segunda-feira, 29 de abril de 2013

umnenhumcemmil (SP)

"umnenhumcemmil" encerra a Trilogia Pirandelo
Foto: divulgação

Má direção
O maior problema de “umnenhumcemmil” é a direção. Todos que vão assistir a um monólogo de Cacá Carvalho sabem que vão encontrar um ator que sabe explorar os diversos níveis de sua potência vocal e que tem excelente conhecimento do corpo e de suas possibilidades expressivas na narração de uma história em cena. A questão negativa do espetáculo, que encerra a Trilogia Pirandello, da qual também fazem parte as produções “O homem com a flor na boca” e “A poltrona escura”, em cartaz no Teatro Sesc Copacabana - Sala Multiuso, é que todo o repertório corporal do ator já é visto nos primeiros dez minutos da peça que tem noventa. No décimo primeiro minuto, Carvalho já foi do grito ao cochicho, dos passos rápidos ao olhar parado, das interrupções no discurso oral à verborragia, do bater-se ao dirigir-se ao público. Sem dosagem, a peça parece que tem vários fins e cansa o espectador rapidamente. A partir de texto de Pirandello (1867-1936), o espetáculo tem direção de Roberto Bacci e dramaturgia de Stefano Geraci. 

A história é interessante e tem fácil comunicação com o público contemporâneo apesar de ter sido escrita há tanto tempo. Parte de vários discursos, o homem moderno se vê preso a regras que se modificam em cada circunstância, como se fossem vários homens dentro de um só. O herdeiro de um banqueiro, um dia, é “avisado” pela mulher de que tem nariz torto. Ele passa, então, a observar as outras pessoas com outros olhos, pensando se elas já haviam percebido essa sua característica e, se sim, porque é que não lhe contaram antes. Em revolta, aponta falhas nos outros e, nessa relação de busca e de contrução da imagem de si mesmo no outro, vem à tona a história de sua família, a má fama que tinha seu pai diante dos clientes. O caso evolui para vias surpreendentes e, no final, o espectador tem acesso aos motivos que embasam a situação inicial: onde estamos quando a história começa a ser narrada? 

Além de um poltrona, há algumas cadeiras e um balde com água. A iluminação de Fábio Retti é excelente, dando vivacidade para a cena sem o uso de gelatinas. Inserts de trilha sonora reforçam a tensão emotiva das cenas, marcando o ritmo. A peça, apesar de também contar com um bom figurino de Marcos Medina, tem um ritmo arrastado porque sem novidades que “empurre" a narrativa para um ápice dramático. Em termos de atuação, tudo já está exposto bem rapidamente e só haverá rodeios ao redor do mesmo tema corporo-expressivo. 

“umnenhumcemmil” despede Cacá Carvalho do Rio de Janeiro. Oxalá ele volte mais vezes com sua força cênica sempre tão bem vinda. 

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FICHA TÉCNICA - Trilogia Pirandello

COM: Cacá Carvalho
Direção: Roberto Bacci
Dramaturgia: Stefano Geraci
Cenário e figurino: Márcio Medina
Iluminação: Fábio Retti
Fotos : Lenise Pinheiro
Produção: Fondazione Pontedera Teatro
Realização: CASA LABORATÓRIO PARA AS ARTES DO TEATRO, FONDAZIONE PONTEDERA TEATRO/Italia
Gestão e Produção Executiva: Núcleo Corpo Rastreado
Assessoria de Imprensa no RJ: Lu Nabuco Assessoria em Comunicação
Produção no RJ: 3! Ideias e Soluções Culturais
Técnico de Luz: Yuri Cumer
Tradução: Cacá Carvalho
Arte grafica trilogia: orbi designer

O nó do coração (RJ)

Peça vê o problema das drogas de forma maniqueísta
Foto: divulgação

Superficial

Cafona. Duas filhas. Quando a mais nova tinha seis meses, o pai faleceu, deixando para a mãe a responsabilidade de criar sozinha as duas filhas. Ambas são muito diferentes. A mais velha se tornou advogada e é loira. A outra é apresentadora de programa infantil e é morena. Na primeira cena da peça, a mais nova, que se chama Nina (de Me-Nina, talvez), está cheirando cocaína no jardim da casa da mãe. O conflito é o seguinte: Nina foi demitida da emissora de televisão porque foi pega usando drogas no camarim. Começa aí uma história de drogados: Nina vende objetos da família para sustentar seu vício, se prostitui, some de casa por vários dias, a família se envolve no “salvamento” da parente, e, depois de um tratamento intensivo em uma clínica, sai e se recupera, tornando-se uma pessoa melhor. A filha mais nova usa preto. A filha mais velha, que se chama Ângela, porque, quando nasceu, parecia um anjo, usa branco. A mãe, sempre com uma taça de vinho na mão, não imaginou que coisas como essas poderiam acontecer em famílias nobres como a dela. Essa história, escrita pelo inglês David Eldridge, ao contrário do que parece, não foi criada nos anos 50, mas em 2011. E este melodrama, com direção de Guilherme Leme, que também assina os excelentes “O Matador de Santas” e “Billdog”, é estranhamente levado a sério como desde os tempos de Douglas Sirk ou das novelas mexicanas não se via. Em cartaz no novíssimo e bem vindo Teatro Eva Hertz, na Cinelândia, Rio de Janeiro, “O nó do coração” emociona quem se emociona com sensacionalismo barato ou tem visões bastante superficiais da vida. Eu, que nunca concordei com críticas que analisam a produção em si e não os seus resultados estéticos, cá estou me vendo nessa situação. 

O melodrama, tanto o francês como o americano, se tornou piada na Broadway e em Londres quando o gênero "teatro burlesco" foi criado no fim do século XIX, satirizando as grandes óperas e as operetas burguesas. No Brasil, a versão nacional desse tipo de deboche teve seu auge no fim dos anos 70 e durante os anos 80 com o "teatro do besteirol", passando antes pelo cinema de "chanchada" e pelo "teatro de revista". Uma de suas pérolas atuais é o clássico do teatro brasileiro contemporâneo “A maldição do Vale Negro”, de Caio Fernando Abre e de Luiz Arthur Nunes. A questão é que, há muito tempo, histórias lamuriosas e cheias de maniqueísmos não atendem mais à realidade. Não há mais mocinhos e bandidos na vida real, deus ex machina são soluções risíveis e caminhos óbvios marcam os filmes enlatados norte-americanos e os teledramas da Televisa apenas. Quando a filha drogada aparece sempre de preto e a filha sadia de branco, percebe-se uma visão muito limitada da direção que concorda com o texto. A própria ideia de que “usar drogas é ruim” já foi abandonada pelo ministério da saúde que, atualmente, alerta que o maior problema das drogas é o fato perigoso de que ela é justamente boa. Fosse ruim, seria fácil ficar sem ela. Apresentar uma personagem que foi levada às drogas porque não queria decepcionar a mãe ou que usuários de drogas são demitidos de emissoras de televisão é um argumento tão infantil quanto inóspito de ser defendido seriamente. Não está na orfandade a causa das drogas e muito menos no alcoolismo materno e muitos viciados em drogas usam roupas coloridas e trabalham normalmente inclusive em emissoras de televisão. Ou seja, “O nó do coração” trata o tema de forma simplista, moralista, rasa. 

Entre os valores estéticos, se eles existem, está a boa interpretação de Guida Vianna (Mãe). Falando de um jeito lento, pesado, ela não se emociona (com exceção de uma cena em que o texto assim o pede), mas encara seriamente as dificuldades pelas quais passa a sua personagem. Monique Franco (Nina) e Camila Nhary (Ângela) não conseguem fugir do gênero, construindo suas personagens na base superficial e emocionada como convém. Fernanda Thuram e Daniel Granieri estreiam fracos, sem verossimilhança, apagados, podendo conseguir melhores resultados ao longo da temporada. No conjunto, o grupo atende ao esperado pelo texto e sua encenação, esses últimos os equívocos maiores. 

A cenografia do diretor é adequada quando a cena é realista, isto é, quando o jardim é mesmo o jardim. Quando a cena se passa em outro lugar, o jardim atrapalha e causa mais problemas ainda quando precisa ser alterado pelos próprios atores. Dentro do esquema melodramático, a trilha sonora (mal operada na sessão de estreia) reforça os momentos de maior emoção e conduz o clima obviamente como se espera. 

Numa época em que os problemas sociais e suas tentativas de resolução são vistos do ponto de vista de suas contradições, encontrar uma obra teatral que vê o assunto de forma tão superficial e tola é um desânimo. E uma pena. 


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Ficha Técnica

Autor: David Eldridge
Tradutor: Washington Gonzales
Direção: Guilherme Leme
Co-Direção: Gustavo Rodrigues
Assistente de Direção: Pedro Osório

Elenco:
Guida Vianna (Barbara)
Monique Franco (Nina)
Camila Nhary (Ângela)
Fernanda Thuran (Marina)
Daniel Granieri (traficante, enfermeiro e jornalista)

Figurino: Ana Roque
Iluminação: Thomás Ribas
Trilha Sonora: Marcelo H.
Cenografia: Guilherme Leme
Coordenação de Produção: Daniela Paita
Assessoria de Imprensa: Alessandra Costa

Prazer (MG)

O novo espetáculo da Cia Luna Lunera não agrada
Foto: divulgação

Pretencioso

Prazer”, o novo espetáculo da Companhia Mineira Luna Luneira é pouco além de pretencioso. Ou seja, com ares de contemporaneidade e de modernismo (para alguns, sinônimo automático de profundidade), trata-se de um drama coberto de clichês a partir de um entendimento equivocado da obra de Clarice Lispector (1920-1977) “Uma aprendizagem ou O Livro dos Prazeres” (1969). Quatro amigos. Um resolveu sair para viajar pelo mundo com uma mochila nas costas. Os outros três, brasileiros como o primeiro mas moradores de Paris, são um médico, uma artista plástica (ex-esposa do médico) e um comissário de voo. Na noite em que os quatro se reúnem, cozinham uma sopa e, enquanto isso, conversam sobre a vida, deixando vir à tona, com dificuldades, seus dramas pessoais. A noite avança e a bebida sobe, os assuntos triviais vão dando lugar para confissões mais profundas. Conflitos aparecem e o sol também. Por fim, conclui-se que a contemporaneidade não está nem na narrativa e muito menos na estética que a enquadra. Se ela estivesse presente, estaria no como a história foi e é contada. Mas ela não está. Em cena do Teatro 1 do Centro Cultural do Banco do Brasil, no centro do Rio de Janeiro, uma hora e meia de imagens bonitas, forte apelo sensorial e grande monotonia são o que se vê.

O cenário lembra um bunker: as pareces são negras e os objetos saem de dentro do interior delas. Com um giz branco, várias palavras ou trechos da obra de Lispector são escritos enquanto o público vai entrando na plateia. As janelas não abrem (sua altura faz uma sutil referência a "Fim de Jogo", de Beckett), há quatro cadeiras negras e uma mangueira de gás. Os figurinos são pretos, brancos ou cinzas há alguns detalhes em vermelho, mas poucos. A aridez concretista da direção de arte é possível ser vista também no visagismo: um dos atores tem o cabelo platinado, o outro usa kilt e há quem use sobretudo. Os diálogos também não são justamente lineares em vários momentos, principalmente no início. Ou seja, nota-se que há um esforço em imprimir uma aparência divergente, talvez disposta a vincular a obra ao modelo pós-dramático. A opção infelizmente não se resolve. 

Para que o melhor jeito de ler “Prazer” fosse o pós-dramático, seria necessário haver, de forma mais clara, um convite ao público para dar sentido do que está no palco. Não é isso o que acontece. Apesar dos disfarces, o sentido se encontra pronto no palco: há quatros seres prestes a entrar em ebulição e eles, de fato, entram. Nesse sentido, a dramaturgia é previsível e, por escolher tantos entraves que possam deixar-lhe com cara de “nova”, acaba perdendo a oportunidade de ser simplesmente boa: falar sobre o homem e seus conflitos em um bom drama segue sendo uma boa opção quando bem executada. Recusar o drama para se pintar de pós-drama carece de justificativas que, nessa peça, não são encontradas. 

Apesar de terem aberto o seu coração para seus amigos, todos os personagens terminam do mesmo jeito que começaram. Nesse contexto, mas não apenas por ele, Clarice Lispector é nada mais que um rótulo inteligente tão mal usado quanto em frases anônimas no Facebook. Sem intencionar reproduzir o livro da escritora ucraniana naturalizada brasileira no palco, a Luna Luneira também não trouxe a sua estrutura simbólica. A contemporaneidade de Lispector não está tanto nas referencias do além da obra que ela cita, mas principal e definitivamente na construção de personagens ou de situações trágicas, isto é, os seres humanos como vítimas de uma situação imutável a qual não é responsabilidade deles. Dialogando com Kafka, os personagens de Lispector cumprem o destino que lhes é traçado e colhem os frutos que eles não plantaram com sofrimento, sim, mas principalmente com abnegação. Nada disso aparece em “Prazer”, que exorta os sentidos ao preparar uma comida, tomar banho de mangueira, beber, comer e chorar e apresenta personagens que, de maneira geral, são responsáveis por suas atitudes ou abstenções em relação às suas próprias vidas. 

Com interpretações medianas em que não se sabe o limite entre a dramaturgia supervisionada por Jô Bilac e as improvisações, a trilha sonora é melodramática na medida em que realça sentimentos e cria, junto com a iluminação, algumas imagens. A força na criação desses quadros imagéticos, o que marca a contemporaneidade, acaba por ficar no superficial, pois não ecoa no conteúdo, permanecendo apenas na forma. É positivo do uso do videografismo, mas bastante negativo o controle do ritmo na narrativa. 

Sem dizer a que veio, “Prazer” parece ser uma coisa, mas é outra. Não é vergonha ser tradicional, dramático, contar uma história com início, meio e fim bem definidos se é isso que ela pede. É, no entanto, bastante inconveniente querer forçar uma convenção estética que não nasceu para aquele objeto. Vazio. 

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FICHA TÉCNICA:
Concepção e dramaturgia: Cia. Luna Lunera
Atuação e codireção: Cláudio Dias, Isabela Paes, Marcelo Souza e Silva e Odilon Esteves
Codireção: Zé Walter Albinati
Orientação dramatúrgica: Jô Bilac
Núcleo de Colaboradores Artísticos: Éder Santos, Jô Bilac, Mário Nascimento, Roberta Carreri
Preparação corporal: Mário Nascimento
Residência artística: Roberta Carreri - OdinTeatret
Pesquisa em artes digitais: Trem Chic
Direção: Éder Santos 
Coordenação geral de produção videográfica: André Hallak 
Edição: Leandro Aragão 
Produção: Barão Fonseca 
Concepção cenográfica: Ed Andrade 
Assistente de cenografia: Morgana Mafra 
Execução do cenário: 100 Pregos
Figurino: Marney Heitmann 
Assistente de figurino: Alexandre Frade 
Confecção de figurino: Maria Vieira

Iluminação: Felipe Cosse e Juliano Coelho
Assistente de Iluminação: Jésus Lataliza
Participação afetiva: Cláudia Corrêa
Programação visual: 45 Jujubas - Marcelo Dante e Juliano Augusto
Registro videográfico: Léo Pinho
Vídeos adicionais para divulgação: Guilherme Reis
Fotografia: Adriano Bastos e Carlos Hauck

Cia. Luna Lunera: Cláudia Correa, Cláudio Dias, Fernanda Kahal, Isabela Paes, Marcelo Souza e Silva, Odilon Esteves e Zé Walter Albinati

Assessoria de comunicação: Ethel Braga
Coordenação de produção: Cris Moreira
Estagiária da produção: Juliana Antunes
Administração: Sílvia Batista
Contabilidade: Ricardo Silva
Assessoria jurídica: Drummond &Neumayr Advocacia
Serviços gerais: Valmira Nascimento da Silva
Produção: Cia. Luna Lunera (Belo Horizonte/MG)

sábado, 27 de abril de 2013

Aida (RJ)

O barítono brasileiro Licio Bruno
interpreta o pai da escrava Aida
Foto: divulgação

Bravo!! 

O que é bom não fica velho nunca. “Aida”, composta em 1870, pelo italiano Giuseppe Verdi (1813-1901) voltou ao palco carioca depois de 27 anos de ausência em grande estilo. A montagem atual, uma das maiores produções brasileiras do novo século, reúne mais de 250 artistas, sendo mais de cem em cena, entre solistas, cantores-atores, bailarinos e músicos. Em quatro atos, o espetáculo de mais de três horas (com um intervalo depois das primeiras duas partes) é apresentado com legendas que permitem ao público brasileiro compreender a história cantada (e contada) em italiano. Com excelência em termos de direção de arte (apesar de alguns usos das projeções), a montagem ganha brilho na execução das músicas pela Orquestra Sinfônica do Theatro Municipal e no trabalho de interpretação (canto lírico e atuação) da mezzo-soprana russa Anna Smirnova (Amnéris) e do barítono brasileiro Licio Bruno (Amonastro). Com produção da Fundação Theatro Municipal do Rio de Janeiro, vinculada à Secretaria de Estado de Cultura, a montagem tem direção musical e regência do maestro Isaac Karabtchevsky, direção de cena e iluminação de Iacov Hillel, coreografias de João Wlamir e direção de arte de Helio Eichbauer, marcando o bicentenário do compositor, em cartaz na Cinelândia até primeiro de maio próximo. 

Três questões são relevantes na ocasião da montagem desse grande espetáculo: a importância da ópera enquanto gênero teatral que permanece vivo, a manutenção do idioma original versus uma possível versão vernácula (no caso, brasileira) e a hierarquização dos sentidos na construção de uma peça cênica. 

A ópera é um gênero que nasceu no fim do Renascimento, quando o mundo, finda a Idade Média, descobriu a Antiguidade e colhia os frutos dos continentes recém descobertos. Deus deixava de ser o mais importante assunto entre as discussões, o sol passava a ser o centro do universo no lugar da Terra e o prazer carnal voltava a ser valorizado. Ultrapassando o Barroco e o Classicismo, o Romantismo floresce no século XVII e início de XIX, se tornando popular até início do século XX. Unindo o regramento racional de Platão com a consideração de emocional de Aristóteles, a ópera une a música, a dança e a literatura no teatro, entretendo o público (burguês) demoradamente com histórias longas cheias de forte apelo sentimental (o trabalho pesado e as preocupações eram coisas para os escravos, os plebeus e os pobres em geral). Com a revolução industrial no final do século XIX, a classe mais baixa começa a ter acesso aos serviços de arte e a ópera se transforma em opereta e a opereta se transforma em comédia musical, tal qual temos hoje principalmente na Broadway e em WestEnd. Assistir a uma ópera hoje, produzida como nos modelos de antigamente, além de ser entretenimento de cunho artístico e repertorial, é também exercício e construção do conhecimento. Verdi, assim como Wagner e Mozart, Puccini, Bizet e Rossini, e tantos outros, foram os Andrew Lloyd Weber, Richard Rogdgers, Oscar Hammerstein, Stephen Sondheim do seu tempo. O ritmo lento, arrastado, repetitivo serve a um mundo que não é mais o nosso, mas vivenciá-lo, do ponto de vista da experimentação museológica, é fundamental para entendermos o contexto atual em que vivemos. A história da escrava etíope apaixonada pelo seu inimigo, o militar egípcio, o qual há de destruir o seu povo e matar seus pais, continua interessando porque escolher entre o amor e o trabalho (ou entre o amor e a família, ou entre a família e o trabalho) permanece na pauta do homem enquanto sujeito de sua existência a partir de suas escolhas. Radamés, o oficial, não sabe que a escrava Aida, é, na verdade, a princesa da Etiópia, país inimigo do Egito. Amnéris, a princesa egípcia, não sabe que Aida, sua serva, é sua rival no coração de Radamés. Como acontece no drama de Agamenon (Ifigênia em Aulis), mas também no de Aprígio (Beijo no asfalto), o homem se divide em dois: o oficial e o amante (Verdi), o rei e o pai (Eurípedes) e o pai e o homem (Nelson Rodrigues). Eis aí o elemento com o qual as histórias de outras épocas também continuam se comunicando com o homem contemporâneo, para citar apenas um elemento de ligação. 

Em tempos de globalização, a identidade cultural perde o foco. No momento em que “Passinho de Volante” ("Leke, leke, leke") é citada em versão brasileira de produção americana de “A família Adams”, não seria espantoso assistir a “Aida” toda em português. Felizmente, não é esse o caso. De forma positiva, a produção não subestima o público carioca e prefere legendas a traduções (Por que o mesmo não acontece com os musicais americanos?!), mantendo, assim, a cor sonora das músicas ouvidas na plateia. Por outro lado, e aí negativamente, a montagem atual de “Aida” se utiliza de projeções como um recurso que possa “aliviar” o espectador do cansaço supostamente promovido pelo ritmo lento. É falso. Toda vez que há movimento ou imagens icônicas (rostos de deuses, por exemplo) projetadas, o uso estabelece um contraponto com o que está acontecendo na interpretação. Na briga, o vídeo sempre ganha e quem perde é o teatro e, consequentemente, o seu público. Quando abstratas, as imagens em vídeo têm uso positivo, trazendo textura para o belo cenário de Eichbauer.

“Aida” é literatura enquanto libreto assinado por Antonio Ghislanzoni e é música enquanto partitura de Verdi na regência de Karabtchevsky. Só é teatro (ópera é um gênero tanto teatral como musical, mas aqui, porque encenado, é só analisado como parte do primeiro), assim, enquanto sob a direção cênica de Iacov Hillel. O resultado é bom na medida em que se observa o bom preenchimento do grande palco, a simetria das composições e os bons usos dos níveis, sobretudo na cena final. No entanto, no que diz respeito às interpretações dos atores, perde a oportunidade ser excelente. Carlos Eduardo Marcos (Faraó) e o italiano Rubens Pelizzari (Radamés) estão frios, técnicos e quase inexpressivos em cena. Infelizmente, o resultado menos positivo é o da italiana Fiorenza Cedolins (vale lembrar que a profissional encontrava-se enferma no dia da apresentação aqui analisada!) que interpreta Aida, porque também sobre ela recaem as maiores expectativas. Já interpretada pela diva Maria Callas, falta sensualidade, graça e sobretudo majestade no trabalho visto no palco do Theatro Municipal do Rio. Com os ombros constantemente caídos, a atriz raramente mantém os dois pés no chão, quase sempre deixando um deles em ponta com o joelho dobrado. Quando está parada, observa-se ainda seus pés estão virados para dentro, o que, em conjunto, expressa uma falta de conhecimento das potencialidades do próprio corpo, embora, sem dúvida, tenha excelente uso da voz. É em Savio Sperandio (O sacerdote Ramfis), em Ricardo Tuttmann (o Mensageiro), mas principalmente em Anna Smirnova (A princesa Amnéris) que estão os melhores trabalhos. Há neles força, elegância, carisma, presença cênica, excelentes usos do olhar e das expressões corporais e faciais, além do que diz respeito ao canto. Na hierarquização dos signos que a atualização da partitura para a cena estabelece, este "Aida" parece se chamar "Amnéris" pela importância de Smirnova na cena.

A “Marcha Triunfal” (assista aqui em outra montagem) de “Aida”, presente como leitmotiv em todas as músicas da composição, garantindo sua unidade, é um dos pontos altos da encenação, que deixa, claro, o seu melhor momento para o final. Com coreografias da Escola de Dança da Fundação Theatro Municipal, da Escola Estadual de Dança Maria Olenewa e da Companhia Jovem de Ballet do Rio de Janeiro, o espetáculo tem bons momentos de dança também. A iluminação e os figurinos (Raul Belém Machado) são elementos excelentemente usados. 

“Aida” foi uma das últimas grandes óperas compostas na história do gênero e uma das mais famosas, tendo sido apresentada no Brasil, no Theatro Dom Pedro II, apenas cinco anos depois de sua estreia mundial. Assistí-la, ainda viva e potente, é uma forma de homenagear gerações que já se foram, mas cujas marcas seguem nos sendo úteis. À Fundação Theatro Municipal do Rio de Janeiro, por viabilizar esse momento cujos ingressos estão concorridíssimos, o aplauso mais sonoro. 

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Ficha técnica: 

Solistas:
Fiorenza Cedolins (récitas dos dias 20, 23, 26 e 28 de abril) - Aida
Eliseth Gomes (récita do dia 1° de maio) - Aida
Rubens Pelizzari - Radamés
Anna Smirnova - Amneris
Licio Bruno - Amonasro
Sávio Sperandio - Ramfis
Carlos Eduardo Marcos – Faraó
Lucia Bianchinni - Sacerdotisa I
Ricardo Tuttmann – Mensageiro

Orquestra Sinfônica e Coro do Theatro Municipal do Rio de Janeiro
Direção Musical e Regência: Isaac Karabtchevsky
Direção de Cena e Iluminação: Iacov Hillel
Cenografia e Direção de Arte: Helio Eichbauer
Coreografia: João Wlamir
Maestro Preparador do Coro: Jésus Figueiredo
Figurinos: Raul Belém Machado

Participação especial:
Escola Estadual de Dança Maria Olenewa – Direção de Maria Luisa Noronha
Cia. Jovem de Ballet do Rio de Janeiro – Direção Artística de Dalal Achcar e Direção Geral de Mariza Estrella

quarta-feira, 24 de abril de 2013

A carpa (RJ)

Ivone Hoffman e Ana Cotrim em "A carpa"
Foto: divulgação

Sobre os laços familiares
“A carpa” é um espetáculo bastante simples e que tem como maior mérito o fato de usar dessa simplicidade para tocar o coração. No palco, mãe e filha judias se confrontam, carregando em si a base familiar em choque com os desejos para o futuro. Independente de cultura, religião ou de época, a ascendência de alguém mais velho e sua influência na construção de nossa personalidade unem diferentes seres humanos ao redor do tempo. Nesse sentido, a peça em cartaz no especial Teatro Dulcina, na Cinelândia, Rio de Janeiro, aproxima a plateia que se reconhece facilmente na narrativa cênica. Dirigida por Ary Coslov, a peça estreou em 2010, depois que o texto de Denise Crispun e de Melanie Dimantas foi premiado pela Funarte. Agora, o projeto abre a ocupação “Dulcina Abre o Pano” da Belazarte Realizações Artísticas em parceria com a Realejo Produções. 

Ivone Hoffman e Anna Cotrim dividem os personagens de Mãe e de Filha na ação que se passa na Europa antes da segunda grande guerra e no Brasil décadas depois. Nos dois momentos, o encontro se dá às vésperas da celebração de Pessach, a páscoa judaica, que marca a passagem da escravidão do povo hebreu no Egito à sua libertação além do Mar Vermelho. Uma receita especial de bolinho de peixe, o Guefiltefish, é feita com carne de carpa moída. O gesto se torna, nesse contexto, metáfora para a tradição, essa capaz de driblar o tempo e as gerações, de Moisés até agora. As idiossincrasias dos personagens são capazes de remeter às características daqueles que nos são caros e, com ternura, “A carpa” atinge o seu objetivo graciosamente. 

Ivone Hoffman, que interpreta as mães, executa bem a tarefa de estereotipar suas personagens de forma, não tanto superficial, mas mais capaz de fazê-las indentificáveis com o imaginário da recepção. Anna Cotrim, por sua vez, movimenta bem, nos dois momentos, a geração do conflito que moverá a narrativa. Em nenhum ponto, os trabalhos de interpretação permitem que o ritmo caia ou que o quadro se torne melodramático, o que é um risco a enfrentar em cada apresentação. Felizmente, com mão firme, Coslov vence o desafio. 

Os outros elementos da encenação, como o cenário de Marcos Flaksman, os figurinos de Kalma Murtinho, a iluminação de Aurélio de Simoni e a trilha sonora de Coslov, agem segundo lhes cabe numa peça realista: com vistas a desaparecer. Bem articulados, todos os elementos apontam para a história que está sendo narrada, sem chamar a atenção, desconcentrar ou criar dúvidas. São, por isso, tanto o uso especial de cada elemento como a forma como estão engendrados com o todo, bastante positivos. 

Numa época em que se discute novos conceitos de família, “A carpa” trata sobre a união de laços familiares em contextos de separação. O que parece contraditório marca justamente o seu principal valor: os laços familiares vão além do tempo, da distância, do sangue ou da condição. Dizem respeito aos detalhes que dão a ver nossa identidade, o que nós mostramos para o mundo acerca de nós mesmos.  É, portanto, um espetáculo com valores artísticos e sociais que deve ser visto por causa de ambos.

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Ficha técnica:
Texto: Denise Crispun e Melanie Dimantas
Direção: Ary Coslov
Atrizes: Ivone Hoffman e Anna Cotrim
Cenário:Marcos Flaksman
Figurino: Kalma Murtinho
Iluminação: Aurélio de Simoni
Trilha sonora: Ary Coslov
Direção de movimento: Esther Weitzman
Direção de produção: Celso Lemos

segunda-feira, 22 de abril de 2013

Pequenas tragédias (RJ)

Ana Carbatti em grande momento
de sua carreira
Foto: divulgação

Complexidade sem peso: um ótimo espetáculo em cartaz

Idealizada por Ana Carbatti e por Sean McIntyre, “Pequenas Tragédias” é uma ótima produção que está em cartaz na Sala Rogério Cardoso, da Casa de Cultura Laura Alvim, em Ipanema, zona sul do Rio de Janeiro. A partir de quatro histórias de Alexander Pushkin (1799-1837), a produção merece ser vista por vários motivos. O primeiro deles é a importância do texto. Em seguida, a excelência das interpretações e, por fim, a forma como os elementos foram bem articulados. Dirigido por Fabiano de Freitas, o espetáculo perde o caminho no início da última história, mas, até aí, só tem méritos. Por isso, vale o aplauso. 

Para entender a importância de Alexander Pushkin (1799-1837) para a literatura russa (e mundial), é preciso imaginar, em um homem só, um misto do que há de melhor em José de Alencar e em Machado de Assis. Fruto de uma sólida educação europeia, o pequeno Pushkin teve acesso ao que havia de melhor na arte neoclássica e, já no início do século XIX, sua literatura se tornou cerne tanto do romantismo como do realismo psicológico que iria dominar artisticamente a Europa e o mundo até a era do Iluminismo. O lugar trágico, o ideal romântico e o ponto de vista parcial, assim, fazem dele não apenas o fundador da literatura russa (Camões é o fundador da literatura portuguesa), mas um dos principais escritores da história. 

As quatro histórias que fazem parte do espetáculo, cuja dramaturgia é assinada por McIntyre, são: “O convidado de pedra”, “Mozart e Salieri” (que, ao lado de “O cavaleiro avarento” e “O banquete durante a peste”, fazem parte do livro homônimo escrito em 1830), “Conversa entre o livreiro e o poeta” (1830) e “Cena de Fausto” (1825). Nas três últimas da ordem aqui citada, é possível identificar o lugar trágico do personagem protagonista. Salieri não pode fazer outra coisa além de envenenar Mozart. O Poeta não pode fazer outra coisa que não vender seus poemas e sobreviver. Fausto precisa entregar-se a Mefistófoles e cumprir sua parte no acordo. Para esses três personagens, o destino que bate à porta deve ser atendido por mais pesado que o encontro seja. O cordeiro trágico, afinal, é aquele se entrega em silêncio ao sacrifício. O espectador sente esse poder ritualístico que atravessou os séculos de Eurípedes a Racine enquanto faz a sua crítica da situação: ao poder (o Vendedor de Livros), ao cristianismo (Mefistófoles), à mediocridade (Salieri). Baseado nesses aspectos, é possível identificar que Fabiano de Freitas estrutura a cena em retórica lenta e precisa, com frases extremamente bem articuladas, movimentos pesados e com entonações marcadas a contento. 

Ainda que, em alguns poucos momentos romântico em demasia, Renato Carrera apresenta excelente trabalho de interpretação. Os gestos são precisos, as marcas de personagens são postas de forma visível, a dicção está perfeita. Sem exceções, o trabalho de Ana Cabartti é vibrante, sólido, consistente. A dupla faz girar a evolução das narrativas com força, empurrando a encenação para o ápice que se dá em um belíssimo black-out ao som do Réquien em Ré Menor, de Mozart (a direção musical é de Roberto Bahal). Bem estruturada, a cena sintetiza as ações até ali, purgando os sentimentos do público na catarse prevista por Aristóteles em sua análise das tragédias clássicas. 

Em se tratando da cena final, em que Don Juan, personagem de “O convidado de pedra”, se encontra com a estátua do marido de sua amada, há que se dizer que o seu lugar na dramaturgia depõe contra ela. De todas, é a história menos clara, menos crítica e menos trágica. O lendário personagem de Don Juan vem dos romances de cavalaria, célebres durante o período Humanista (Cervantes) em que o homem descobria o mundo. Não é esse o lugar clássico, por mais esforços que Pushkin tenha feito em situá-lo ali. (Mozart, Baudelaire, Liszt, Dumas e Byron, com mais sucesso, o colocaram no lugar romântico que é seu de direito. Goldoni e Moliére lhe deram graça no teatro farsesco.) Nela, o ritmo da encenação de Freitas cai e nem números com guitarras conseguem fazê-la ajustar-se. 

“Pequenas Tragédias” é um espetáculo em que os elementos visuais se articulam ao espaço com excelência. O cenário de Carlos Alberto Nunes enche o lugar de cor e de conforto, sem reduzir as possibilidades de movimento. O figurino de Daniele Geammal permite sentir a oxigenação do lugar árcade (neoclassicismo) com elegância. Renato Machado tem grandes momentos no desenho de luz, sendo o seu melhor nos pequenos focos de luz visíveis quando Salieri (a direção de movimento é de Sueli Guerra) gira ao redor de seu próprio eixo com o veneno na mão. 

Exemplo de expressão técnica, inteligência conceitual e visão artística apurada, o trabalho resulta em um espetáculo teatral complexo, mas sem o peso da profundidade. É, por isso, bom objeto de estudo, bom entretenimento e ótima peça de arte. 

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FICHA TÉCNICA
Texto: Alexander S. Pushkin
Tradução: Sean McIntyre
Direção: Fabiano de Freitas
Direção de Movimento: Sueli Guerra
Direção Musical: Roberto Bahal
Elenco: Ana Carbatti e Renato Carrera
Cenografia: Carlos Alberto Nunes
Figurino: Daniele Geammal
Iluminação: Renato Machado
Fotos: Renato Mangolin
Programação Visual: Elio de Oliveira
Direção de Produção: Ana Carbatti
Produção Executiva: Cristina Carvalho
Assessoria de Imprensa: JSPontes Comunicação

quinta-feira, 18 de abril de 2013

Por que será que as amamos tanto...? (RJ)

Tuca Andrada estreia na direção
Foto: divulgação

Uma peça sobre os homens

“Por que será que as amamos tanto...?” é mais uma excelente oportunidade para quem gosta de teatro exercitar o ponto de vista e separar um texto muito ruim de uma direção muito boa. Não acredito em acepções preconceituosas do tipo “o diretor Tuca Andrada ajuda a dramaturgia de Daniel Datola”, porque literatura tem os seus instrumentos de linguagem que são diferentes do teatro. Julgar um a partir do outro é um erro grosseiro. No caso desse espetáculo, recém estreado no aconchegante Teatro Cândido Mendes, em Ipanema, zona sul do Rio de Janeiro, os diálogos do escritor argentino ainda inédito no Brasil chegam pelas mãos de Andrada, que estreia na função de diretor. No palco, os atores Marco Miranda (Leo) e Wesley Aguiar (Joca) abrem a temporada ainda bastante inseguros, enrijecidos, presos às partituras de movimento, o que é, por ora, negativo. Os indicadores, no entanto, são positivos: o teatro é  uma arte viva afinal. Com o tempo, a união Datola + Andrada + Miranda + Aguiar tem tudo para oferecer uma produção “mais azeitada” de forma que, pela temática de forte cunho popular, poderá fazer o público gargalhar, o que ainda não acontece infelizmente. 

Em cena, há uma dissertação (e não uma narração!) sobre as mulheres do ponto de vista machista, generalista e simplório por parte de dois homens casados. (Eis aí as marcas de arte popular de que se falou no parágrafo anterior. Esteja longe dos leitores qualquer preconceito sobre esse gênero teatral, tão difícil, tão rico e tão valoroso como qualquer outro, frisa-se). O problema da dramaturgia está em ficar no exato meio do caminho entre a poesia (e ironia) de, por exemplo, duas canções de “My fair lady”: “I`m an ordinary man” e “A hymn to him”, em que os homens ressaltam a sua superioridade diante do sexo feminino, e, no extremo oposto, de peças como “Diálogo dos Pênis”, coberto de piadas do tipo stand up comedy, despretensiosas e leves (do ponto de vista formal). Ou seja, “Por que será que as amamos tanto...?” parece não saber se quer ser uma narrativa tradicional, com frases ricamente construídas (cheias de próclises, ênclises e tempos verbais raros na linguagem oral) e personagens profundos, apesar da ausência total de conflito externo, ou se quer ser uma comédia de mesa de bar, dissertando acerca do panorama triste em que vivem os homens, esses em posições submissas diante de suas esposas. Cinquenta minutos depois de ter começado, sabe-se exatamente o mesmo que se sabia no décimo minuto e a revelação final surge sem ser verdadeiramente um ápice. 

Assistida por Leila Moreno, a direção de Tuca Andrada é firme, criativa e responsável por dar curvas a esse diálogo absolutamente linear. A fuga do realismo, com partituras bem desenhadas, manifesta a intenção de aproximar esses personagens do gênero farsa, justificando (e diminuindo as consequências negativas) a superficialidade das falas no não-desenvolvimento dos assuntos. Em vários momentos, o resultado é positivo, sobretudo na narração da cena da festa de casamento da qual Leo e sua esposa participaram como convidados, o melhor momento de toda a encenação. Ainda destacando positivamente o trabalho da direção, observa-se que o espaço é bem usado, vários níveis são explorados e há base para o jogo que, com o desenrolar dos finais de semana desta e das futuras temporadas, há de ser jogado (ou melhor jogado). 

Marco Miranda e Wesley Aguiar, embora não joguem entre si, têm alguns bons momentos em suas interpretações. Leo (Miranda) usa bem os tempos e as intenções, embora sem tanta desenvoltura na relação espacial. Sem boa respiração e naturalidade, Joca (Aguiar) usa bem os movimentos, criando boas situações. Cenário (Jayro Botelho e Tuca Andrada), iluminação (Fabiano Carneiro), figurinos (Ana Roza) e direção musical (Marcelo Alonso Neves) utilizam as oportunidades que têm para compor o quadro, imprimindo possíveis outros níveis de fruição, mantendo-se discretas em suas funções. Neves e Carneiro participam na criação de momentos específicos, Botelho e Andrada deixam a arena livre para o ritmo correr tão solto quanto possível e Roza estabelece diferenças entre Léo e Joca. Enquanto quadro, o resultado é positivo. 

Ao lado de tantas produções que tratam ora do universo feminino, ora dos relacionamentos contemporâneos, “Por que será que as amamos tanto...? tem seus méritos principalmente por ser possível identificar nela boas intenções. Caberá, talvez ao futuro, o sucesso ainda não visto. 

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FICHA TÉCNICA
Texto: Daniel Datola
Tradução e adaptação: Mônica Mayer
Direção: Tuca Andrada
Elenco: Marco Miranda e Wesley Aguiar
Assistente de direção: Leila Maria Moreno
Direção musical: Marcelo Alonso Neves
Iluminação: Fabiano Carneiro
Cenário: Tuca Andrada e Jairo Botelho
Figurinos: Ana Roza
Produção executiva: Edmar Caetano
Projeto gráfico: Mais Programação Visual (Humberto Costa)
Realização: Iluminata Produções Artísticas Ltda.

Aos domingos (RJ)

Texto inédito de Julia Spadaccini
ganha direção de Bruce Gomlevsky
Foto: Bruno Tetto

Peça trata da importância do acúmulo de si mesmo

Com muitos méritos, “Aos domingos”, o novo texto de Julia Spadaccini, trilha o caminho inverso do conhecido clássico do teatro brasileiro contemporâneo “A partilha”, de Miguel Falabella. Ainda que diferentes, os limites, tanto de chegada como de partida, são os mesmos: de um lado, uma herança, e, de outro, irmãos que se reencontram depois de muito tempo sem se verem. Enquanto no segundo, quatro irmãs se encontram para dividir a herança, no primeiro, em espetáculo dirigido por Bruce Gomlevsky, dois irmãos se reencontram para devolvê-la. Nas duas obras, finda a relação com os pais, resta aos irmãos muito além de objetos caros e de tipo sanguíneo comum: um dever com relação às velhas lembranças de tardes de domingo. Em cartaz no Teatro Glaucio Gil, em Copacabana (lugar narrativo onde, aliás, acontece o encontro das personagens de Falabella), Juliana Teixeira brilha na sua interpretação de "Ana", irmã de "Edu", personagem interpretado por Jorge Caetano. Além das marcas formais que ratificam as distâncias e as proximidades entre as duas peças, há que se identificar o conteúdo que “Aos domingos” guarda em si para compartilhar. 

No jardim de sua casa (no cenário, Nello Marrese ratifica a sua preferência por tablados circulares já vistos em “Os Mamutes” e em “R&J de Shakespeare”), Ana espera o irmão a quem não vê há seis anos. Nesse período, a mãe dos dois, anteriormente abandonada pelo marido, falecera. O encontro agendado para este dia tem, assim, grande significado: depois de um longo tempo, à mesma mesa, sentarão a filha, o filho e o pai. Os diálogos Spadaccini e os movimentos da direção de Gomlevsky (assistido por Glauce Guima) deixam ver de forma parcimoniosa cada personagem. A fruição disponível remete a Ibsen e a Tchekhov, talvez, por causa de uma quarta parede bastante forte e de um convite firme à catarse (purgação das emoções, segundo Aristóteles). Estamos, pois, dentro de Ana e de Edu, olhando o mundo a partir de seus paradigmas. Enquanto um foge da verdade em um casamento idealizado com Sérgio (Paulo Giardini), em sonhos com Johnny, um amigo de infância (Bruno Padilha), e com um mundo cheio de tolhas brancas, taças de cristal e ar condicionado na cozinha, o outro foge da verdade em terras distantes, em contatos mínimos com o mundo externo a si próprio e em relações passionais. Spadaccini e Gomlevsky fazem com que, nessa produção da Nova Bossa Produções Culturais, a verdade encontre o casal de irmãos. Um vulcão está para transbordar, pois é hora do acerto de contas. Só uma taça vazia, afinal, pode ser preenchida novamente. 

Em personagem coadjuvante, Paulo Giardini (Sérgio) imprime excelente resultado à obra, reforçando os momentos cômicos que, em “Aos domingos”, servem de impulso para o drama que há de vir. Ótimos tempos, entonações bem usadas, coluna curvada, sua participação é curta, mas marcante. Em uma construção bastante sóbria, Bruno Padilha (Johnny) está contido, fazendo bom contraponto com os protagonistas, esses em ebulição. No jogo de cena, Juliana Teixeira manifesta marcas de um nervosismo cheio de conteúdo, consequências de uma figura quente, sufocada, cansada de tanto esperar por ar puro depois de muito carregar as frustrações do passado (E a memória das inúteis tranças feitas pelo irmão em seu cabelo na infância para esperar o pai que nunca vinha é apenas um exemplo delas.). Seus movimentos dão ritmo, cor, consistência para a narrativa. Infelizmente, Jorge Caetano, no final de semana de estreia do espetáculo, ainda não joga em mesmo nível que a colega, manifestando uma construção pouco à vontade, endurecida e, por isso, menos contributiva com as necessidades do realismo psicológico. 

Figurinos de Flávio Souza estão bem no que diz respeito ao casal Ana e Sérgio, mas estão incoerentes com o todo em se tratando de Edu e de Johnny. Tecidos, ausência de meia (em Edu), modelagem das roupas usadas por esses dois últimos expressam um tempo que não é mesmo de vitrolas, telefones com fio e televisores pequenos. Luiz Paulo Nenen apresenta um desenho de luz cuidadoso, cheio de riqueza em detalhes que potencializa a condução das emoções. Já citado, Marrese, aqui ao lado de Natalia Lana, emoldura a história, articulando positivamente os signos em uma hierarquia que favorece o ritmo. A trilha sonora a partir de Edith Piaf acrescenta novas possibilidades de níveis para fruição sem emperrar a narrativa, mas possibilitar diferentes velocidades na construção de sentido. 

Na peça de Miguel Falabella, as irmãs não partiram para o mundo para encontrar a vida, mas para continuar a vive-la sob seus próprios pés. O retorno a casa da mãe e a redescoberta de um aparelho de chá de brinquedo são um convite para a preservação dos laços mais remotos. Em “Aos domingos”, Julia Spadaccini responde de forma a chamar a atenção para o fato de que, às vezes, é chegada a hora de cortar laços, separar o “joio do trigo” e não partilhar mais nada de si, conseguindo, assim, talvez, sobreviver às comédias da vida burguesa (de Copacabana). 

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FICHA TÉCNICA

TEXTO – JULIA SPADACCINI
DIREÇÃO – BRUCE GOMLEVSKY

ELENCO / PERSONAGENS
JULIANA TEIXEIRA - Ana
JORGE CAETANO - Edu
BRUNO PADILHA – João
PAULO GIARDINI - Sergio

ASSISTENTE DE DIREÇÃO – GLAUCE GUIMA
CENOGRAFIA – NELLO MARRESE e NATALIA LANA
FIGURINO – FLAVIO SOUZA
ILUMINAÇÃO – LUIZ PAULO NENÉM
TRILHA SONORA – BRUCE GOMLEVSKY
PROGRAMAÇÃO VISUAL – CAROLINA VAZ
VISAGISMO – EVÂNIO ALVES
GESTÃO DE REDE SOCIAL – ALAINA PAISAN
FOTOGRAFIA – PÁPRICA FOTOGRAFIA
PLANO DE MÍDIA – MAURO VIANNA
PRODUÇÃO EXECUTIVA – CAMILA VIDAL
DIREÇÃO DE PRODUÇÃO – ACACIO VELLOSO
COORDENAÇÃO DE PRODUÇÃO – JULIANA TEIXEIRA
REALIZAÇÃO – NOVA BOSSA PRODUÇÕES CULTURAIS
ASSESSORIA DE IMPRENSA – JSPONTES COMUNICAÇÃO - JOÃO PONTES E STELLA STEPHANY

terça-feira, 16 de abril de 2013

O Lobo sem Chapéu (RJ)

Rogério Barros em excelente
trabalho de interpretação
Foto: divulgação

Marta Paret e Rogério Barros "tirando leite de pedra"

Há mais graça que poesia em “O Lobo sem Chapéu”, espetáculo produzido por Marta Paret em cartaz no Teatro Sesc Arena Copacabana, zona sul do Rio de Janeiro. Voltado para crianças, a peça tem o interessante resultado de não resgatar nos adultos as crianças que ainda vivem dentro deles, mas parece esperar que os adultos gostem da peça (tanto quanto as crianças) mantendo-se como tais, mas por motivos diferentes. Talvez com o desejo de explorar vários níveis de fruição, o texto de Denise Crispun é complicado, porque sem definições. No mesmo sentido, a direção de Beto Brown não é bem articulada, deixando opções sem justificativas claras. As bases estéticas sem consistência importantizam a função dos atores nesse trabalho. Com Paret e Rogério Barros em boas interpretações, o espetáculo tem, ao final, bom resultado também no uso dos figurinos e da iluminação. Barros está excelente! 

Nessa montagem, “sobra” para os atores a árdua tarefa de “tirar leite de pedra”, isto é, “fazer tripas coração” a fim de tornar o texto interessante, traduzindo com um pouco de lógica possível a direção cambaleante. Marta Paret e Rogério Barros, dupla que já mostrou excelente trabalho em “Navalha na Carne”, carregam nas cores de suas construções para dar vida aos personagens que interpretam e às situações em que esses se envolvem. Mesmo assim, reconhecido esse esforço, sai-se sem a certeza sobre o que de que se trata a peça. A protagonista é uma atriz em busca do papel de “Chapeuzinho Vermelho” num espetáculo de teatro ficcional? Ou é a célebre personagem do conto de Charles Perrault, então enfastiada de sempre repetir a velha história a ponto de, um dia, resolver desaparecer, deixando sua mãe aflita e sua avó sem doces? Em ambos os casos, o Lobo, citado no título, não é o protagonista. 

Ainda sobre a dramaturgia, no palco, vemos os personagens tradicionais (Chapeuzinho, Vovó, Mamãe, Lobo e Caçador) ao lado de novas figuras (Jovem Atriz, Detetive e Diretor de Teatro) agindo no mesmo local, em situações concomitantes, mas não facilmente claras para a fruição. Por Paret e sobretudo por Barros, esse mais ágil, com mais movimentos minuciosos e mais marcas diferentes que dão a ver seus personagens diversos, a peça agrada e envolve positivamente ao final, porque tem balanço, tem cor, tem vida e, sobretudo, pouco tempo de duração. O fato de cruzar um desafio tão grande torna os méritos de “O Lobo sem Chapéu”, enquanto produção artística, ainda maiores: faça-se saber. 

São potentes em seus usos simples o desenho de iluminação de Djalma Amaral e de figurino de Teca Fichinski. O cenário, também de Fichinski, que desenha no palco a la “Dogville (o filme de Lars von Trier, para citar um referencial mais conhecido do grande público) os diversos ambientes onde a ação se passa, é rico no sentido de permitir o ritmo veloz exigido pelas concepções necessariamente histriônicas de interpretação. A trilha sonora de Marcelo Alonso Neves é sem destaque, embora marque positivamente a evolução da narrativa. 

A direção de Beto Brown deixa ver sua fragilidade na incoerência de suas opções. Se de um lado temos cadeiras e cestas de palha, além de figurinos bastante referenciais, de outro temos garrafinhas d`água (?) e bloco de anotações que fazem as vezes de telefone quando uma ligação é recebida ou realizada. Num terceiro lado ainda, há o cigarro e a bebida de um dos personagens que aparece em forma de mímica, ficando invisível concretamente na encenação. Sem fortalecer o metateatro ou tampouco o teatro em si, Brown não terá aqui um dos melhores trabalhos. 

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FICHA TÉCNICA
Texto: Denise Crispun
Direção Beto Brown
Elenco: Marta Paret e Rogerio Barros.
Direção musical: Marcelo Alonso Neves
Direção de movimento: Joice Niskier
Cenário e figurino: Teca Fichinski
Iluminação: Djalma Amaral
Direção de produção: Marcelo Cabanas e Camila Martins
Produção executiva: André Rocha
Assessoria de imprensa: Jongo
Produção e realização: Marta Paret

domingo, 14 de abril de 2013

Caixa de Areia (RJ)

Júlia Marini e Flávio Graff brilham em última parte
da Trilogia Pessoal de Jô Bilac
Foto: divulgação

Pensar a vida ao invés de simplesmente vivê-la: Jô Bilac ganha mais uma vez

“Caixa de Areia” (2013) é a última parte da Trilogia Pessoal, escrita por Jô Bilac, antecedida por “Savana Glacial” (2009) e por “Popcorn” (2011). Se, na primeira, estava em cena o criador, na segunda, a questão era a criação. Agora, quem figura no centro da narrativa é a crítica. Mais uma vez, Bilac oferece excelentes diálogos e uma construção dramatúrgica não linear que, para quem está acostumado com narrativas mais contemporâneas, tem, em sua forma, muito mais a dizer do que propriamente no conteúdo. O jogo de palavras no diálogo, a sua organização fala após fala, com pontos de virada específicos traduzem em conjunto o ponto de vista do autor sobre os personagens: eles não estão ali por acaso, simplesmente contando uma “historinha”, mas têm funções bem definidas e com vários níveis e possibilidades de fruição. Como nas duas peças já citadas, “Caixa de Areia”, dirigida por Sandro Pamponet e pelo próprio Bilac, só faz sentido enquanto todo, adiando para o fim o seu sentido mais pleno. A crítica de arte Ana precisa encontrar na sua vida exatamente o que precisa procurar nas peças a que assiste como parte seu trabalho: algo concreto que dê lógica para o todo e seja suporte para a análise e, consequentemente, a avaliação. Sem isso, sem esse ponto firme no qual o crítico de arte precisa se agarrar, tudo nas obras parece “solto no ar”, etéreo demais e, por isso, impossível de compreensão (e, consequentemente, de tradução num texto analítico que deverá servir aos leitores de críticas). Em cartaz no Teatro do Sesi, no centro do Rio de Janeiro, há aqui uma peça de teatro que sustenta nos diálogos fortes a atenção da plateia mais disposta a pensar do que simplesmente reagir de forma emocional. Com produção de Mariana Serrão, eis um espetáculo que está longe de ser mero entretenimento. 

Mais de vinte anos depois da separação do marido, Ana reencontra o ex pela primeira vez. Ao contrário do que ela pensou (ou planejou) que seria, ele morrera antes dela e esse reencontro se dá no velório dele, com o seu corpo deitado imóvel no caixão. “Caixa de Areia” começa quando Ana volta a casa onde morou com seus pais e seus irmãos na infância e onde também morou com esse ex-marido agora morto. O fim do casamento foi precedido por um acontecimento trágico: o filho do casal, ainda um garoto, morrera, deixando a mãe repleta de culpa pelo acontecido e o marido desolado pela perda. Estranhamente, no dia do enterro do menino, o casal, ele um jornalista e ela uma crítica de arte, foi assistir a um espetáculo de teatro. Naquela noite, Ana escreveu a análise dessa peça, mantendo o seu profissionalismo apesar do momento de dor que a situação lhe impunha. Agora, décadas depois, com o ex-marido enterrado, ela retorna ao lugar onde tudo isso aconteceu, sentindo imensa necessidade de reler essa crítica, uma espécie de “pedra filosofal” que possa dar sentido para a sua existência. Ana acredita que essa análise distante possa ser um símbolo concreto do quanto ela conseguiu e consegue se distanciar dos acontecimentos que se passam diante de si. Ela não amara a mãe como gostaria, não amara o filho como gostaria, não amara o marido como gostaria. Entender racionalmente todos esses porquês, talvez, lhe ajude a observar de forma mais integral o passado mal resolvido, sendo esse, quem sabe, o ponto de vista essencial para poder planejar o resto de futuro que lhe resta. Daí que reencontrar esse texto é o motivo que lhe leva de volta a esse lugar, a esse passado.

Como em “Savana Glacial” e como em “Popcorn”, os acontecimentos na dramaturgia de Jô Bilac não se dão de forma linear, mas misturados, sem lógica aparente e, por isso, têm a possibilidade de representar o real além da narrativa com mais força. Embora haja quem sinta (ou saiba) que os fatos da vida não são por mero acaso, mas fazem parte de uma lógica invisível, o senso comum busca nas histórias a que assiste a relação de “causa e consequência” que, talvez, nem exista fora da ficção tradicional. A complexidade da narrativa de Bilac, cuja bisavó brasileira são os três planos de “Vestido de Noiva”, de Nelson Rodrigues, é uma característica formal presente em todos as obras dessa trilogia. Aqui, de forma mais sensível que nas demais, a opção fortifica um mote que, provavelmente de outro jeito, seria superficial demais e bastante difícil de ser tratado com mérito. Eis, então, o ponto crucial do grande valor que esse espetáculo tem: discorrer com profundidade e com extrema elegância um argumento difícil e bastante longe de ser banal. 

Júlia Marini, que interpreta Ana quando jovem (e casada), nunca ofereceu um trabalho com tanta força, sensibilidade e potência (nas outras vezes em que a assisti) como aqui. Pela primeira vez com excelente uso da carga emocional, ela dosa a energia da personagem, passando da neutralidade à convulsão sem pular nenhum degrau nessa linha ascendente de expressão. Sua presença é sólida e forte, sendo, de fato, o pilar central tanto dessa dramaturgia de Bilac como dessa encenação de Bilac e de Pamponet. Taís Araújo, que interpretada a mãe; e Cris Larin, que dá vida à Ana no presente, estão excelentes também na viabilização de seus personagens. A riqueza de suas construções está em uma visível sobriedade  exterior quando, por dentro, seus sentimentos sucumbem à ruína. Enquanto a Mãe (Araújo) convive com uma filha que a chama de imbecil e com um marido que a abandona em meio a antigos valores que parecem já não fazer sentido, Ana segue sendo a crítica de arte que se esforça em parecer inatingível e imparcial diante de um espetáculo cheio de dor da qual ela mesma faz parte. Em personagens secundários, Luis Henrique Nogueira (o Pai) e Jaderson Fialho (o Marido) aproveitam os poucos momentos que têm para mostrar excelentes trabalhos e, dadas as devidas proporções, atuam no mesmo nível que suas colegas. Nesse sentido, a direção de Bilac e de Pamponet oferece um trabalho de elenco coeso e consequentemente forte que é responsável pela estrutura firme, porque bem articulada, possibilitada também pela direção de movimento de Viétia Zangrandi. 

A cenografia de Flávio Graff é um espetáculo visual à parte. Com mérito dos pequenos detalhes ao todo, o trabalho é um dos mais interessantes já vistos nos palcos do Rio de Janeiro no último ano. Ao mesmo tempo em que faz crescer vegetação em um lugar aparentemente já morto, deixa ver a aridez (árido e areia são palavras com mesma origem etimológica) de jornais antigos, guardados ao invés de ter sido reutilizados para enrolar “peixe”. Em um lugar em que escrivaninhas e cadeiras ganham do chão às alturas, e gavetas e armários se acumulam, o passado e o passado do passado se encontram no presente e podem sufocar a coragem de quem ousa, anos depois, voltar a eles. 

Graff encontra bom eco nos figurinos de Patrícia Muniz e na iluminação de Adriana Ortiz. O quadro, ainda formado pela direção e produção musical de Samantha Rennó (com composições musicais de Rennó, Cris Vergara e de Luiza Brina), é articulado com excelência estética em termos de forma e de conteúdo, esse mérito do mestre Beto Carramanhos, sem dúvida, um expoente no seu ofício de visagista. 

“Caixa de Areia” não é um espetáculo que espera um público disposto a rir, se alienar e a engordar sua carga de divertimento semanal com um programa cultural de junk art. Suas cortinas se abrem para quem quer desfrutar arte de alta qualidade e oferece, em retorno, além de belos trabalhos estéticos, conteúdo sólido para pensar a vida em relação contrária a simplesmente vivê-la. Jô Bilac ganha mais uma vez. 

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FICHA TÉCNICA
De: Jô Bilac
Direção: Jô Bilac e Sandro Pamponet

Elenco: Taís Araújo, Luiz Henrique Nogueira, Cris Larin, Jaderson Fialho e Júlia Marini

Cenografia: Flavio Graff
Iluminação: Adriana Ortiz
Figurino: Patricia Muniz
Direção de Movimento: Viétia Zangrandi
Preparação Vocal: Verônica Machado
Direção de Produção: Miçairi Guimarães e Zulma Mercadante
Direção e Produção Musical: Samantha Rennó
Composição e Arranjos: Samantha Rennó, Cris Vergara, Luiza Brina
Participações Especiais : Márcio Bahia, Felipe Prazeres, Daniela Rennó, Demosthenes Junior
Técnico de Gravação: Pedro Veloso
Técnico de Mixagem e Masterização: Marcelo Frisieiro
Programação Visual: Leticia Andrade
Fotografia: Paula Kossatz
Vídeos: Johnny Luz
Assessoria de Imprensa: Will Comunicação e Luiz Menna Barreto
Visagismo: Beto Carramanhos
Assistente de Cenário: Clarice Bueno
Cenotecnia: Humberto Silva
Assistente de Figurino: Patricia Delvaux
Máscaras: Léobruno Gama
Modelista: Socorro
Alfaiataria: Fátima Léo
Operador de Luz/Assistente de Iluminação: Aramís David Correia
Operador de Som: Romiro Vasques; Kelson Santos e Jorge Madeira
Camareiro: Kaka Silva
Administração: Foco Arte Produtora
Produção Executiva: Mariana Serrão
Assistente de Produção e Contraregragem: Marcel Formiga
Realização: Taís Araújo, Zulma Mercadante e Cena 27 Produções

sábado, 13 de abril de 2013

Canastrões (RJ)

Pedro, Paulo e Gabriel Gracindo em excelente espetáculo
Foto: divulgação

Uma obra de arte!

Como é bom ver bom teatro! “Canastrões” é uma grata surpresa. Em cartaz no Teatro dos Quatro, do Shopping da Gávea, eis aí uma produção que merece ser vista por vários motivos. Para mim, o principal deles é o que ela oferece enquanto retórica sobre o próprio tema e o como isso acontece totalmente interligado com os demais elementos em perfeita sintonia. Harmônico nos seus pontos de vista estéticos, profundo enquanto retórica, desafiador enquanto produção e extremamente valoroso na sua realização, o espetáculo tem ritmo, tem profundidade, tem beleza. Assistir-lhe é pensar o teatro de ponta a ponta: sua história, sua presença no Brasil, sua linguagem como acontecimento único diante do público e os aspectos práticos referentes à sua realização e os políticos em termos de sua relação com a grade de produções em cartaz no mesmo teatro, no mesmo bairro, na mesma cidade, sem comparações insólitas, mas com pensamento voltado sobre a riqueza dessa diversidade. Com direção e encenação do espanhol Moncho Rodriguez, em cena estão Paulo Grancindo Junior e seus dois filhos, Gabriel Gracindo e Pedro Gracindo. Em todos os momentos, sente-se também a participação do grande ator Paulo Gracindo (1911-1995) que, em 2011, teria completado 100 anos. O aplauso final é uma homenagem sobretudo a ele.

A peça “Canastrões” parte esteticamente da farsa tradicional: a farsa de rua, os atores mambembes, indo de cidade em cidade, pedindo passagem e apresentando histórias já anteriormente escritas ou recentemente inventadas, cujos personagens fazem referências com conhecidos do público, sustentando a tradição dos personagens célebres: os enamorados, o arlecchinho, o comilão, o puncchinello, o dottore, entre outros. Os joelhos curvados, o quadril encaixado, o eixo verticalizado sobre si mesmo e as estreitas relações com os animais que motivaram a construção e a ratificação dessas figuras (a cobra, a galinha, o pavão, o macaco,...) também se fazem presente. Constam ainda os instrumentos musicais, o ritmo rápido, a meia-máscara e a máscara inteira, as feições e as entonações exageradas. Tratam-se de três histriões, chegando ao palco para contar sua história ao público, esse sempre diferente, novo a cada noite, diferente em cada praça. Tudo isso, engendrado e disposto com vistas não a uma história farsesca, com uma narrativa cheia de pontos de mudança e de piadas conhecidas de gosto popular, mas a algo totalmente inusitado: o discurso filosófico. 

Nessa produção, a família Gracindo está em cena, comemorando o seu centenário de dedicação ao teatro, o ofício que está sendo passado de pai para filho: seus dissabores, seus momentos mágicos, as técnicas, os conceitos, os valores escondidos por trás de cada opção na construção da carreira. Moncho Rodriguez, sob encomenda, constrói um texto primoroso em que disseca com cor, graça, profundidade, beleza e altíssima profundidade e inteligência um texto ímpar em que atores e público são convidados a refletir sobre o que é o teatro, quem são os atores e quem é o público. Qual é o papel de cada um nesse encontro? Quem é cada um? Num esforço ontológico de buscar definições que identifique as partes, mas sem ficarem-se presos em suas descobertas, a intenção é manter a liberdade etérea na qual está o cerne da arte da encenação. Com grande habilidade, o grupo tergiversa sobre o mesmo tema, prendendo a atenção do público, mantendo a plateia em estado de pensamento reflexivo, em catarse e, ao mesmo tempo, em racionalização, casamento esse que é fruto da união inimaginável entre a farsa totalmente superficial e o discurso retórico bastante carente de atenção. Radicado no nordeste brasileiro, o trabalho de Moncho Rodriguez, nesse espetáculo, é uma pérola. 

Os três Gracindo interpretam histriões: atores em personagens e em si próprios nesse misto de teatro e de vida além da narrativa que nem sempre tem limites bem definidos. Paulo, o pai, sustenta uma figura forte, o pilar de sustentação dos outros dois: uma voz extremamente bem usada; uma interpretação comedida, mas não discreta; a concretização da força, da sabedoria e o semblante de quem, aos poucos, começa a deixar para os jovens o cabo da nau, como uma vez, das mãos de seu pai, aconteceu com ele. Com excelente dicção, vê-se ali um belíssimo trabalho de interpretação no uso dos tempos, no reforço das pausas, na exploração das diferentes intenções, entonações e dos desenhos de movimentos. Pedro segue o mesmo caminho, sustentando a liberdade e a espontaneidade na interpretação de sua figura, além de extremo bom uso dos instrumentos musicais: voz, violino e violão. Gabriel, bem dirigido, está mais frio no início da apresentação, mas percebe-se nele um crescimento ao longo da peça, de forma que, no final, o elenco está unido, unânime, coeso, coerente e com laços sólidos. 

Com produção de Osni Júnior, “Canastrões” apresenta um excelente resultado em todos os aspectos: cenário, figurino, trilha sonora e iluminação, todos esses elementos assinados por Rodriguez. Talvez seja esse um dos motivos da articulação tão firme entre os dois extremos tão inusitados: a farsa e a filosofia. 

Em cartaz na cidade, uma peça rara. A história de uma família, uma homenagem a si próprios, mas também aos seus pares; a citação de diversos elementos da nossa cultura (e São Saruê é apenas é uma delas) e, sobretudo, um manifesto bom uso de vários recursos do repertório teatral. Excelente! 

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FICHA TÉCNICA
Texto e encenação: Moncho Rodriguez
Trilha sonora: Pedro Gracindo e Narciso Fernandes
Cartaz: Juarez Machado
Fotos: Guga Melgar
Diretor de palco e Operador de luz: Cristiano Cássio
Direção de produção: Claudia Goldstein
Produção Executiva: Osni Jr
Realização: Gracindo JR Produções

ELENCO:
O Enviado: Gracindo Junior
O Acontecido: Gabriel Gracindo
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sexta-feira, 12 de abril de 2013

À beira do abismo, me cresceram asas (RJ)

 Maitê Proença apresenta uma belíssimo trabalho
ao lado de Clarisse Derziê Luz
Foto: divulgação

O vôo de Maitê Proença

A tirar pelo seu excelente trabalho em “À beira do abismo, me cresceram asas”, pode se dizer que Maitê Proença deveria fazer mais teatro. Quem está acostumado a vê-la apenas bela nas grandes e nas pequenas telas, e nessas em pequenas e em médios planos, se surpreende positivamente com o seu trabalho exposto por inteiro, agora, no palco da Sala Fernanda Montenegro no Teatro do Leblon. Trata-se de uma peça simples, com roteiro de autoajuda e cheio dos clichês melodramáticos já esperados, o que não faz dela nenhum pouco menor enquanto objeto de arte (para quem é livre de preconceitos). Ao contrário, parte-se daí, desse lugar seguro, a avaliação de que a produção assinada por Cássia Vilasbôas (Nove Produções) é bem feita, porque segura na construção de sua própria identidade. Parte-se do clichê, mas não se fica nele. Os bons valores de “À beira do abismo,...” encontram eco nos ótimos trabalhos de interpretação, incluindo o de Clarisse Derziê Luz, mas sobretudo nas concepções de figurino e de cenário de Beth Filipecki e de Cristina Novaes respectivamente. Se o tema é simples, o trato é profundo e feito com valoroso esmero nos detalhes. Eis aí uma peça que lembra o homem enquanto homem, aproximando uns dos outros na plateia pela sua relação com a velhice própria e alheia a partir de sugestões cheias de beleza, investigação e poesia advindas do palco. Um belo trabalho! 

Com supervisão de Amir Haddad e com direção de Clarice Niskier e de Proença, o trabalho de atriz da segunda está sobretudo no olhar. É raro no teatro ver tão bom uso os tempos e das intenções todas elas baseadas no ponto focal, isto é, no para onde Maitê olha quando fala, ouve ou quando reflete. Seja para onde for, o espectador sente que é desse lugar (como que se concreto) que surge o trampolim para a reação ao que está acontecendo na cena. O trabalho, mérito da direção, tem excelente ritmo, delicadeza e força nos movimentos bem planejados, detalhes bem postos. O uso da voz, maior carência de Proença enquanto atriz, em um dos momentos, alcança bom resultado. É quando a personagem fala sobre a verdade de sua personagem que, na verdade, está dentro do que o outro vê sobre ela. Aí, o tom baixa, adquire uma cor mais gutural e vemos a atriz, pela primeira (e única vez) explorar um tom diverso que normalmente usa. 

Positivamente, vale destacar também a generosidade de Maitê Proença em cena. Todos sabemos que ela lidera a produção não só do ponto de vista da idealização do projeto, mas por ser simbolicamente o nome mais forte, devido aos trabalhos na televisão ao longo das últimas décadas. No palco de “À beira do abismo, me cresceram asas”, fãs e não-fãs encontrarão a profissional, muitas vezes, de costas ou de lado, ou simplesmente discreta e em silêncio, apontando o olhar do espectador para o trabalho de Clarisse Derziê Luz, esse cheio de força e excelentes usos dos tempos, da voz, do corpo e dos significados das palavras. Tem-se aí uma bela dupla de intérpretes, em que o jogo é equilibrado e, por isso, bastante bem feito. 

A dramaturgia contrapõe duas personagens bastante interessantes. Cheia cor, vivacidade, alegria e disposição, Valdina (Luz) deixa ver aos olhos mais sensíveis um interior pesado, porque cheio de mágoas. Seu bordão “Oh, Glória!” acaba por ser uma metáfora, uma máscara para as “inglórias” de sua vida. Ao seu lado, Terezinha (Proença) vive a depressão do abandono, da solidão, da velhice com coragem e sem artifícios. Talvez justamente por isso, por ser mais sincera com os próprios dissabores, diante do abismo, crescer-lhe-ão asas (O filme “Melancolia”, de Lars Von Trier, também trata da mesma tese). Nesse sentido, em termos teórico-analíticos, o espetáculo pode até parecer um drama sobre duas velhas companheiras abandonadas em um asilo, mas não é. O texto original de Fernando Duarte resultou, afinal, em um trabalho contemporâneo e forte que retirou o conflito narrativo do palco e o colocou sob a responsabilidade do espectador. Ela, a plateia, é quem identifica o que está por trás de cada figura e constrói, a partir daí, as articulações possíveis na estrutura tão bem engendrada por Niskier e por Proença. 

Sem dúvida, um dos maiores valores estéticos de “À beira do abismo” é o figurino de Beth Filipecki. Detalhe por detalhe, da maquiagem, à modelagem, passando pelo corte, pelas texturas, pelas estampas, as roupas caracterizam, sim, Terezinha e Valdina, mas vão além em suas asas. No processo de fruição, é possível encontrar, nas roupas, algumas indicações úteis sobre quem está mais preparada para voar embora triste e quem está mais disposta a ficar embora alegre. Cenário (Novaes), iluminação (Jorginho de Carvalho) e trilha sonora (Alessandro Perssan) acompanham Filipecki nos elogios. 

Seria superficial dizer que “À beira do abismo, me cresceram asas” é o que quer ser, embora esse já seria um grande valor. É supreendentemente mais! 

*

FICHA TÉCNICA
Autora: Maitê Proença
Texto original: Fernando Duarte
Supervisão Direção: Amir Haddad
Direção: Maitê Proença e Clarice Niskier
Elenco: Maitê Proença e Clarisse Derzié Luz
Cenário: Cristina Novaes
Desenho de Luz: Jorginho de Carvalho
Figurinos: Beth Filipecki
Trilha Sonora: Alessandro Perssan
Direção de Movimento: Angel Vianna
Preparação Vocal: Rose Gonçalves
Assistente de direção e produção: Mayara Travassos
Assistentes de Iluminação: Daniel Galván
Assistente de Figurino: Edy Galvão
Confecção de Figurinos: Atelier de Costura – Edy & Ga
Assistente de Cenografia: Dina Levy
Assistente de Movimento: Marina Magalhães
Fotografia: Renata Dillon
Visagista: Cristiane Vicente
Maquiagem: Fabíola Gomez
Design Gráfico: Cubículo
Técnica em Iluminação Cênica: Poliana Pinheiro
Técnico de Montagem de Luz: Antônio Diniz
Técnicos Auxiliares de Luz: Denni Cintia, Marcos Braga e Samitri Bará
Operador de Luz: Hélio Malvino
Operador de Som: Alexandre Corecha
Diretor de Cena: André Boneco
Camareira: Nájala Nascimento
Assessoria de Imprensa: Daniella Cavalcanti
Assistente de Assessoria de Imprensa: Fernanda Miranda
Direção de Produção: Cássia Vilasbôas
Produção Executiva: Fernando Duarte
Administrativo Financeiro: Karime Khawaja
Realização: NOVE PRODUÇÕES

quarta-feira, 10 de abril de 2013

Na bagunça do teu coração (RJ)

Anna Bello e Cristiano Gualda
protagonizam musical com músicas de
Chico Buarque
Foto: divulgação

O estranho poder de fazer Chico Buarque ser inconveniente

O maior mérito de “Na bagunça do teu coração” é vencer o desafio da sua própria existência. Os ótimos arranjos para as canções de Chico Buarque e as boas interpretações de Anna Bello e de Cristiano Gualda, sob sábia direção de Rafaela Amado, merecem efusivos parabéns. A proposta em questão é muito difícil e, por terem vencido batalha tão insólita, as honras devidas são maiores. O grande problema diz respeito ao texto, afinal, comédia romântica é uma coisa e Chico Buarque é o seu exato oposto. Nesse sentido, a dramaturgia de João Máximo e de Luiz Fernando Vianna consegue fazer com que um dos maiores compositores da música popular brasileira pareça inconveniente. Em cartaz no Teatro dos Quatro do Shopping da Gávea, vale a pena ver o resultado de uma guerra vencida em nome da arte teatral, contemplando assim o talento de seus realizadores: elenco, músicos, direção e produção. 

O que caracteriza os musicais compostos por Chico Buarque, bem como boa parte de suas canções, é a brasilidade, então, traduzida por meio da ironia, do deboche, dos sentidos ocultos, do jogo de palavras, de seus sons, de seus significados. Nas letras, o tom político, bem como o sensual, estão presentes  ao longo das cinco décadas de música da carreira do artista. Os meios tons, as quebras do samba, a malemolência e a alegria (mesmo que trágica) do brasileiro são, em termos de suas articulações, o segredo que faz Chico Buarque ser quem é para a cultura nacional. No extremo oposto, estão as comédias românticas, o melodrama novelesco, a história idealizada. Com todo o respeito aos dois gêneros, e admiração a ambos, notar que um é diferente do outro não é situar um em lugar mais alto que o outro. Tarkovski seria um péssimo autor de novelas. O excesso de tempos mortos na TV faz cair a audiência. “Na bagunça do seu coração” parece ser “The Sound of Music” escrita por Stephen Sondheim. 

O velho e batido roteiro de história de relacionamentos (que continua agradando há décadas e décadas a fio sem desmérito) se repete: um casal se conhece, se apaixona e casa. Começam a aparecer as diferenças, vêm as brigas, eles se separaram. Cada um segue o rumo da sua vida, tentando esquecer o ex-cônjuge. Então, se reencontram e vivem felizes para sempre. Bastante longe da complexidade das relações fluídas vividas na vida além das narrativas românticas, o sucesso do gênero faz par com o alto número de vendas de “Cinquenta tons de cinza” (Erika Leonard James). Seu lugar está garantido por atender a uma demanda que, sem nenhum preconceito, tem o seu valor estético bastante assegurado. A questão aqui é que nada disso tem a ver com Chico Buarque. 

Num determinado momento da peça, por exemplo, quando, ainda casados, Ele e Ela começam a brigar, canta-se “O casamento dos pequenos burgueses”. Chico Buarque, com ironia e força, fala de um casal que se odeia, em que um pensa na morte do outro, um trai e o outro finge que não sabe, em que ambos mantêm as aparências. Parte do espetáculo “Ópera do Malandro”, a canção surge no fim dos anos 70, engrossando a campanha em prol da aprovação da lei do divórcio, o que aconteceu em 1979. Na peça escrita por Máximo e por Vianna, o aparecimento dessa canção nessa cena é um equívoco: o casal de protagonistas de "Na bagunça do teu coração" não finge que se ama e não deixará para a morte a responsabilidade pela separação. Nesta dramaturgia, o casal se separa logo em seguida, ou seja, a leveza de que o melodrama precisa para correr solto, privilegiando a sucessão dos acontecimentos, emperra na profundidade da chanchada de Chico Buarque. No repertório de Chico, a história é menos importante que a riqueza semântica dos diálogos. Em outras palavras, o hermetismo apolíneo de “Na bagunça do teu coração (Ele terá três namoradas, Ela terá três namorados. Eles se conhecem numa festa de réveillon em Copacabana, eles se reencontrarão, também, numa festa de réveillon em Copacabana) atrapalha e é atrapalhado pela desforma sensorial dionisíaca de Chico Buarque. 

Tirando a trilha sonora, tudo no espetáculo é coerente. Com uma pequena exceção (o bolerinho amarelo da alagoana), todo o figurino (Teca Fichinski) varia de cinza a vermelho, passando pelo azul e pelo rosa. O cenário parte de uma concepção inteligente, que favorece a comédia romântica e a sua agilidade. Sem grandes destaques, o desenho de luz de Luiz Paulo Nenen também aponta para a narrativa em detrimento da forma. Os trabalhos de interpretação são positivos, sobretudo do ponto de vista musical, em que tanto Bello quanto Gualda protagonizam excelentes números, considerando a intenção do gênero comédia romântica. (No fim dos anos 90, Claudio Botelho e Cláudia Netto interpretaram os personagens e, como agora, naquela oportunidade, foi principalmente a escolha do elenco e da direção, quem garantiu os aplausos.)

A apoteose final de Máximo e de Vianna, a família Von Trapp subindo os Alpes, o casal se reencontrando em felicidade, faz o público sair animado do teatro. Alienado de sua vida real, a que está prestes a se reencontrar, o público esquece o tom amargo de deboche contida na felicidade em technicolor de Chico Buarque. Ela pareceria, afinal, um imenso estraga prazeres. 

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Ficha Técnica
ROTEIRO João Máximo e Luiz Fernando Vianna
MÚSICAS Chico Buarque
DIREÇÃO GERAL Rafaela Amado
DIREÇÃO MUSICAL João Bittencourt
ELENCO Anna Bello e Cristiano Gualda
BANDA Ajurinã Zwarg | João Bittencourt | Tássio Ramos
DIREÇÃO DE MOVIMENTO Ana Bevilaqua
PREPARAÇÃO VOCAL Ângela Herz
ILUMINAÇÃO Luiz Paulo Nenen
CENOGRAFIA e FIGURINO Teca Fichinski
DESIGN GRÁFICO Leo Miranda
DIREÇÃO DE PRODUÇÃO Ana Paula Abreu e Renata Blasi
PRODUÇÃO Diálogo da Arte Produções Culturais
REALIZAÇÃO Doravante Produções Artísticas

terça-feira, 9 de abril de 2013

A poltrona escura (SP)

Baseado em três textos de Pirandello, monólogo
estreou em 2003
Foto: Lenise Pinheiro

Trilogia Pirandello – segunda parte: Sem articulação

Em “A poltrona escura”, Cacá Carvalho está maior que Luigi Pirandello (1867-1936) e, por isso, o resultado não é bom. Uma vez que não há signo teatral, isto é, todos os signos são tornados teatrais, faz parte da identidade do teatro a sua característica congregadora. No momento em que o teatro se impõe, ele perde. Em cartaz no Mezanino do Sesc Copacabana, zona sul do Rio de Janeiro, a peça é a segunda parte da Trilogia Pirandello, da qual também fazem parte os espetáculos “O homem com a flor na boca” e “umnenhumcemmil”. 

A dramaturgia assinada por Stefano Geraci une três textos do autor italiano: “Os pés na grama”, “O carrinho de mão” e “O sopro”, publicados nos livros “Berecche e la Guerra” (1919) e “Candelora” (1928) de forma não articulada. Ou seja, o espectador desavisado não tem instrumentos necessários para ver que, no palco, são três personagens diferentes em contextos, inclusive estéticos, diferentes, mas negativamente é convidado a pensar que trata-se de uma só persona em uma história mal escrita. Não há mudanças na interpretação de Carvalho e nem tampouco no cenário, no figurino, no desenho de iluminação, ou na forma como o ator se dirige ao público (encenação). O teatro, assim, amordaça os textos (Pirandello) sobre suas ordens (Bacci) em uma narrativa que dura quase duas longas horas (Geraci) em que o espectador, perdido, tenta dar sentido ao que, de fato, não faz sentido. 

Na primeira história, depois da morte da esposa, o marido vê-se abandonado no quarto dos fundos, abandonado pelo filho e condenado a se despedir de suas referências mais essenciais (os móveis da casa, por exemplo). Trata-se de um Pirandello realista, herdeiro de Ibsen no teatro psicológico europeu. Na segunda, um conhecido advogado expõe seu ranço com a sociedade que o cerca e confessa o meio de que se utiliza para se livrar da tensão: uma tara sexual, um segredo a ser guardado a sete chaves. Eis aí um Pirandello que, por estar mais próximo de Albee, pode ser facilmente lido como um dos iniciadores do teatro do absurdo que, décadas depois, será conhecido. Por fim, na última narrativa, que é mais próxima da segunda, há um homem que descobre ter um poder sobrenatural, capaz de tirar a vida de outrem com um gesto simples e discreto. O fato o torna senhor da morte e da vida alheia. Sem perceber as passagens de uma história para a outra, a plateia espera ansiosa pelo desfecho da primeira parte quando começa a segunda e das duas quando começa a terceira, acreditando que o todo é um ato só. “O senhor viúvo é quem tem o poder de matar? O advogado é o filho do senhor viúvo ou uma lembrança que ele tem de quando sua esposa ainda era viva?” Como uma novela mal resolvida, os núcleos são abertos, mas não se fecham claramente aos olhos de para quem o teatro é dirigido. Desse modo, é possível afirmar que “A poltrona escura” é um espetáculo fechado em si mesmo. 

Cacá Carvalho é um intérprete forte, potente e que conhece bem seu potencial expressivo. Sem um bom trabalho de direção, como é o caso aqui, o personagem único carece de marcas que valorizem forças, diferenciem tons, segreguem situações. Sem coesão, nem coerência, o trabalho nesse espetáculo parece histriônico demais, como que um portfólio das potencialidades do já renomado artista. É nele, em Carvalho, que se baseia a afirmação de que, nessa peça, o teatro parece querer ser mais forte que Pirandello. 

Sem articulação, elementos estéticos como figurino, cenário (ambos de Márcio Medina) e iluminação (Fábio Retti) aparecem insujeitos à avaliação, porque deslocados de uma estrutura que lhes dê suporte. Com estreia acontecida há dez anos, em 2003, a produção não agrada. 

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FICHA TÉCNICA - Trilogia Pirandello

COM: Cacá Carvalho

Direção: Roberto Bacci
Dramaturgia: Stefano Geraci
Cenário e figurino: Márcio Medina
Iluminação: Fábio Retti
Fotos : Lenise Pinheiro
Produção: Fondazione Pontedera Teatro
Realização: CASA LABORATÓRIO PARA AS ARTES DO TEATRO, FONDAZIONE PONTEDERA TEATRO/Italia
Gestão e Produção Executiva: Núcleo Corpo Rastreado
Assessoria de Imprensa no RJ: Lu Nabuco Assessoria em Comunicação
Produção no RJ: 3! Ideias e Soluções Culturais
Técnico de Luz: Yuri Cumer
Tradução: Cacá Carvalho
Arte grafica trilogia: orbi designer