quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

Repetitión (RJ)

Roger Gobeth, Tatianna Trinxet e Alexandre Varella
encenam comédia divertida de Flávio de Souza
Foto: Antônio Garcia

Divertida homenagem aos atores e ao teatro

“Repetitión” é uma ótima comédia encenada por Alexandre Varella, Tatianna Trinxet e por Roger Gobeth e dirigida por Walter Lima Jr. Com dramaturgia de Flávio de Souza, já sucesso na temporada paulista de 1994 e na carioca de 2001, o texto está em cartaz na Sala Multiuso do Espaço SESC Copacabana, zona sul do Rio de Janeiro. Com ótimas interpretações, além de uma narrativa muito bem desenvolvida, a peça vale a pena ser vista pelo ritmo sempre ágil com que a direção leva a cabo a proposta. Divertimento de alta qualidade. 

“Repetitión” quer dizer “ensaio” em francês. No palco, três atores, Dinho (Gobeth), Laura ( Trinxet) e Luis ( Varella), ensaiam uma peça dirigida pelo primeiro. Dinho e Laura são um casal que vivencia o desafio de trabalharem juntos. Luis, o amigo do marido, acompanha constrangido as interrupções no ensaio, ora sendo o “ombro amigo” para um, ora para outro. Para o público, o interessante é identificar o jogo entre a peça e a peça dentro da peça, evidenciar as marcas que dividem uma da outra, tentar adivinhar o desfecho. Walter Lima Jr. conduz a narrativa com elementos bastante simples, explorando bem a profundidade do palco da Sala Multiuso, fazendo com que a sensação onírica de ficção dentro da ficção ganhe contornos admiráveis. Flávio de Souza, a cada nova cena, introduz algo novo, atualizando a peripécia aristotélica com a agilidade contemporânea. Os atores, por seu turno, tornam as concepções em concretude cênica, dando-se a ver ao público enquanto manifestam o texto e a direção. 

Está claro que é um conjunto muito bem afinado e, por isso, não há destaques. Fernanda Mantovani (luz), Elisa Faulhaber (figurino) e Ronald Teixeira (cenário) participam da montagem oferecendo o oxigênio de que esse ritmo fluente necessita positivamente. O diretor pincela ainda a obra com boa direção musical. 

“Repetitión” se utiliza, sim, do tema “relacionamentos” para homenagear o teatro. A direção faz da obra um motivo para entreter o público carioca mais exigente. Ambos conseguem. 


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FICHA TÉCNICA:
Texto: Flávio de Souza
Direção: Walter Lima Jr.

Elenco: Roger Gobeth, Tatianna Trinxet e Alexandre Varella

Direção de movimento: Patrícia Carvalho-Oliveira
Cenário: César Marques
Figurinos: Sol Azulay
Desenho de luz: Fernanda Mantovani
Arte gráfica: Thiago Ristow
Produção executiva: Júnior Godim
Direção de produção: Tatianna Trinxet
Realização ESPAÇO MOVE ENTRETENIMENTO LTDA

terça-feira, 29 de janeiro de 2013

Cucaracha (RJ)

Foto: divulgação

É imprescindível assistir


            “Cucaracha”: eis aí o teatro contemporâneo para além do que tentou descrever Josette Féral, Jean-Pierre Rygaert, Hans Thiesen Lehmann e tantos outros teóricos. Teatro bom para além do que tentou (e tenta) fazer tantos diretores, querendo se desfazer de um bom texto, de um cenário, iluminação e de figurinos bem investigados, incluindo maus cantores e canções em inglês, projeções no fundo do palco e um pretensioso amontoado de frases sem sentido em cenas não lineares. “Cucaracha”, o novo resultado do “casamento” do dramaturgo Jô Bilac com o diretor Vinícius Arneiro, deixa para trás o adjetivo Excelente e propõe uma obra carioca à altura do mineiro “Amores Surdos”, do Grupo Espanca. A Companhia Teatro Independente e sua equipe orgulham a Cidade Maravilhosa e emocionam o público e a classe teatral. É imprescindível assistir, mas, para isso, é preciso dar-lhe espaço para temporadas longas em salas adequadas. Apenas seis semanas no CCBB e um final de semana na Gamboa são um absurdo para um trabalho dessa qualidade. 

Vilma (Júlia Marini) está em coma há oito anos, desacordada em um quarto de hospital. Mirrage (Carolina Pismel) é a enfermeira que cuida da paciente esquecida pelos familiares, apesar de uma fama que ela ainda preserva. Vê-se o tempo passar no tratamento pelo tamanho da barriga de Mirrage que cresce discretamente ao longo de sua gravidez. Exatamente com a perfeição de “Rebu”, outro espetáculo do mesmo grupo, Bilac e Arneiro unem trabalhos diferentes com coerência e coesão, evidenciando talento, estudo e técnica. O formalismo trash do texto (já visto, por exemplo, em “Os Mamutes”) ganha uma encenação exageradamente hermética no positivíssimo (quem disse que críticos de teatro não podem usar absolutos sintéticos?) trabalho de Pismel. O drama (no sentido de contrário ao gênero cômico), bastante raro na obra de Bilac, encontra cor e vida na sensível construção de Marini. Assim, se na dramaturgia, Jô Bilac intercala momentos para chorar e para rir, Vinícius Arneiro, na direção, trabalha com duas concepções opostas de construção de personagem e, com a habilidade de um diretor experiente, apresenta uma bela obra. 

Entende errado o teatro contemporâneo quem pensa que o que o gênero propõe é o abandono da narrativa. O que o alemão Lehmann diz é que, enquanto o teatro dramático apresenta uma história convergente (os elementos redundam), o teatro pós-dramático narra uma história divergente (é da responsabilidade da fruição e não da obra a articulação dos elementos). Trocando em miúdos, “Cucaracha” conta uma história, mas ninguém da plateia poderá fazer afirmações definitivas sobre ela. As duas personagem realmente conversam ou é a imaginação de uma delas? Nesse caso, de qual delas? E, assim, frase por frase, o espectador está localizado, firme e seguro em um lugar confortável (o bom teatro burguês de Jô Bilac), mas com a tarefa desvelar esse lugar (tirar os véus), reconhecê-lo, redescobri-lo, averiguá-lo e, a partir daí, identificar os seus diferentes níveis de profundidade. 

É inegável que o talento de Pismel se dá melhor a ver na cena em que sua personagem narra o recebimento de mensagem ao celular vindo da esposa de seu amante. Gestos extremamente limpos, medidos, sóbrios explodem em um racionalismo cansado no final da peça. Por outro lado, a delicadeza de Marini se espalha pelo todo da encenação, fazendo perfeito contraponto e equilibrando os pontos divergentes desse quadro. Sem pontos baixos, mas repleto de pontos altos, o ápice pode ser a história da viagem de duas amigas ao espaço, a explosão da Terra (Nem as baratas sobreviveram. Cucaracha é "barata"em espanhol. Viria daí o título?) e a partida para o Sol. 

Em nível sonoro-visual, os elementos estéticos estão orquestrados de forma também excelente. Paulo César de Medeiros, Aurora dos Campos e Thanara Schönardie, na concepção de iluminação, cenário e de figurino, expressam cuidado em detalhes, esmero e delicadeza, promovendo motivos para identificar a profundidade não só no texto e na encenação, mas igualmente no que se vê em cena além das atrizes. Com mesmo valor, a sonoplastia de Daniel Belquer. 

“Cucaracha” me faz de lembrar de um crítico de teatro chamado Décio de Almeida Prado. No fim dos anos 60, ele abandonou o ato de fazer críticas de teatro, dizendo que já não se sentia preparado para entender o tipo de teatro que estavam fazendo naquele momento. Se de um lado, eu me sinto pleno na plateia da Cia Teatro Independente, assistindo ao trabalho de pessoas da mesma geração que a minha, por outro lado, penso que o velho Décio, sem talvez entender nada, também se emocionaria e, como eu, aplaudiria de pé. 


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FICHA TÉCNICA

Texto: Jô Bilac
Direção: Viniciús Arneiro
Elenco: Carolina Pismel e Júlia Marini
Cenografia: Aurora dos Campos
Figurinos: Thanara Schönardie
Figurinista assistente: Maria Hermeto
Iluminação: Paulo César Medeiros
Música e Som Cênico: Daniel Belquer
Direção de Produção: Liliana Mont Serrat e Damiana Guimarães
Produção Executiva: Dani Carvalho
Realização: Teatro Independente

sábado, 26 de janeiro de 2013

Tarja Preta (RJ)

Espetáculo é dirigido por Ivan Sugahara
Foto: divulgação

Letícia Isnard e Erico Brás fazem brilhar primeiro texto de Adriana Falcão


            Primeiro texto de Adriana Falcão para o teatro, “Tarja Preta” é um excelente espelho para o “O Belo Indiferente”, de Jean Cocteau. Em ambos, há uma mulher completamente dependente de um homem para viver. No texto surrealista escrito pelo francês à diva Edith Piaf, o homem está silencioso, sentado em uma poltrona, ouvindo, madrugada a dentro, os lamentos de sua mulher. No texto de Falcão, dirigido por Ivan Sugahara, a mulher e seu amigo estão em um fluente e divertido diálogo, falando sobre o ex-marido dela enquanto se entope de remédios, drogas e álcool, a guisa das explicações teóricas que o amigo dá. Nos dois textos, a humana necessidade de compartilhar a vida, dividir os momentos, amar e ser amado. "Tarja Preta" está em cartaz na confortável sala de espetáculos do Centro Cultural da Justiça Federal, na Cinelândia, Rio de Janeiro. 

A peça não começa bem, mas termina excelentemente. A primeira cena, em que os personagens entram bêbados, expõe uma necessidade da dramaturgia de parecer engraçada, leve e despretensiosa, que felizmente é abandonada aos poucos ao longo da narrativa. O ponto positivo da introdução é que, logo na abertura, o público conhece a personagem interpretada por Letícia Isnard e seu insistente e mantido sentimento pelo ex-marido (personagem que não aparece), então já casado com outra mulher. Ainda na introdução, a segunda cena apresenta a protagonista completamente dependente de influentes químicos para sobreviver de alguma forma feliz, justificando bem o título, o mote e a concepção do cenário de Rui Cortez. No entanto, fica-se sem saber quem é, na verdade, o personagem de Érico Brás, bem interpretado, mas mal escrito. Fruto de dois brilhantes trabalhos de interpretação e uma boa direção de Sugahara, o texto de Falcão vence com dificuldade os obstáculos, atingindo felizmente seu melhor momento na cena final. Até lá, como também acontece em Cocteau, vão-se repetições, lamentos, apelações e uma boa dose de exageros. O que não há em “O Belo Indiferente”, mas há em “Tarja Preta”, é um insistente palavrório farmacêutico que, se literariamente é um interessante jogo de palavras, no palco, é um exercício por vezes enfadonho. 

Tanto Isnard como Brás merecem aplausos por destacar, em seus personagens, diversas nuances de suas figuras, que vão desde força e rigidez até sensibilidade e delicadeza. O carisma dos intérpretes resulta em sequências engraçadas e em final sublime (para um dos personagens). A direção de arte de Rui Cortez, redundando o palavrório farmacêutico de que já se tratou, espalha caixas de remédios e se dá a ver com a repetição da textura da caixa de papelão (mesas, cadeiras e estantes são de papelão, cuja cor se repete no lençol do colchão), saindo negativamente da comédia de costumes de Falcão e de Sugahara e indo para o surrealismo de Cocteau estranhamente. O fato disso não ser um entrave para o ritmo da narrativa é mérito de Sugahara, Isnard e de Brás. 

Relacionamentos, dependência afetiva (ou emocional), diferenças entre homens e mulheres são temas já batidos por serem tantas vezes tratados. Eis aqui um ponto de vista diferencial, contemporâneo e, sobretudo, divertido e apresentado de forma inteligente. Vida longa à dramaturgia de Adriana Falcão. Aplausos a quem fez e faz dela teatro. 

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FICHA TÉCNICA

Texto Adriana Falcão
Elenco Letícia Isnard e Érico Brás
Direção e Adaptação Ivan Sugahara
Assistência de Direção Lisa E.
Figurino Bruno Perlatto
Iluminação Tomás Ribas
Trilha Sonora Ivan Sugahara
Direção de Movimento Paula Maracajá
Programação Visual Bruno Graell
Fotografia Dalton Valério
Assessoria de Imprensa Flávia Tenório
Direção de Produção Giba Ka
Produção Executiva Letícia Napole
Assistente de Produção Flávia Milioni e Jenny Mezencio
Coordenação de Produção Beto Bk
Realização Giba Ka, Ivan Sugahara e Letícia Isnard

Os Coisos (RJ)

Adassa Martins é a protagonista de "Os Coisos"
Foto: divulgação

Ou bobo ou pretensioso


           “Os Coisos” surge na programação de teatro carioca no Consulado da Argentina como resultado de uma ponte entre artistas brasileiros e argentinos. Infelizmente, o que se vê é uma produção com boa interpretação de Adassa Martins (uma das melhores atrizes da nova geração), mas sem consistência, repetindo fáceis marcas de teatro contemporâneo, oferecendo uma falsa sensação de profundidade que, por fim, é inexistente. Dirigido pelos argentinos Cristián Cutró e Paula Baró, com texto da segunda, o espetáculo se apresenta na galeria do Consulado ao anoitecer. Não há iluminação artificial. 

Sofia (Adassa Martins) é uma jovem sozinha no apartamento da irmã. Como companhia, ela tem uma samambaia chamada de Roberto (a voz da samambaia é de Pedro Pedruzzi). Os dois conversam, ele pede que ela lhe conte sua história e ela inventa uma, pois não sabe realmente como a planta foi parar na casa da irmã. Aos poucos, o espectador vai sentindo que o clima entre os dois é de despedida, como o dia que o público vê terminar pela janela. (A vista do anoitecer através da galeria dá para o cruzamento de duas avenidas movimentadas no bairro de Botafogo, zona sul do Rio de Janeiro.) O diálogo é superficial e, enquanto os minutos passam, o espectador fica se esforçando para dar sentido para o que ouve e vê, em busca de talvez uma conclusão que lhe alerte, pelo menos, para o fato de que não há sentido. (O não-sentido é sempre um sentido.) Nesse contexto, o espetáculo de Cutró e de Baró é um meio do caminho entre o realismo fantástico (a samambaia fala e isso é plenamente aceitável pela personagem envolvida) e o pós-dramático (o diálogo é picotado, sem autorreferenciação e o drama não é clássico) com referências à tragédia contemporânea (Sofia está imersa em aparente depressão). Eis, então, que surge Juan (Gunnar Borges), o ex-namorado de Sofia. Ele conta a ela a sua noite anterior com outra menina, exibindo um personagem cujo ego é altíssimo. Há ainda sentimento entre os dois, mas o texto de Baró parece fugir de encarar a fundo o que ainda há entre os dois personagens, ambos construídos com boas marcas estruturais. Os nós que prendem os três personagens mostram-se frágeis, sem investimento, carentes de profundidade, ainda que cada figura, em particular, seja bem construída. Num determinado momento, Juan passa a ouvir também a voz de Roberto e é, então, que a dramaturgia cambaleante, já nos seus momentos finais, perde a oportunidade de finalmente se definir entre o fantástico, o pós-dramático ou o trágico. O fim chega sem novidades, com uma música subindo na já totalmente escura sala de espetáculo. Em resumo, mais uma peça sobre relacionamentos sem nada a acrescentar. 

A opção da direção por não utilizar a iluminação artificial é formalmente positiva, isto é, é interessante do ponto de vista da forma, mas que não acrescenta muito enquanto conteúdo. Uma vez que apenas um dos personagens (Juan) tem dificuldade de falar de seus sentimentos, a escuridão cada vez maior se torna uma metáfora para o quê? Fosse Roberto, a samambaia, o protagonista, seria possível pensar que as trevas seriam um aponte para o fim de sua vida. Cogitar a possibilidade de que o anoitecer pressupõe o fim do relacionamento entre Sofia e Juan é menosprezar o talento (e a inteligência) de Cutró e de Baró, por isso, convém afastar-se dessa opção. Nesse sentido, evidenciar as pontes visuais com os acontecimentos dramáticos de “Os Coisos” se torna um desafio que anuncia a fragilidade do espetáculo enquanto obra teatral (e narrativa). 

Adassa Martins, atriz também de “Sinfonia Sonho”, apresenta mais uma vez uma interpretação cheia de força, sentimento e ironia. Suas pausas são adequadas, seus movimentos exibem integridade, suas intenções são claras. Mais uma vez, aplaudí-la é um prazer. 

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Ficha técnica:

Dramaturgia: Paula Baró
Direção: Cristián Cutró e Paula Baró
Arte: Eloy Teixeira Machado
Tradução: Pedro Pedruzzi
Colaboração na tradução: Ulises Gasparini
Redação e Colaboração artística: Nina La Croix
Assistência de Direção: Isabella Almeida
Elenco: Adassa Martins, Pedro Pedruzzi e Gunnar Borges
Produção: Colectivo Samambaia
Coprodução: Club Cultural Matienzo e Colectivo Kerenkaferem

O teatro é uma mulher (RJ)

Malu Valle e Raquel Rocha brilham em
em peça em cartaz no Teatro Ipanema
Foto: Paula Kossatz

Sem consistência dramatúrgica, mais uma peça de Rodrigo Nogueira


            Apesar das grandes atuações e do cenário excelente, “O teatro é uma mulher”, com texto e direção de Rodrigo Nogueira, é um espetáculo infelizmente difícil de assistir. Sem nenhuma razão visível, Nogueira o faz assim. Durante a fruição, a sensação é de que o espectador está desbravando uma mata selvagem em busca de flores. Ele afasta espinhos, se desvencilha de bichos, procura, luta, sua (do verbo suar) até que finalmente encontra algo de valor. E aí recomeça a complicada busca por mais outra pequena flor, tudo de novo, novamente. Sem ser teatro contemporâneo, nem teatro burguês, “O teatro é uma mulher” fica no meio do caminho em plena crise de identidade. A peça está em cartaz no Teatro Ipanema, em plena Zona Sul do Rio de Janeiro (vale a pena a visita!). 

Muitos minutos se passam até que, no fim da primeira cena, o público sabe quem está falando com quem e onde. Então, a cena termina. Recomeça uma segunda cena e o processo é o mesmo. Sempre difícil, sempre complicado, fechado, presunçoso, pretensioso. No fim das contas, uma Cantora lésbica Malu Valle) conta para a sua Ex-namorada (Alessandra Colasanti) que, para melhor compor e cantar suas canções, inventou para si uma personagem: a Dona de Casa (Valle). Por sua vez, a Dona de Casa, em crise, vai até a sua grande Ex-melhor amiga (Raquel Rocha). No passado, a Dona de Casa se casou com o então marido da Amiga e, por isso, a amizade entre elas acabou. A Amiga é uma terapeuta. No encontro das duas, a Dona de Casa conta para a Amiga que sonhou que era uma Guerrilheira (Valle) sendo interrogada pela própria Filha (Luciana Borghi) em função de um atentado em que uma Cantora seria morta. No fim, e só na última cena, fica-se claro que o mote de tudo é o fato de termos que nos desvencilhar de vários “eus” para sermos nós mesmos. Sem nenhuma personagem atriz e o fato de que todo ator (para não dizer todo mundo) precisa se desfazer de si (ou de parte de si) para ser um personagem, o título “O teatro é uma mulher” se perde sem sentido nesse mar hermético, formalista e superficial. Com um excesso de jogo de palavras (Bidê tem acento, mas não tem assento, etc), são bastante raros os momentos de diálogo realmente bons. E, infelizmente, eles só acontecem no final das cenas. 

Malu Valle e Raquel Rocha apresentam excelentes trabalhos, acompanhadas de Luciana Borgui e de Alessandra Colasanti, com personagens de menor brilho, mas também cheios de força e de intensidade. O conjunto, que é composto de atrizes experientes, garante à encenação bons tempos, momentos cômicos, imagens belas, tensões dramáticas, “tirando leite de pedra” nitidamente. É bastante positivo também o trabalho de composição de figurino de Gabriela Campos, que oferece uma diversificada palheta de cores aos olhos do espectador, ao lado da iluminação de Daniela Sanchez, modificando os quadros e tentando oferecer uma certa impressão de evolução narrativa. Como diretor, por articular bem os elementos visuais e o conjunto de interpretações, Nogueira se mostra muito melhor que autor. Como em “Rock In Rio”, também de sua autoria, falta aqui consistência dramática. 

A discussão contemporânea acerca dos múltiplos discursos e das pessoas de cada discurso, bem como a questão da atualidade e da virtualidade, das marcas de realidade, de irrealidade e de ficcionalidade, além de uma rarefeita sugestão de ponte entre o teatro e a mulher ficaram aqui como meras menções. Somos a parte do outro que não é o outro. 

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FICHA TÉCNICA

Texto e Direção: Rodrigo Nogueira
Elenco: Alessandra Colasanti, Luciana Borghi, Malu Valle e Raquel Rocha
Cenário: Aurora Dos Campos
Iluminação: Daniela Sanchez
Figurino: Gabriela Campos
Direção Musical: Luana Carvalho
Programação Visual: Luciano Cian
Fotografia: Paula Kossatz
Assessoria De Imprensa: Daniella Cavalcanti
Produção: Tárik Puggina – Nevaxca Produções

quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

Édipo Rei (RJ)

Gustavo Gasparani é Édipo em montagem
dirigida por Eduardo Wotzik
Foto: Murillo Meirelles

Peça milenar é encenada com grande valor

“Édipo Rei”, cuja realização é de Gustavo Gasparani, é uma excelente produção dentro da programação teatral do verão carioca. Com excelentes nomes no elenco e belíssimos trabalhos de produção e de articulação dos elementos estéticos, a obra, em linhas gerais, vale a pena ser vista não só pelo importância milenar do texto escrito em 427 a.C., por Sófocles (497 a 406 a.C.), mas pelo resultado cênico de primeiríssima qualidade. A direção de Eduardo Wotzik está de parabéns e, abaixo, há a lista de alguns motivos. 

É simplesmente impossível saber (ou mesmo imaginar) como “Édipo Rei” foi produzido pela primeira ou pela centésima vez na história há mais de dois mil anos. Ou seja, todas as montagens realizadas nos últimos séculos são sempre e totalmente atualizações a partir dos contextos e das opções artísticas de cada encenador, grupo, companhia ou produção. O mais importante, assim, da obra, em outras palavras, o seu DNA é a crença de que, para aquelas pessoas, havia um destino previamente determinado, na maioria das vezes, em poder apenas dos deuses e, em casos específicos, revelado aos homens. Laio, o Rei de Tebas, uma das cidades mais importantes do mundo antigo, segundo a peça de Sófocles, foi uma dessas pessoas. Seu filho o mataria e se casaria com sua esposa, mãe do futuro assassino. Laio, para se livrar do destino, resolveu matar o próprio filho e é aí que está o problema. Na concepção daquelas pessoas, os mortais não devem tentar fugir dos seus destinos e, nesse sentido, uma tragédia grega é sempre uma espécie de catequese. Ao saber, através de um oráculo, que ele mataria o próprio pai e se casaria com a própria mãe, o jovem Édipo fugiu de Corinto, ou seja, também tentou driblar o destino e também não foi feliz em sua tentativa. O trágico é justamente essa incapacidade do homem de gerenciar o próprio arbítrio (daí, contemporaneamente, vemos Winnie plantada no chão em “Happy Days”, de Beckett). Outro elemento que é parte da matriz funcional da obra é o tom ritualístico da encenação, que remete a um certo tipo de celebração religiosa. Por mais efeminado, por exemplo, que possa ser o ator que interprete Pilatos, é com muita seriedade que a plateia assiste ao seu trabalho em qualquer montagem de “A Paixão de Cristo”, uma vez que elas sempre acontecem envoltas em uma energia de culto ao divino. É nisso que se baseiam as pausas do texto de Sófocles, o cuidado com a retórica, os lamentos das filhas de Édipo, a força do Corifeu. Por isso, disse-se acima (sempre acho que o papel da crítica não é apenas valorar, mas justificar a atribuição subjetiva de valor a obra) que a montagem dirigida por Eduardo Wotzik atualiza com enormes méritos esse clássico da dramaturgia mundial. 

De um modo geral, o elenco apresenta excelentes interpretações: Gustavo Gasparani é um Édipo forte como se espera, com gestos nobres, olhares bem dirigidos, intenções bem claras. Eliane Giardini é uma Jocasta igualmente imponente, que sofre sem dramatizar, que espera sem exagero, que ama e respeita como da personagem se espera. César Augusto subverte, mostrando um Creonte incrivelmente humano, quase jovial, estabelecendo um positivo contraponto com os outros Creontes que vamos encontrar nas outras tragédias (Antígona e Medeia, por exemplo), mantendo a seriedade da tragédia a contento. Pietro Mario Bogianchini (Mensageiro) e Rogério Fróes (Pastor) têm felizes pequenas participações, cheias de delicadas entonações, expressões suaves, mas não menos intensas de emoção. Entre todos, no entanto, “Édipo Rei” tem um ponto alto e um ponto baixo no elenco. O primeiro se refere à Fabianna de Mello, substituindo o coro e o Corifeu e se tornando a “Venerável Senhora”, que representa o público e, ao mesmo tempo, a população de Tebas, cujo destino se vê aberto na praça em frente ao palácio do Rei. A atriz tem olhar forte, movimentos precisos, gestos que chamam a atenção tanto do público para o centro do palco como do palco para o público. O ponto baixo é a participação de Amir Haddad, cuja interpretação se avalia aqui a parte toda a importância que ele tem na história do teatro brasileiro. Sua entrada é promissora, mas, assim, seu Tirésias promete uma “pompa” que não cumpre. Os gestos são largos demais, as falas pausadas demais, os movimentos histriônicos demais, o que, em conjunto, resulta em uma concepção dramática complemente isolada em uma tragédia e, por isso, bastante negativa. 

A cenografia de Bia Junqueira, assim como os figurinos de Marcelo Olinto, a iluminação de Maneco Quinderé e a trilha sonora de Marcelo Alonso Neves (que marca brilhantemente o ritmo do ritual em que consiste a encenação) são elementos criados através de uma concepção valorosa que resultam em elementos isoladamente interessantes e articulados de forma positivamente profunda. Quanto ao primeiro, a direção de Wotzik enfrenta um grave problema. O lugar circular, em formato de arena, do Teatro Maria Clara Machado (Planetário) , é quase ao nível do olhar do público, gerando um obstáculo, em alguns momentos grave, para a fruição. Na cena, por exemplo, em que Édipo entende ser ele o responsável por todo mal que recaiu sobre Tebas, há pessoas do público sentadas exatamente atrás dele, ou seja, impedidas de ver o rosto do ator nesse momento tão importante. O mesmo tipo de problema acontece com muita gente do público, dependendo da cena. 

“Édipo Rei” é um clássico que, montado hoje, nos alerta sobre o valor e a importância de um bom texto. As palavras mais que milenares ainda soam perfeitas em volta de uma história escrita sobremaneira. Eduardo Wotzik, e todos os nomes por trás dele (ou adiante), encenam à altura. De Sófocles e de nossa. 

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Ficha Técnica

Autor: Sófocles
Tradução e adaptação: Eduardo Wotzik & Fernanda Schnoor

Elenco: Gustavo Gasparani, Eliane Giardini, César Augusto, Fabianna de Mello e Souza, Pietro Mario Bogianchini, Thiago Magalhães, Nina Malm e Louise Marrie
Participação especial: Amir Haddad e Rogério Fróes

Direção: Eduardo Wotzik
Cenografia: Bia Junqueira
Figurinos: Marcelo Olinto
Iluminação: Maneco Quinderé
Direção musical: Marcelo Alonso Neves
Músicos: Murilo O'Reilly e Felipe Antello
Produção: Sábios Projetos
Realização: Coisas Nossas

sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

Oportunidade Rara (RJ)

Lena Brito e Saulo Rodrigues brilham
em espetáculo de Hamilton Vaz Pereira

Foto: divulgação

O teatro do absurdo está com tudo

O mais interessante de “Oportunidade Rara” é que a montagem é mais uma prova de que o Teatro do Absurdo está com tudo. Ou seja, que esse gênero ainda nos diz algo, ainda tem a ver com o mundo contemporâneo, que Qorpo Santo, Ionesco, Albee (este está de fato vivo mesmo), Sartre e Beckett estão vivos e sendo atualizados. Nos últimos tempos, o Rio de Janeiro viu “Ninguémfalou que seria fácil”, de Felipe Rocha. Agora, mais recentemente, houve o sucesso “O desparecimento do elefante”, adaptação de Monique Gardenberg para os contos de Haruki Murakami. E, agora, vem esse texto assinado e dirigido por Hamilton Vaz Pereira. Algumas histórias engraçadas, outras nem tanto, a depender do gosto do público. Todas, no entanto, expressando uma direção cuidadosamente firme, boas intepretações e um delicado trabalho de produção que rebate em todos os demais elementos da estrutura da obra como um todo coeso e coerente entre si. Eis aí uma peça inteligente, com um humor refinado para um público que gosta de fugir do fácil, sem tanto esforço no difícil.
São cinco histórias. Em todas elas, personagens brasileiros se encontram em lugares diversos no mundo, exibindo naturalmente um ponto de vista sobre o país enquanto falam de si mesmos. Dos pais que precisam reaprender a conviver depois da partida do filho já adulto, passando pela madame que vai visitar um morro não pacificado com sua empregada, pelo empresário que quer transar com a esposa de seu amigo no consultório de uma agiota, por duas estilistas que precisam vender seus produtos a um rico fazendeiro mato-grossense, até chegar a uma dupla de brasileiros que ensinam Brasil em Paris, o texto apresenta situações inusitadas, nem sempre tão absurdas, mas com caminhos surpreendentes e que, por isso, refletem a falta de lógica nos acontecimentos rotineiros. Pode se concluir, talvez, que a peça sugira um povo que ainda não está acostumado com o boom do Brasil no próprio Brasil, mas sobretudo no Mundo, um lugar em que as coisas podem dar certo e que vivem um protótipo do “sonho brasileiro”. Nesse contexto, as situações criadas por Vaz Pereira são mais profundas do que aparentam (essa, aliás, é a chave do Teatro do Absurdo), indo além do riso fácil e das personagens aparentemente malucas.
No elenco também composto por Bel Kutner e Luana Martau, é Saulo Rodrigues e Lena Brito que se destacam. A criação dos tipos que essa dupla expõe deixa claro uma pesquisa de personagem que vai além da cópia de trejeitos, pela clara manifestação de ritmos, de vozes, de equilíbrios. De um modo geral, o trabalho dos quatro é bastante interessante, inclusive porque o jogo criado por Vaz Pereira, ao dirigir o espetáculo, propõe situações que não cansam o público, embora o ritmo seja, em vários momentos, um tanto quanto lento. 
Hélio Eichbauer e Antônio Medeiros, que assinam o cenário e o figurino respectivamente, expõem trabalhos excelentes. Ao mesmo tempo que despojados, no sentido de que com pouco expressam muito, são ilustrativos, criando um clima interessante e sobretudo cômico para a cena (os pavões e os figurinos negros do deserto, por exemplo). Bastante interessante é a participação musical de Iuri Brito, Thomas Jagoda, Guilherme Lírio e Pedro Fonte com composições do próprio Hamilton Vaz Pereira, em perfeito projeto de sonorização de Andrea Zeni. Ao som das canções de Vaz Pereira, o cenário é trocado, mas o universo absurdo permanece a contento, dando positivamente coerência ao gênero que trata justamente da falta dele.
O que talvez seja “rara” é a oportunidade que alguns personagens parecem querer de fugir desse mundo estranho ou, quem sabe, de adentrar nele. Na justaposição das cenas, há oportunidades tanto para entrar como para sair. Vai para o público a decisão do que fazer. Em todos os casos, de aplaudir.

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FICHA TÉCNICA

Texto, Música e Direção: HAMILTON VAZ PEREIRA
Elenco: LENA BRITO, BEL KUTNER, LUANA MARTAU E SAULO RODRIGUES
Cenário: HÉLIO EICHBAUER
Luz: JORGINHO DE CARVALHO
Vídeo: LAÍS RODRIGUES
Figurino: ANTONIO MEDEIROS
Trilha Sonora: IURI BRITO, THOMÁS JAGODA, GUILHERME LÍRIO E PEDRO FONTE.
Projeto Gráfico: LUIZ STEIN
Colaboração / Dramaturgia: MELANIE DIMANTAS
Direção de Produção: FERNANDO DO VAL
Realização: GOG E MAGOG PRODUÇÕES
Assessoria de imprensa: JSPONTES COMUNICAÇÃO – JOÃO PONTES E STELLA STEPHANY

Minimanual de Qualidade de Vida (RJ)

Alexandra Richter brilha como a
palestrante Angelina Pimenta

Foto: divulgação

Engraçadíssimo!

            “Minimanual de Qualidade de Vida” é uma programação engraçadíssima na Sala Tônia Carreiro, do Teatro do Leblon. Com texto de Ana Paula Botelho e de Daniela Ocampo e com brilhante interpretação de Alexandra Richter, o monólogo é ágil, vivo e surpreendente. Chamado de “Palestra”, pela personagem Angelina Pimenta, da editora “The Winner Takes It All”, a sessão consiste na exposição de alguns capítulos, escolhidos a partir da paciência da palestrante, do tal livro chamado de  Minimanual. No entremeios, detalhes da vida particular da palestrante, suas próprias opiniões sobre os assuntos e um profícuo diálogo com o público. Dirigido por Ocampo, a peça não engana ninguém: do título ao cartaz de divulgação, eis aí entretenimento puro e de grande qualidade.
            Com cenário simples, excelente videografismo da dupla Rico e Renato Vilarouca, iluminação adequada de Orlando Schaider e boa trilha sonora de Paulo Mendes, o público se diverte com o jogo que se estabelece entre a atriz e o público, a atriz e o livro, ela e a personagem da empregada, o vídeo-animação que aparece no telão e a trilha sonora. As piadas acontecem naturalmente e, por isso, no tempo certo, fazendo com que a evolução da dramaturgia evolua facilmente. Rapidamente, a plateia se identifica e, sentindo-se à vontade, começa a participar da peça espontaneamente.
            Alexandra Richter brilha em cena nessa comédia escrachada e de excelente gosto. Os dramas da vida cotidiana são expostos a partir de outros pontos de vista e, mesmo quem não os vive, acaba por divertir-se pela qualidade da articulação dos estereótipos usados. Em todos os sentidos,  um  ótimo divertimento.

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Ficha técnica:
Texto: Ana Paula Botelho e Daniela Ocampo
Direção: Daniela Ocampo
Elenco: Alexandra Richter
Direção Executiva: Gustavo Nunes
Assessoria de Imprensa: Uns Comunicação
Assistente de direção: Bárbara Divivier
Assistente de Fotografia: Mariana Varella
Assistente de Produção: Adriana Lemos
Captação de Recursos: Renata Borges Pimenta
Cenógrafa: Clívia Cohen
Diretor de Cena: Hildo de Assis
Figurinista: Patrícia Muniz
Filme de Abertura: Eduardo Chamon
Iluminador: Orlando Schaider
Operador de som e de multimídia: Janser Barreto
Preparação Corporal: Márcio Cunha
Preparação Vocal: Rose Gonçalves
Produtor Executivo: Helber Santa Rita
Trilha Sonora: Paulo Mendes
Videografismo: Rico e Renato Vilarouca
Visagismo: Fernanda Santoro
Produção: Turbilhão de Ideais 

quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

Trabalhadores do Mar (RJ)

O grupo Alfandega88 em mais um
excelente espetáculo.
Foto: divulgação

Um belo romance em uma bela cena

Trabalhadores do Mar” é a versão teatral do romance homônimo do francês Victor Hugo (1802-1885) escrito em 1866. Adaptado e dirigido por Diego Molina, o espetáculo segue o estilo “romance em cena” em que os atores são, ao mesmo tempo que os personagens, os contadores da história/seus leitores. Nesse sentido, o espetador deve esperar por um ritmo mais lento do que a simples encenação da história, mas também uma visão mais profunda por sobre a obra original, sua trama, seu valor literário. Ao contrário do que possa se pensar, a técnica não diminui o teatro em relação a literatura, pelo menos não no trabalho de Molina. Produzido pelo grupo Alfândega88, eis aí uma obra que experimenta o teatro com delicadeza e força, intensidade, liberdade e paixão. 

O título é correto. “Trabalhadores” não nomeia uma só pessoa, mas um grupo. O grupo é o protagonista do livro e da peça, o conjunto de seus personagens e suas relações. A narração começa com a apresentação do bárbaro Gilliatt (Gil Hernandez), mas, assim que possível, foge dele para a introdução de outros personagens. Vem aí o próspero Mess Lethierry (Fernando Lopes de Lima) e sua sobrinha Déruchette (Pâmela Côto), o trapaceiro Rantaine e o Sr. Landoys (Leonardo Hinckel), o capitão Zuela e o timoneiro Tangrouille (Filipe Codeço) e o honesto Sr. Clubin (Edson Cardoso), entre outros personagens. O que une todos essas figuras é o mar e o transporte sobre ele, feito sobretudo pela Durande, o primeiro navio a vapor, propriedade de Mess Lethierry, cuja trajetória é contada na narrativa. Dentro do gênero romântico, Hugo constrói personagens idealizados, redundantes, extremamente coerentes: a bela mocinha, o herói rústico, o homem de sucesso, o ladrão, o trabalhador, o beberrão. É nesse sentido que uma má adaptação poderia superficializar o romance na hora de atualizar para o palco. Mantendo as descrições dos personagens, as lapidações que o escritor faz em cada uma de suas “perólas”, Molina permite que cada figura tenha não só forma, mas cheiro e sabor. A história é contada com a calma com que o livro é lido e o ritmo, apesar de lento, não é arrastado. Reconhece-se as partes clássicas: a apresentação, o desenvolvimento, o clímax e o desfecho, sendo esse último o ponto alto de Victor Hugo que se mantém, pela duração menor (pois a peça dura noventa minutos e o livro requer dias para a sua leitura), com ainda maior relevância. 

A cenografia proposta por Molina e pelo grupo é esplêndida. Além de trazer a possibilidade de vários níveis de narrativa, oferece índices facilmente remetentes ao navio e à Baía de Saint-Sampson, na Ilha de Guernesey, onde a história acontece. Articulados, os andaimes oferecem obstáculos, aberturas, fechamentos, lugares escondidos, transparências, além de, auxiliados pela luz de Aurélio de Simoni, manifestar um belo quadro ao espectador. Os figurinos de Inês Salgado e a direção musical de Felipe Habib conferem cor, movimento e clima para a narração acontecer elegantemente a contento. 

Como já aconteceu em “Labirinto”, "O trem, o vagão e moça de luvas” e em “A negra felicidade”, o trabalho de interpretação do elenco de Alfândega88 é excelente sem exceções. Vale destacar Fernando Lopes Lima (Mess Lethierry), Filipe Codeço (Tangrouille e Zuela), Leonardo Hinckel (Rantaine) e Mariana Guimarães, talvez, por, no determinado dia da análise, oferecerem um resultado um pouco mais visível que os dos demais. O conjunto é sólido, coeso, forte, estabelecendo com o público uma relação parcimoniosa, respeitosa e honesta que acaba por convencer e agradar perfeitamente. 

O amor ao teatro do grupo Alfandega88 não é visto apenas na riqueza de detalhes com que os últimos espetáculos têm sido construídos, mas sobretudo no carinho com que o Teatro Serrador/Sala Brigitte Blair tem sido mantido. Construído nos anos 40, sem reformas desde os anos 50, o palco e a plateia estão lá: ainda dignos, seguros e utilizáveis com boa vontade e admiração. É bonito ver o público da Cinelândia acorrer às sessões sempre a preços populares. Nada menos que um convite para o público das outras zonas da Cidade Maravilhosa. 

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Ficha técnica:
Texto: adaptação do romance homônimo de Victor Hugo. | Tradução: Machado de Assis. | Elenco: Danielle Martins de Farias, Denise Pimenta, Edson Cardoso, Fernando Lopes Lima, Filipe Codeço, Gil Hernandez, Leonardo Hinckel, Mariana Guimarães e Pâmela Côto. | Direção musical e Piano: Felipe Habib. | Iuminação: Aurélio de Simoni. | Supervisão de cenografia: Fernando Mello da Costa. | Cenografia: Diego Molina e Alfândega 88. | Figurinos: Inês Salgado. | Assistência de figurino : Pâmela Côto. | Direção de movimento: Juliana Medella. | Programação visual: Peter Boos. | Assessoria de imprensa: Sheila Gomes. | Direção de produção: Diego Molina, Mariana Guimarães e Pâmela Côto. | Realização: Alfândega 88 e Urbana Produções.

Tudo por um PopStar (RJ)

Jullie, Larissa Bougleux, Thati Lopes e Thais Belchior
brilham no elenco de "Tudo por um PopStar"
Foto: divulgação

Excelente!

A Aventura Entretenimento estreou nesse último final de semana seu segundo grande musical de 2013. “Tudo por um PopStar” tem exatamente tudo o que o primeiro não tem: um excelente texto roteiro de Gustavo Reiz, adaptando o primeiro livro da best seller Thalita Rebouças, uma direção ágil de Pedro Vasconcelos, um repertório vibrante (direção musical de Jules Vandystadt) que conclama a plateia a cantar a bater palmas junto com os cantores e, sobretudo, de ótimos a excelentes trabalhos de interpretação. “Tudo por um PopStar” é, sim, assumidamente uma peça voltada para o público adolescente. Mas, como também acontece com o teatro infantil, os elogios lhe recaem porque ela consegue resgatar nos adultos o adolescente que ainda existe dentro deles. Eis aí um grande espetáculo! 

Nos primeiros dez minutos, o público já sabe qual é a história, o que está por acontecer, quem são os personagens, o que eles querem. Está claro que haverá um final feliz, mas esquecer disso é uma opção que o espectador faz em prol da boa fruição: queremos saber como as heroínas atingirão o seu objetivo. Manu (Jullie), Ritinha (Larissa Bougleux) e Gabi (Thati Lopes) descobrem que seus ídolos, a banda Slava Body Disco Disco Boys, está vindo para o Brasil e fará apresentações no Rio e em São Paulo. Menores de idade e moradoras do distante município de Resende, como elas farão para 1) convencer seus pais a irem ao show; 2) conseguir dinheiro para viagem, hospedagem e ingressos; e 3) ficarem o máximo possível pertinho de seus ídolos? Aí o drama incia e a plateia começa torcendo por elas. Surge Babete (Thais Belchior), prima mais velha de Manu, e que poderá ajudá-la, mas os desafios seguem. O carro não funciona, a Dona Eulália (Suely Franco) que ficou de leva-las ao Maracanã se atrasa e os problemas continuam aparecendo. Ou seja, habilmente, Reiz entende que quanto mais desafios houver que distanciem o herói da conquista de seu objetivo, mais interessante fica a história, pois é justamente a driblagem desses obstáculos que fortificam os protagonistas, fazendo deles personagens realmente dignos de nossa admiração. 

Pedro Vasconcelos expõe na sessão de estreia (para convidados) um espetáculo com excelente ritmo. A história flui rápida e naturalmente em um ótimo jogo entre os atores e o público e entre os diálogos e o vídeo. O texto é coberto de piadas engraçadíssimas, com participações virtuais do Chapolim, de Suely Franco, Marcia Cabrita e de um filhote de cachorro com cara de “pidão”. O fusca verde Maneco reforça o carisma, os jornalistas de vários estados brasileiros apresentam a força da banda visitante, e a narração da própria Thalita Rebouças é bastante bem articulada com a narração. 

O trabalho de interpretação apresenta grandes jovens atrizes. Jullie, Bougleux, Lopes e Belchior, as protagonistas, ganham o público, dominando o palco com força, conteúdo, clareza e graça. Os demais atores, em participações menores, também acompanham no mesmo sentido e em igual positivo valor. O conjunto levanta a plateia que não sente passar os noventa minutos da narração.

São bastante positivos o figurino de Claudio Parreiras, apresentando bem os personagens e colorindo a história com as figuras criadas pelo texto e pela encenação. Na mesma direção, a iluminação de Luciano Xavier aumenta o tamanho do palco, invade a plateia e conta a história junto com os diálogos e a movimentação. São vivas as coreografias de Alan Rezende, dando forma para a direção musical e os arranjos de Jules Vandystadt, que inclui no repertório de músicas de várias décadas que une a plateia em côro. O único senão da produção é o cenário de Ronald Teixeira que não diz a que veio com as letras emoldurando a rotunda/tela de exposição. 

Thalita Rebouças resgata no público de todas as idades o amor e a admiração por seus ídolos. Depois dos trinta, como jornalista, eu acompanhei por três dias jovens de todas as idades, vindo de todos os estados brasileiros, acamparem em frente ao Hotel Fasano para ter a oportunidade de ver pessoalmente um simples aceno da Lady Gaga no final do ano passado, quando ela veio se apresentar no Brasil. O choro, a dificuldade, a determinação em gritar o nome da estrela, de pedir encarecidamente aos motoristas que passavam de buzinar para que isso chamasse a atenção da ilustre hóspede, o sacrifício em prol de um sonho. Longe de qualquer preconceito, a imagem emociona e é isso que está na história de Rebouças. Mas há algo mais: a força incomparável na vida de todos e de cada um de termos amigos de verdade. Bravo! 

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Ficha técnica

Direção: Pedro Vasconcelos
Roteiro: Gustavo Reiz
Co-direção: Marco Bravo

Elenco: Christian Villegas, Gabi Porto, Igor Pontes, Jullie, Larissa Bougleux, Marco Bravo, Raphael Rossatto, Rosana Chayin, Thais Belchior e Thati Lopes

Músicos: Lancaster Lopes (contrabaixo), Léo Bandeira (bateria) e Tony Lucchesi (piano)
Iluminação: Luciano Xavier
Cenário: Ronald Teixeira
Figurinos: Cláudio Parreiras
Direção de Produção: Aniela Jordan
Supervisão de roteiro: Thalita Rebouças
Direção Musical: Jules Vandystadt
Desenho de som: Claret
Coreografia: Alan Rezende