada em 2003 no Rio e em São Paulo. Beaufoy venceu o processo e sua obra foi considerada original.

O musical “The Full Monty” foi a zebra do Tony Award de 2001, a principal premiação do teatro norte-americano. A produção foi indicada a dez categorias, mas não levou uma única estatueta, perdendo quase todas para “The Producers”. Exatamente o mesmo havia acontecido vinte e cinco antes quando “Chicago” também não venceu qualquer das 10 categorias a que fora indicado, perdendo para “A Chorus Line”. Com música composta por David Yazbek e roteiro pelo premiado Terrence McNally (de “O beijo da mulher aranha”), “The Full Monty” fez sucesso pelo mundo. Sobre a temporada de estreia, o crítico Ben Brantley, do The New York Times, disse que “até aqueles que esperam zombar ficarão surpresos com sorrisos que se esgueirarão em suas faces”.

De fato, a narrativa contagia. Os personagens Jerry e Dave estão desempregados há alguns meses quando a história começa. O primeiro corre o risco de perder a guarda do filho Nathan e o segundo a atual esposa. Um dia, eles se espantam ao ver as mulheres da cidade pagando altos ingressos para assistir a um show de streap-tease masculino em um clube só para elas. Então, surge entre eles a ideia de apresentar um show cujo diferencial seria, em primeiro lugar, o caráter corriqueiro de seus corpos e, depois, a proposta de, para além do convencional, realmente “mostrar tudo”. Unem-se aos dois mais quatro homens em situações parecidas: o depressivo Malcoln, o metódico Harold, o promissor Jegue e o bem-dotado Ethan. A ex-vedete Jeanette ensaia os rapazes enquanto o grupo vivencia diversas situações que antecedem a possibilidade de ficarem completamente nus em público.

Entre vários os méritos do roteiro original - e que permanecem na adaptação de Artur Xexéo -, está a potencialidade do texto de quebrar paradigmas. Um a um, todos os personagens, protagonistas e coadjuvantes, se apresentam inicialmente a partir de marcas superficiais de si próprios para então revelarem novas facetas de suas personalidades. Se a cena inicial, em que Jerry se encontra com o streapper Bobby, faz o público considerá-lo preconceituoso, logo em seguida essa imagem será substituída. Em outros movimentos similares, a plateia se encontrará refletindo em várias oportunidades enquanto se diverte, se emociona e anseia pelo fim.

A vitalidade da encenação de Tadeu Aguiar
A direção de Tadeu Aguiar, assistido por Flávia Rinaldi e por Claire Nativel, apresenta belíssimo trabalho. As cenas estão bem articuladas, os atores se movimentam no palco em desenhos limpos e a coreografia de Alan Rezende ocupa o espaço com graça, equilíbrio e força. Sobretudo, emana do palco o envolvimento do elenco como um todo, o que é o requisito fundamental para o sucesso dessa narrativa. Se a dramaturgia é sobre um grupo de pessoas que se une apesar das dificuldades para coletivamente resolver um problema, tudo isso também se sente a partir da encenação.

O carismático Mouhamed Harfouch ganha a audiência facilmente em sua interpretação de Jerry, o líder do grupo. Entre vários aspectos, talvez o mais positivo seja a manutenção da dúvida a respeito dos reais sentimentos de seu personagem quanto à sua ex-esposa Pam (Samantha Caracante). Claudio Mendes, um dos melhores trabalhos do elenco, merece elogios por afastar seu personagem de uma tola nova versão de Sancho Pança. Seu Dave é íntegro, complexo e real, felizmente longe de estereótipos. Com menores oportunidades, Carlos Arruza (Harold) e Sérgio Menezes (Jegue), mas principalmente André Dias (Malcolm) e Victor Maia (Ethan) também merecem elogios pelos mesmos motivos. A dosagem da expressão do universo interior de cada personagem é a principal responsável pela atenção do público no desdobrar da história.

Os outros personagens de “Ou tudo ou nada” são as estruturas do caminho que será trilhado pelos protagonistas. Nesse sentido, o mérito da representação deles nessa montagem é outro. Kakau Gomes (Geórgia, esposa de Dave) e Patrícia França (Vicki, a esposa de Harold) e principalmente Sylvia Massari (Jeanette, a ex-vedete) e Xande Valois (Nathan, o filho de Jerry) se destacam pela forma como suas participações nas cenas são cheias de vitalidade. As palavras não são desperdiçadas, as intenções são claras e o interesse se sustenta. Samantha Caracante (Pam), Carol Futuro (Estela), Sara Marques (Susan) e Larissa Landin (Joana) também merecem elogios.

Baixo orçamento e enorme qualidade estética
É verdade que nem todos, no elenco, cantam tão bem quanto André Dias, Victor Maia, Sérgio Menezes, Kakau Gomes e como Patrícia França, mas vale lembrar que a peça não é sobre virtuosismo, mas acerca do que é corriqueiro. Por isso, o visível esforço feito pelo elenco na defesa das canções surge, em “Ou tudo ou nada”, como mais um elemento da narrativa. Cantadas em português, destacam-se as canções “Big Ass Rock”, em que Jerry e Dave se encontram com Malcolm; “Big Black Man”, em que Jegue se apresenta ao grupo; e, em especial “You walk with me”, em que a amizade nascida entre os seis rapazes aparece mais sólida. A direção musical de Miguel Briamonte e o desenho de som de Gabriel D’Angelo e de Bruno Pinho colaboram positivamente.

O cenário de Edward Monteiro faz brilhante participação tanto no que diz respeito ao preenchimento do palco quanto ao movimento da encenação. A peça se passa nos anos 90, em uma cidade cujos moradores viveram boa parte de sua vida trabalhando com aço. Os ambientes, mas também as figuras que habitam esses lugares, surgem como provocadoras desse quadro estético. Por isso, os figurinos de Ney Madeira e de Dani Vidal corroboram para essas questões na vastidão dos detalhes de cada personagem. Com méritos, o desenho de luz é de David Bosboom e de Dani Sanchez.

Produzido por Eduardo Bakr e pela Brainstorming Entretenimento, “Ou tudo ou nada – O musical” é uma produção de baixo orçamento, mas de grande qualidade estética. A montagem, que enaltece o ser humano em suas diferenças, medos, prazeres e de sua força em conquistar o que lhe é necessário, também engrandece a programação de teatro carioca. Valeapeníssima!


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FICHA TÉCNICA - OU TUDO OU NADA

Autores: Terrence McNally (texto) e David Yazbek (música)

Direção: Tadeu Aguiar

Direção musical: Miguel Briamonte
Versão para o português: Artur Xexéo


Elenco:
Mouhamed Harfouch (Jerry)
Claudio Mendes (Dave)
André Dias (Malcolm)
Victor Maia (Ethan)
Carlos Arruza (Harold)
Sérgio Menezes (Jegue)
Xande Valois (Nathan)
Patrícia França (Vicki)
Kacau Gomes (Geórgia)
Sylvia Massari(Jeanette)
Samantha Caracante (Pam)
Carol Futuro (Estela)
Sara Marques (Susan)
Larissa Landin (Joana)
Fabio Bianchini (Bobby/Keno)
Felipe Niemeyer (Teddy)
Gabriel Peregrino (Regis


Duração: 140 minutos

Classificação etária: 10 anos

Cenário: Edward Monteiro

Figurino: Ney Madeira e Dani Vidal

Coreografia: Alan Rezende

Desenho de luz: David Bosboom e Dani Sanchez
Desenho de som: Gabriel D’Angelo e Bruno Pinho

Multimídia: Paulo Severo

Assistente de direção: Flávia Rinaldi

2a. Assistente de direção: Claire Nativel

Assistente de produção: Leandro Giglio

Assistente de direção musical: Daniel Sanches

Orquestração: Harold Wheeler

Arranjos Vocais e incidentais: Ted Sperling

Arranjos para músicas de dança: Zane Mark

Preparador vocal: Mirna Rubim

Design gráfico: Claudia Xavier


Músicos:
Miguel Briamonte, Daniel Sanches – piano

Josias Franco, Ricardo Hulck, Marco Moreira (Chiquinho) – sopros

Marcelo Rezende – guitarra

Leandro Vasques – baixo

Tiago Calderano – bateri


Coordenação de produção: Norma Thiré

Produtor Associado: Brainstorming Entretenimento

Produção geral: Eduardo Bakr

Realização: Estamos Aqui Produções Artísticas