domingo, 23 de outubro de 2011

Senhora dos Afogados (SP)


Foto: divulgação

Sushi com Churrasco II


Quando na última cerimônia do Oscar apresentaram o número “The musical is back” celebrando a volta dos grandes musicais nos recordes de bilheteria, eu comemorei. Não deveria. Tão velho quanto o gênero musical são as histórias de pessoas que sonham em fazer um. No meio de uma história, no entanto, abrir a boca a sair cantando não é para qualquer um. Muito menos para qualquer história.

Expressar um diálogo através de tons unidos melodicamente e dar passos coreografados sempre são ações que relacionamos à idealização. Não há como fugir disso. Quando Lars Von Trier assina a direção de Dançando no escuro, em que Bjork canta, por exemplo, na linha do trem, o diretor afirma, naquele momento, que as cenas musicadas são da ordem do sonho. A fotografia fica menos escura, os cortes mais regulares, os planos fixos. Sonho = idealização. Trier se utiliza do musical para falar dele. O mesmo faz Chico Buarque quando compõe a Ópera do Malandro. Ao cantar, os personagens dizem sobre a classe social a que gostariam de ser, sobre a identidade que almejam ter, mas que, na verdade, não têm. Abrir a boca e sair cantando numa narrativa é o mesmo que uma só pessoa matar cinqüenta e não sofrer um só arranhão. De tão estranho, nossa mente lê como irreal. Irrealidade = idealização.

Vivemos, graças a Deus, numa era em que os gêneros se encontram, se hibridizam. Esse encontro, no entanto, precisa ser amarrado. Muito amarrado. Eu só não vou estranhar de encontrar sushi ao lado de uma picanha e uma pizza logo adiante se o restaurante, de um modo geral, apresentar-se como um bandeijão. De outra forma, é mal gosto. E equívoco.

Falemos de Nelson Rodrigues outra vez.

A dramaturgia rodrigueana é calcada em cima de duas bases: construção de personagem naturalistas e ações melodramáticas. Naturalismo e melodrama são dois gêneros distintos. A união dos dois é mérito de Nelson.



Por Naturalismo entendemos o gênero em que os personagens e as ações são sempre conseqüências do meio em que tudo acontece. “Diz-me onde e com quem andas, que eu te direi o que acontecerá com e será de ti.” Não há escapatória: por viverem nessa e naquela realidade, tal e tal coisa acontecerá com aqueles personagens. É um gênero fatalista, quase trágico: você sabe o que acontecerá porque as coisas já estão previstas pela situação.



Por Melodrama entendemos o gênero em que as situações são organizadas de forma racional, embora os acontecimentos não tenham vínculo com o real, nem mesmo com a verossimilhança. As cores do drama são aumentadas, carregadas a fim de reforçar valores e características dispostas ao longo da narrativa. O triste é muito triste. O alegre é muito engraçado. A febre é uma doença mortal. O bom é sempre bom e o mal é sempre perverso. O leitor/espectador está assegurado, não lhe restando dúvidas.

Falemos, então, do Sushi com Churrasco II – “Senhora dos Afogados”.

Considerada uma das peças míticas de Nelson Riodrigues, o texto de 1947 é uma tragédia urbana que o diretor Zé Henrique de Paula e o grupo Firma de Teatro transformou em musical. Baseada nos textos Electra de Ésquilo e, depois, de O’Neill, o drama atualiza a sentença trágica de morte e pena a quem fere os preceitos do destino. O ferimento se dá, diferente dos clássicos grego e norte-americano, não num personagem, mas em todos. E aí que está o naturalismo rodrigueano. Todos os personagens têm culpa porque todos são submissos ao ambiente em que vivem: uma família podre de trezentos anos, a beira de um mar com marinheiros e prostitutas, um assassinato no passado e duas mortes no presente.

Em Nelson, somos levados a olhar cada personagem e cada situação a partir da lente da situação. Todos são vítimas ao mesmo tempo em que compõem parte do carrasco. E isso não tem absolutamente nada a ver com a segurança da idealização, base para o musical. As músicas, além de muitas vez mal cantadas, soam estranhas à cena em todos os sentidos. E é fácil identificar o porquê: antes da música, por exemplo, não sabemos se Senhora Drummond é boa ou má. A nós parece que, em alguns momentos, ela é vitima, em outros que é culpada. A dúvida é que é instigante. Aí vem o canto e o seu cantar nos faz defendê-la, torcer por ela, acreditá-la.

Para transformar Nelson Rodrigues em musical, o que é possível porque tudo é possível nesse mundo, Paula se desfez do que é mais precioso no dramaturgo recifense. De novo: assar algas no espeto e comer picanha com hashi são equívocos que eu dispenso!

*

Ficha técnica
Autor: Nelson Rodrigues
Direção: Zé Henrique de Paula
Assistência de direção: Fabrício Pietro
Elenco: João Bourbonnais, Einat Falbel, Marcella Piccin, Thiago Carreira, Marcelo Góes, Lourdes Gigliotti, Alexandre Meirelles, Elber Marques
Preparação de atores: Inês Aranha
Cenografia e figurinos: Zé Henrique de Paula
Iluminação: Fran Barros
Músicos: Fernanda Maia (piano) e Luciana Rosa (violoncelo)
Produção: Firma de Teatro/ coordenação de produção: Cláudia Miranda

*Texto escrito em setembro de 2009 por ocasião do 16º Porto Alegre em Cena 

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