sexta-feira, 21 de julho de 2017

Dois amores e um bicho (RJ)

Curta nossa página no Facebook: www.facebook.com/criticateatral
Siga-nos no Instagram: @criticateatral
Foto: divulgação

José Karini



Ótimo espetáculo da Notória Cia de Teatro

“Dois amores e um bicho” é o segundo e ótimo espetáculo do grupo carioca Notória Companhia de Teatro. Dirigida com mão firme e perspicaz por Danielle Martins de Farias, a peça é a terceira montagem (oficial) no Brasil do excelente texto do venezuelano Gustavo Ott. A dramaturgia narra a história de uma família às voltas com a morte em série dos bichos de um zoológico municipal, mas os diálogos, para muito além disso, revelam três seres humanos – o pai, a mãe e a filha – fazendo descobertas essenciais sobre si próprios e sobre suas histórias bem como tomando decisões sobre seus futuros. Com belíssimos trabalhos de interpretação de Julie Wein, mas principalmente de Adriana Seiffert e de José Karini, a produção fica em cartaz até 31 de julho na Sala Multiuso do Espaço Sesc Copacabana. Imperdível.

O excelente texto de Gustavo Ott

A peça começa quando, em uma terça-feira qualquer, Pablo (José Karini) e Karen (Adriana Seiffert) vão visitar a filha Carol (Julie Wein), uma jovem recém formada veterinária que se torna integrante do corpo técnico de profissionais de um zoológico municipal. Lá pelas tantas, o casal se depara com um orangotango isolado em uma jaula solitária. O motivo? Trata-se de uma medida para conter um comportamento “difícil” do animal”: ele assedia sexualmente outros de sua espécie e de mesmo gênero. O caso, que talvez possa ser considerado um tanto quanto banal, é ponto de partida para um trecho da memória familiar que é (e que precisa ser) resgatada. Carol quer saber porque o pai, há quinze anos, passou quarenta dias na prisão. A descoberta da verdade, porém, é um caminho sem volta: pode-se não gostar do que se sabe, pode-se fingir não saber, mas nunca mais poder-se-á desconhecer o sabido. A volta à tona do acontecido ressignifica as relações familiares e exige dos três personagens novos posicionamentos. “Dois amores e um bicho”, por causa disso, é uma história sobre linguagem mais do que sobre preconceito homossexual, ecologia, família ou sobre política.

Pablo foi preso por matar seu cachorro a pauladas em uma véspera de natal. Ao delegado, ele confessou os motivos do crime que ganhou, na ocasião, as primeiras páginas dos jornais: seu cão assediava sexualmente o cão de sua esposa. Gustavo Ott, de maneira habilíssima, investe o caso de uma série de pontos que não apenas contextualizam a narrativa, mas sobretudo dão a ela caráter avassalador. De maneira geral, procurando não envenenar o prazer do público aqui leitor de descobrir a história durante sua encenação, podem-se citar alguns deles. Há fatos acontecidos com aquela família dias antes daquele natal, houve uma tragédia pública naquele exato dia, os nomes dos dois cães envolvidos são importantes, o papel do poder público e do terceiro poder – a mídia: tudo isso oferece outros níveis de leitura para a história. E todo esse passado reverbera questões no presente da narrativa: a relação entre marido e mulher; a entre pais e filha; a personalidade de Carol, mas também a de Pablo e de Karen.

Durante todo o desenrolar de narrativa, o espectador se vê diante de um precioso uso da linguagem verbal (e também poética). Ott, autor de mais de quarenta peças e ganhador de diversos prêmios em redor do globo, defende em “Dois amores e um bicho” o poder das palavras no processo de racionalização do mundo pela consciência. Ao organizar o discurso para construí-lo, o homem se vê engendrado em um plano paralelo com regras próprias e com consequências específicas, mas que está intimamente relacionado, talvez hoje mais que nunca, com a dimensão além da linguagem. O texto, que já foi encenado em montagens produzidas pela Tentáculos Espetáculos (em 2014, com direção de Guilherme Delgado) e pelo Clowns de Shakespeare (em 2015, com direção de Renato Carrera), é uma denúncia, mas também um elogio à humanidade. (As montagens anteriores tiveram a tradução assinada por Carlito Azevedo. Essa é assinada pela diretora.)

A ótima direção de Danielle Martins de Farias
Como se elogiou no seu “Fim de Partida”, o maior mérito da direção de Danielle Martins de Faria está em partir do que é mais valoroso no projeto a que ela se dedica: o texto. Em outras palavras, a encenação parece não estar tão preocupada em melhorar o que não é bom, mas enfrenta o desafio de oferecer, para além do que é ótimo, aspectos que sejam melhores ainda. Em “Dois amores e um bicho”, vai o espectador encontrar um excelente texto que é otimamente bem defendido em uma montagem que valoriza o seu ritmo natural; em que se viabilizam as possibilidades do seu campo semântico com profundidade; que se interessa pela inteligência; e, melhor que tudo, que não se vende às facilidades, à superficialidade ou ao ego. E é nesse sentido que se reconhece a mão firme de Farias.

Em conjunto, o elenco encara o público e se enfrenta entre si, buscando dar a ver as condições nas quais se fundam tanto o jogo como também os meandros de seu desenvolvimento. Com isso, a peça oferece à programação carioca um trabalho de primeira grandeza, corajoso e diferente, que é pautado na dificuldade das boas interpretações e, portanto, na contribuição mais valiosa que o teatro ainda é capaz de dar à sociedade em um tempo de subterfúgios superficiais muitas vezes apoiados em grandes figurinos e cenários, projeções em vídeo, em pontos de mudança e ganchos dramáticos e em tudo quanto é tipo de ilusão.

Julie Wein, que se destaca também pela exploração de suas habilidades com diversos instrumentos musicais, interpreta com delicadeza a personagem de Carol em torno de quem a narrativa começa. De todos, é ela quem, por primeiro, se vê transformada pela realidade: como viverá uma veterinária sabendo que seu pai matou um cachorro a pauladas? A excelente Adriana Seiffert, que dá vida à Karen, a mãe, é em cima de quem a tensão se sustenta. Durante quase toda a peça, ela participa sem protagonizar os acontecimentos, mas isso se modificará nas cenas finais. Nesse trecho, sua personagem assumirá o leme de sua historia e isso será motivo para os espectadores ressignificarem o encerramento da trama e perceberem o que poderá ter acontecido com essas pessoas após o fim do recorte da dramaturgia.

É José Karini, cujo personagem é mais privilegiado desde Gustavo Ott, aquele que mais brilha em “Dois amores e um bicho”. O ator, intercalando na temporada o personagem com Lucas Gouvêa, interpreta Pablo: o personagem mais importante da peça, contra o qual todos os demais reagem, o que mais se enfrenta e, assim, aquele que melhor une todos os pontos da narrativa. Com uma atuação brilhante, Karini dá vida à selvageria de que fala a peça, essa que transcende a consciência humana e que liga a nossa espécie a dos animais. Também corporifica as paixões por meio das quais se tematiza o homem simples em seus processos de catarse. E, por que não?, abre espaço para o lado pantanoso da transformação de valores a que nossa sociedade passa - os debates sobre homofobia, ecologia, terrorismo, política e sobre tantos outros temas pelos quais o espetáculo passa em sua reflexão sobre o homem. O bem aproveitar das chances que é visível no trabalho de Karini e o valorizar das possibilidades que se vêem em Seiffert e em Wein colocam as interpretações em mesmo enorme mérito que o texto e a direção.

Parabéns!
“Dois amores e um bicho” se estrutura ainda a partir de valorosas contribuições do figurino de Raquel Theo e da direção musical de Felipe Habib, mas principalmente da iluminação de Renato Machado e do cenário de André Sanches. Esses aspectos estéticos, por meio de participações elegantes, colaboram com o texto e com as interpretações na medida em que não pesam a narrativa já complexa. São bastante bem cuidadas em detalhes que reforçam a qualidade do todo, tornando essa produção digna dos aplausos que vem recebendo e da longa vida que há de ter nos palcos brasileiros. Parabéns!

*

FICHA TÉCNICA
Dramaturgia: Gustavo Ott
Direção: Danielle Martins de Farias
Elenco: Adriana Seiffert, José Karini, Julie Wein, Lucas Gouvêa
Direção musical: Felipe Habib
Movimento: Toni Rodrigues
Iluminação: Renato Machado
Cenário: André Sanches
Figurino: Raquel Theo
Design Gráfico: Marcus Moraes
Fotografia: Rodrigo Castro
Mídias Sociais: Rafael Teixeira
Assessoria de Imprensa: Bianca Senna e Paula Catunda
Produção e realização: Notórias Produções

sexta-feira, 14 de julho de 2017

Estudo sobre a maldade (RJ)

Curta nossa página no Facebook: www.facebook.com/criticateatral
Siga-nos no Instagram: @criticateatral
Foto: Diogo Monteiro

Bruce de Araújo
"Otelo" no bom monólogo de Bruce de Araújo

“Estudo sobre a maldade” é um bom monólogo de Bruce de Araújo em que se investiga as dimensões da maldade na alma humana, tendo, como ponto de partida, a tragédia “Otelo, o mouro de Veneza”, de William Shakespeare (1564-1616). Com criação, dramaturgia e direção assinadas por Miwa Yanagizawa e por Araújo, a peça tem boas intenções, mas fica distante do máximo de suas potencialidades. Sua primeira temporada no Centro Cultural Municipal Sérgio Porto, no Humaitá, terminou na última segunda-feira, 10 de julho, mas deseja-se que ganhe novas oportunidades.

Problemas de coesão e de coerência na estrutura dramatúrgica
A dramaturgia do monólogo “Estudo sobre a maldade” é dividida em duas grandes partes. Na primeira delas, há um recuperar da narrativa de “Otelo, o mouro de Veneza”, peça escrita por Shakespeare entre 1603 e 1604. Na segunda, há uma colagem de inúmeros casos contemporâneos que, de algum modo, servem para refletir sobre a maldade nos dias de hoje. A apresentação das partes individualmente tem muitos méritos, mas há uma questão negativa a refletir: o uso da primeira parte quase que somente para legitimar a segunda.

A principal fonte para Shakespeare ter escrito seu “Othello” é “Desdêmona e o mouro”, a sétima novela do terceiro capítulo de “Gli Hecatommithi”. Escrita pelo italiano Giovanni Battista Giraldi (1504-1573), o Cinthio, e publicada em 1565, trata-se de uma coletânea de cem lendas ancestrais da península itálica cujas traduções francesas faziam sucesso na Inglaterra do fim do século XVI e início do XVII. Shakespeare deu nome aos personagens (Cinthio apenas nomeou Desdêmona) e criou outros (como Rodrigo e Brabâncio, por exemplo), mas manteve a estrutura original da narrativa. Os nomes “Otelo” e “Iago” jamais haviam sido utilizado na literatura antes de 1604, mas supõe-se que o primeiro tenha sido inspirado em Otho, nome do meio do imperador romano Marcus Salvius Otho Caesar Augustus (32-69 d.C.). E o segundo, Jago (ou Tiago), é uma derivação de James I (1566-1625), nome do sucessor de Elizabeth I (1533-1603) no trono inglês.

A história de Otho foi narrada por Plutarco (45 – 120 d.C.) e traduzida por Thomas North para o inglês na época elisabetana, livro que também serviu de inspiração para Shakespeare escrever as peças “Júlio César” (1599) e depois “Coriolano” (1608) e “Antônio e Cleópatra” (1609). Otho era um nobre romano casado com uma mulher muito bonita chamada Popeia Sabina (30-65 d.C.), que chamou a atenção do imperador Nero (37-68 d.C.). Apaixonado, Nero providenciou o divórcio e casou-se em segundas núpcias com Popeia, enviando Otho como governador da Lusitânia (hoje Portugal). Em 69, o trono romano foi tomado por Galba (3-69 d.C.), governador na Hispânia Tarraconense (hoje Espanha), já em idade avançada. Otto, cujos gestos afetados lembravam os de Nero, foi escolhido como sucessor. Depois da morte de Galba, Otto reinou por três meses e, para evitar uma guerra civil, se suicidou. Ele tinha 38 anos, mesma idade com que o rei inglês James I tinha em 1o de novembro de 1604, quando “Othello” foi apresentada pela primeira vez no Palácio de Whitehall, em Londres.

Embora muito conhecida como uma peça sobre ciúmes, “Otelo, o mouro de Veneza” precisa ser lida como uma crítica de Shakespeare ao código da honra vivenciado em sua sociedade e no seu tempo. É isso, mais do que qualquer outra coisa, que lhe oferece uma interpretação como tragédia. Como bem pontua Bruce de Araujo e Miwa Yanagizawa em “Estudo sobre a maldade”, o personagem título é a grande vítima da história.

A peça, que se passa em 1570, começa quando, ao amigo Rodrigo, o enfurecido Iago conta que o general Otelo preferiu escolher Cássio como tenente em seu lugar. Iago, o alferes, quer se vingar do seu superior e, para isso, elabora uma trama diabólica, aproveitando um segredo de Otelo que, por essa ocasião, vem a público. Às escondidas, o general havia se casado com Desdêmona, filha do senador Brabâncio, homem político que, se valorizava o militar como comandante do exército veneziano, jamais o aceitaria como genro. Rodrigo colabora com a vingança de Iago, porque alimenta esperanças de, anulado o casamento não-permitido, possa ele se unir à filha de Brabâncio. Na iminência da invasão turca à Ilha de Chipre, Otelo é enviado como comandante das tropas de defesa e Desdêmona, sua fiel esposa, anuncia ao pai que não abandonará o marido. O casal parte sob a acusação de Brabâncio de que sua filha foi enredada por meio de feitiçaria e sob o alerta de que, assim como Desdêmona traiu a confiança paterna, poderá ela um dia também trair o cônjuge mouro.

A palavra “mouro” necessita de uma observação. Se, hoje em dia, ela se refere a muçulmano árabe, na era jacobina, sua conotação era bastante diferente. Com um tom extremamente pejorativo e preconceituoso, ela queria dizer negro, selvagem e não-cristão. Ao chamar o seu protagonista de “mouro”, Shakespeare começa “Otelo” jogando com os preconceitos do público: como poderia um mouro (como o terrível Aarão, personagem de “Titus Andrônicos”, de 1594) ser um homem respeitado e bom? Nesse sentido, quando a história começa, o público de Shakespeare estava claramente ao lado de Iago e de Brabâncio, de quem lhes foram tirados respectivamente o cargo merecido e a filha.

Em Veneza, uma tempestade faz a armada turca se dispersar (em uma alusão de Shakespeare à derrota da Invencível Armada Espanhola, de 1588, talvez o mais importante acontecimento da história europeia desde a descoberta das Américas cem anos antes). Para comemorar a vitória, Otelo nomeia Cássio como protetor da cidade, mas Iago o embriaga e faz o fracasso do tenente chegar ao conhecimento do general, que o rebaixa a soldado por isso. Cássio, querendo se salvar, procura a intercessão de Desdêmona, que ingenuamente defende o antigo tenente. Iago aí incita a dúvida de Otelo sobre a fidelidade da esposa em relação a Cássio. Um lenço dado de presente por Otelo à Desdêmona é plantado por Iago no quarto de Cássio que, sem saber a origem do objeto, o oferta à Bianca, sua verdadeira amada. O pano, cujo paradeiro é desconhecido por Desdêmona, se torna a prova para Otelo de sua traição. O general mata a esposa, mas ao descobrir a verdade dos fatos, se suicida arrependido. Cássio, enfim, condena Iago à morte.

O uxoricídio (o assassinato de uma esposa por seu marido) é tema muito recorrente nas peças entre os séculos XVI e XVII. Na literatura dramática, talvez o caso mais importante seja o de “El médico de su honra”, de 1635, escrita pelo espanhol Calderón de La Barca (1600-1680). O aspecto trágico se via na “rua sem saída” onde o marido se encontrava diante da (ainda que suposta) traição da esposa. No caso de um general de ascendência africana (ou pelo menos com a pele mais morena que a dos demais) como Otelo, o perigo de uma mancha na honra como a traição de uma esposa (cujo casamento não foi autorizado pelo pai) era ainda maior. É nesse sentido que Otelo é vítima não apenas de Iago, mas de um conjunto de valores que Shakespeare denuncia na trama.

Miwa Yanagizawa e Bruce de Araújo oferecem, em “Estudo sobre a maldade”, uma leitura muito coerente da estrutura narrativa de “Otelo, o mouro de Veneza”, propondo uma revisão da história para isso. No entanto, a trama shakespeareana, abrindo e fechando a nova dramaturgia, embala aquilo que parece tentar sem sucesso ser o mais importante da proposta: uma investigação sobre a maldade. Em outras palavras, é como se a tragédia clássica, servindo apenas para legitimar as citações contemporâneas, só estivesse ali para dizer: “Vejam como a maldade é um tema interessante!” Isso nos faz pensar que, se a dupla de dramaturgos realmente achasse o tema interessante e também o modo como ele é tratado no elenco de histórias contemporâneas que eles trazem, talvez a opinião do bardo nem seria necessária.

Ao longo de toda a segunda parte da dramaturgia de “Estudo”, o texto faz um esforço enorme para unir pequenos quadros de hoje aos feitos de Iago em “Otelo”. Isso nem sempre dá o melhor resultado por um motivo simples: o vilão shakespereano tem suas terríveis ações justificadas - trata-se de uma vingança dele por ter sido preterido na ascensão militar. Já as histórias trazidas por Yanagizawa e Araújo talvez sejam ainda mais saborosas (e terríveis) por não ter qualquer justificativa plausível, mas serem apenas motivadas por um caráter malvado. Nesse sentido, ao perceber incoerências e faltas de coesão na estrutura dramatúrgica, o espectador se vê diante de uma fruição prejudicada, o que impede a peça de chegar ao máximo de suas potencialidades.

Valores positivos da encenação
Na direção dele e de Miwa Yanagizawa, Araujo traz benefícios à montagem optando por uma encenação econômica e que valoriza a prosódia. Toda a primeira parte de “Estudo sobre a maldade” é tomada pelo ator sentado em um cadeira e sob a luz de um refletor, trazendo sua leitura de “Otelo”. O feito dá força para a narrativa shakespereana e oferece à fruição um acordo humano sensível, pautado na atenção mútua e no esforço coletivo que celebra o encontro entre palco e plateia. Na segunda parte, com mais movimentos e ações, a direção se afina à dramaturgia diferenciada desse trecho, sublinhando a atualidade dos quadros trazidos e o ritmo mais dinâmico de suas microestruturas. Pedro Yudi assina a assistência de direção e Laura Samy a direção de movimento. Vale destacar com elogios, o repertório corporal do intérprete em termos de suas expressões que flexibiliza e promove leituras múltiplas e, por isso, mais complexas, da proposta apresentada.

“Estudo sobre a maldade”, com colaborações discretas, mas pontuais e assertivas da luz de Bernardo Lorga e da trilha sonora de Zé Azul, de Joyce Santiago e de Araújo, resulta em um bom monólogo no todo de suas qualidades e melhor ainda em suas intenções. É preciso sempre estar atento à maldade para combatê-la quando em nós e perdoá-la quando nos outros. Aplausos!

*

FICHA TÉCNICA
Ator: Bruce de Araujo
Criação, direção e texto: Bruce de Araujo e Miwa Yanagizawa
Diretor assistente : Pedro Yudi
Iluminação: Bernardo Lorga
Direção de Movimento: Laura Samy
Figurino e Cenário: Miwa Yanagizawa, Bruce de Araujo e Pedro Yudi
Trilha Sonora: Zé Azul, Joyce Santiago e Bruce de Araujo
Projeto Gráfico: Diogo Monteiro
Produção: Felipe Pedrini

sexta-feira, 7 de julho de 2017

Hamlet (RJ)

Curta nossa página no Facebook: www.facebook.com/criticateatral
Siga-nos no Instagram: @criticateatral
Fotos: João Gabriel Monteiro


Patrícia Selonk

Os 30 anos da Armazém Companhia de Teatro


A Armazém Companhia de Teatro comemora os seus 30 anos com “Hamlet” em montagem a partir da obra de William Shakespeare. Trata-se de uma adaptação reduzida e romantizada da peça mais famosa da história universal que ganha voz através de ótimos trabalhos de interpretação e de montagem cheia de méritos apesar do que foi feito com o texto. Vale a pena assistir para conferir Patrícia Selonk como o Príncipe da Dinamarca e Lisa Eiras como Ofélia, mas sobretudo Ricardo Martins como Claudius. Com direção de Paulo de Moraes, a produção, que é uma das mais bem comentadas do ano de 2017, está em cartaz em sua primeira temporada no Teatro 1 do Centro Cultural do Banco do Brasil na Cinelândia até 6 de agosto.

“Hamlet” é a peça sobre a qual mais se escreveu na história do mundo. Composta pelo inglês William Shakespeare (1564-1616) entre 1599 e 1601, é a sua maior obra prima, e também a mais longa. Quando montada na íntegra, sua encenação dura mais de seis horas (nem quatro, nem cinco como escreveram outras pessoas antes de mim). Sua narrativa é muito conhecida. Dois meses depois do Rei Hamlet da Dinamarca falecer, o príncipe Hamlet é convocado pelo fantasma de seu pai para um encontro. Na entrevista, o morto narra ao filho detalhes sobre sua morte e clama por vingança. Fingindo-se de louco, Hamlet investiga o caso, confirmando a crença de que Claudius, o irmão do rei e herdeiro da coroa, foi quem tramou o regicídio antes de se casar com a Rainha Gertrudes.

Nos últimos quatrocentos anos, houve incontáveis leituras e, mais numerosas ainda, adaptações da obra original para tudo quanto é tipo de abordagem incluindo o próprio teatro. Aquela a que se refere aqui cumpre bastante bem em cena uma empobrecida versão dramatúrgica assinada por Maurício Arruda Mendonça, que surge, de um lado, prejudicada pelo ponto de vista muito romântico e pouco político, e, de outro, enaltecida pelos bons trabalhos de interpretação e pelas outras participações estéticas da luz, do cenário e do figurino.

Essa análise da montagem da Armazém Companhia de Teatro vai começar tratando do texto e da adaptação, avançar pelos traços da produção e chegar ao trabalho dos atores.

Mil anos de Hamlet
A lenda de Hamlet chegou a Shakespeare através de uma tradução francesa do terceiro livro de um grupo de dezesseis obras conhecidas como “Feitos dos dinamarqueses” (“Gesta Danorum”), escrito por Saxo Gramaticus (1150-1220) no século XII. O caso específico de Hamlet aparece em um livro ainda mais antigo: “Crônicas de Lejre” (mais ou menos de 1170) de autoria desconhecida. As duas narrativas se parecem no geral. Em ambas, no século VII, o primogênito Horvendill e o mais novo Feng eram dois príncipes filhos do Rei Gervendill de Jutland (Península que preenche a parte oeste do atual país Dinamarca), que morreu em uma batalha viking. Horvendill se casou com a Princesa Gerutha da Dinamarca (hoje o lado leste da Dinamarca) e com ela teve um filho chamado Amleth, cuja etimologia vem da união de duas palavras: Amiele (um nome próprio) e Othi (corajoso e louco). Com ciúmes do irmão, Feng assassinou o irmão e casou-se com Rainha, apoderando-se em seguida das coroas de Jutland e da Dinamarca.

Ao reescrever a história, Shakespeare situou-a em algum momento do fim do século X e do início do século XI. Desde 978, a Inglaterra era governada por Etheired II (968-1016), da casa de Wessex, que assumiu a coroa com o compromisso de expulsar definitivamente os vikings da região. De seu primeiro casamento, ele tinha vários filhos homens chamados Ethelstan Etheling. Um deles, o mais velho, era o herdeiro do trono, mas o posto foi usurpado quando o pai, já viúvo, se casou em segundas núpcias, em 1002, com a duquesa normanda Emma (985-1052), a mulher mais rica e poderosa do norte europeu. Durante a união de Etheired com Emma, o príncipe Edmund Ironside (990-1016), filho dos dois, se tornou o herdeiro favorito no lugar do irmão. Em 1013, em defesa do povo do norte, Sweyn I (965-1014), da casa de Knytlinga, então rei da Noruega e da Dinamarca, invadiu a Inglaterra, expulsando Etheired II, que fugiu para a Normandia com sua segunda esposa Emma e seus filhos. Sweyn I, para consolidar uma política de alianças, casou seu filho mais velho Cnut (995-1035) com a condessa Elfgifu of Northhampton (990-1036). Até essa época, a Inglaterra pagava um tributo (o danegeld) à Dinamarca, informação a que o personagem Hamlet se refere na Cena 2 do Ato 5, talvez a única pista na peça sobre quando a narrativa se passa. Coroado em 1016 após a morte do pai, Cnut II aboliu o tal imposto em 1017 – há exatos mil anos – quando se casou com Emma, rainha viúva do Rei Etheired II e também mãe do falecido rei Edmund Ironside. Dez anos depois, ao anexar a Noruega à sua coroa, os três países juntos formaram um reino que, em “Hamlet”, pode ser associado ao do personagem Fortimbrás, que termina como rei dos três países.

Na primeira metade do século XI, a Dinamarca vivia um período de transição cultural. Governada por Sweyn I desde 986, a região já era lugar onde tanto os vikings quanto os fazendeiros se transformavam em católicos aos poucos. Além disso, líderes na navegação e grandes conquistadores, sua cultura se modificava a partir do contato com outros povos do sul e do norte. Com a morte de Sweyn I, Harald II (?-1018) herdou a coroa, mas morreu pouco tempo depois solteiro e sem filhos. Cnut II, que reinava na Inglaterra, passou a reinar também na Dinamarca. Como trazido no parágrafo acima, ele tinha duas esposas: a inglesa Elfgifu of Northhampton e a normanda Emma. Quando assumiu a coroa, enviou os filhos do rei Edmund Ironside (netos de Emma pelo seu primeiro casamento com o velho rei Etheired II) para a Suécia com um plano secreto de que lá os príncipes fossem assassinados. No meio do caminho para o suposto exílio, porém, eles descobriram a artimanha de Cnut II e fugiram para a Hungria, onde permaneceram durante décadas. O episódio é aludido em “Hamlet”.

Em 1026, os reis Anund Jakob (Suécia) e Olaf II (Noruega) atravessaram o mar Báltico e invadiram a Dinamarca, onde Ulf The Earl era regente nomeado por seu cunhado Cnut II (rei da Inglaterra e da Dinamarca). Ulf apoiou um golpe em favor da coroação de Harthacnut (1018-1042), filho legítimo de Cnut II com Emma, que não deu certo. O pai voltou da Inglaterra, derrotou os inimigos e matou Ulf. Quando Cnut II morreu, em 1035, Harthacnut (Cnut III) herdou a coroa da Dinamarca, mas não a da Inglaterra. Essa foi dada ao seu meio-irmão Harold I (1016-1040), filho de Cnut II com Elfgifu of Northhampton, e irmão de Svein Knutsson (1016-1035), então rei da Noruega desde 1030, que é citado por Shakespeare em “Macbeth”.

Há ainda outras referências históricas que amparam uma leitura mais aprofundada do clássico shakespereano. Quando “Hamlet” estreou, o longo reinado (no total, quase 45 anos!) de Elizabeth I (1533-1603) estava chegando ao fim. Na última década, a Inglaterra gozava, pela primeira vez, de uma cordial estabilidade financeira e de um crescente prestígio europeu em um continente cada vez mais ensanguentado por guerras religiosas, fronteiras desfiguradas e pelo câmbio flutuante. Havia, no entanto, um problemão a resolver: quem sucederia a Rainha Virgem? Nessa questão, trabalhava – secretamente - um dos mais importantes conselheiros reais: o jovem Robert Cecil (1563-1612), conde de Salisbury. Nos últimos anos, ele se comunicava com o rei escocês Jaime VI, primo em terceiro grau de Elizabeth, futuramente chamado de Jaime I na Inglaterra. Salisbury e seu pai são provavelmente um dos personagens mais importantes de “Hamlet”: o conselheiro Polônio.

Robert Cecil era o filho mais novo de William Cecil (Barão de Burghley, 1520-1598), esse último o homem mais importante de quase todo o reinado de Elizabeth I. Quando o pai morreu, Robert acendeu à posição do pai, permanecendo nele até sua morte já nos primeiros anos de Jaime I. Houve quem dissesse, porém, que o lugar deveria ser reservado ao primogênito Thomas Cecil (Conde de Exeter, 1542-1623), irmão mais velho de Robert, que estava em Paris na ocasião do falecimento do pai. Em “Hamlet”, quando Polônio morre, seu filho Laerte está em Paris.

Nos últimos de sua vida, o velho Burghley foi o principal inimigo de Robert Devereux (2o Conde de Essex, 1565-1601), o último “favorito” (leia-se possivelmente amante) da rainha nos anos 80 do século XVI. Essex, trinta e dois anos mais novo que a monarca, era alto, bonito e muito carismático entre o povo. Além disso, ele era enteado e afilhado (ou filho bastardo?) de Robert Dudley (Conde de Leicester, 1532-1588), sem dúvida o “favorito mais favorito” de Elizabeth I, e também opositor de Burghley. O pai oficial do jovem Essex era Walter Devereux (1o Conde de Essex, 1541-1576), um militar renomado que foi o primeiro marido de Lady Lettice Knollys (1543-1634), com quem Leicester veio a se casar depois. Escritos deixados por Robert Devereux (Robert de Robert Dudley e Devereux de Walter Devereux) trazem sua dúvida sobre verdadeira paternidade.

Devereux acendeu ao Conselho Privado quando tinha por volta de 20 anos por indicação pessoal de Elizabeth, que lhe concedeu o monopólio do vinho suave na Inglaterra, deixando-o rico. Relatos, no entanto, constam que o relacionamento entre os dois degringolou no início dos anos 90. Essex acumulou derrotas militares (e também políticas), atuando de maneira independente nos conflitos com a Irlanda, chegando a empunhar a espada contra a rainha inglesa. Acabou condenado por traição e decapitado em 25 de fevereiro de 1601. (O personagem aparece em “Henrique V”, de Shakespeare, escrita dois anos antes de “Hamlet”.) Antes de morrer, ele dividiu a cela com o Henry Wriothesley (3o Conde de Southrampton, 1573-1624), que havia se casado - contrariamente aos acordos de Burghley – com Elizabeth Vernon (1572-1655), prima de Essex. Shakespeare havia dedicado “Venus e Adonis” e “O estupro de Lucrécia” a Wriothesley e há muitos estudos que apontam que “Romeu e Julieta” foi uma homenagem do bardo ao conde e à condessa de Southampton, em cuja localidade há ruínas chamadas de “King Cnut II`s Palace” onde, até o século XIX, se acreditava ter morado o rei medieval dinamarquês.

Vale lembrar ainda de que o favorito à sucessão de Elizabeth I era o rei escocês James VI, marido da Rainha Ana da Dinamarca. A morte do pai dele também era uma incógnita. Lord Darnley (Henry Stuart, 1545-1667) morreu após uma explosão de pólvora quando ele dormia em sua casa, mas seu corpo foi encontrado estrangulado fora dela provavelmente pelo Conde de Bothwell (James Hepburn, 1535-1578), que se casou três meses depois com a Rainha Mary Stuart (1542-1587), mãe de James VI, que havia sido decapitada após 20 anos presa na Torre por sua prima Elizabeth I. E por fim não se pode esquecer de que, seis meses após à decapitação de Essex, faleceu John Shakespeare (07/09/1601), pai do autor de “Hamlet”, o que provavelmente também colaborou com o tema de paternidade em meio a qual o bardo estava envolvido.

As fontes históricas acima são importantes para uma leitura política de “Hamlet” que intente ir além de uma mera narrativa sobre um filho metido a justiceiro que quer vingar a morte do pai. E é nisso que se baseia a avaliação inicial de que o corte proposto por Maurício Arruda Mendonça reduz consideravelmente as chances do novo texto de chegar à glória provavelmente planejada pelo dramaturgo quando escreveu a peça. No palco, há menos de um terço do texto e menos da metade dos personagens.

Em substituição, Mendonça oferece um olhar romântico ou, na melhor das hipóteses, expressionista para a narrativa. Por romântico, enaltece-se a sanha do príncipe Hamlet em matar o assassino de seu pai, mas esquece-se de que houve, seguida ao regicídio, uma usurpação da coroa que deveria ir para o príncipe e não para Claudius. Por expressionista, assume-se, desde o início, que Claudius é realmente o assassino do velho Rei, e se abandona a reflexão por sobre o fato de que o que foi dito pelo fantasma só foi ouvido pelo enlutado Hamlet e que não há, até a cena 3 do 3o Ato uma clara confissão (a qual só o público e não Hamlet pode ouvir) do atual Rei. A partir disso, tudo o que se vê na peça deixa de ser o que se vê realmente, mas uma expressão corrompida pelo olhar do protagonista. Tanto o ponto de vista romântico como o expressionista têm seus méritos, mas as duas abordagens também não podem se pautar em expressões contemporâneas como “trepar”, em gritarias nervosas, em roupas de malha, em cadeiras de cinema para - de maneira profunda - se atualizar. Como o tom político, que é divulgado como o preferido pela montagem, a leitura romântica e/ou a expressionista são conceitos estéticos complexos e que carecem de mais esforço.

Mas em “Hamlet”, há uma questão filosófica também que Mendonça não valoriza infelizmente. Em primeiro lugar, o fantasma do rei aparece para os soldados, mas não fala com eles. Sua voz só é ouvida pelo príncipe, a única pessoa que ouve o ponto de vista do morto sobre seu suposto assassinato. Hamlet decide parecer louco a fim de investigar o caso, isto é, resolve conhecer a verdade através da falta de lógica. Sua dúvida sobre de que modo confiar no quadro que vai se formando com o ajustar das peças do quebra-cabeça adia a vingança ao longo de toda a peça para além de todas as oportunidades que ele tem de matar o Rei Claudius. E, ao final, nem é a morte do pai que faz Hamlet querer matar o tio, mas duas tentativas desse de matá-lo: quando o príncipe está a caminho do exílio na Inglaterra e em um duelo com Laerte.

Assim, o conhecimento da verdade que Hamlet atinge através do teatro de suas ações não o leva à vingança pela morte do pai, mas à outra questão: é preciso reestabelecer a ordem, isto é, tirar o poder das mãos de Claudius. Enviado para a Inglaterra depois de ter assassinado Polônio, Hamlet descobre, no caminho, uma aliança entre o Rei e seus dois amigos de infância - Rosencrantz e Guildenstern - para matá-lo. Conseguindo fugir, desembarca de novo na Dinamarca e aceita de estranho bom grado participar de um duelo “amigável” com Laerte, cujo pai (Polônio) Hamlet matou e cuja irmã (Ofélia) acabou de se suicidar por amor ao príncipe. É nesse duelo que primeiro a Rainha Getrudes e depois Laertes acusam publicamente Claudius e que só então Hamlet mata o Rei, tornando-se ele também um regicida. A coragem do jovem que não mais finge loucura advém de uma transformação já completa do personagem nas cenas finais: para ele próprio envenenado e já às portas da morte, o poder já não faz mais sentido.

A tragédia “Hamlet”, imersa em um mundo em transformação pelas revoluções científicas e religiosas, pelo alargamento das fronteiras a muito além da Europa e pelo declínio de um longo reinado chegando ao fim, engendra um homem assolado pelo desconhecido. As mais de quatro mil palavras divididas em cinco atos são um roteiro de viagem dos personagens pelo interior das próprias consciências. É por isso que elas são tão caras e é por causa disso que, sem qualquer purismo, lamenta-se a banalização das raras oportunidades que elas têm de ganhar vida no palco.

Lisa Eiras
30 anos da Armazém Companhia de Teatro
O texto é apenas um elemento do discurso teatral e já há muito tempo seu privilégio foi abandonado mesmo quando se trata de Shakespeare. Nesse sentido, uma análise do espetáculo “Hamlet” precisa considerar seus outros meios de expressão para além das contribuições do dramaturgo inglês e de Mendonça. Vale começar pelo modo como os signos todos se articulam no quadro.

A montagem de Paulo de Moraes, se dispensa Shakespeare, parece ir em busca do seu próprio Hamlet: um jovem relativamente comum, sem nobreza alguma e em uma família burguesa como qualquer outra. O valor disso talvez esteja na tentativa de aproximar o personagem do público de hoje, limpando-o das falas empoladas, da frieza nórdica e das fleumas monárquicas com a qual nossa cultura nunca conviveu. O encontro resulta em um adolescente sensível (e moralista), mergulhado na mágoa e disposto a vingar o pai idealizado contra a vulgaridade dos outros membros de sua família. Daí que todas as cenas da montagem da Armazém Companhia de Teatro talvez se organizem pela vontade de serem um campo de batalha para um protagonista facilmente identificável: moinhos de vento cervantinos para um Hamlet quixotesco. E, se essa leitura estiver correta, vai o espectador se encontrar diante de um objetivo plenamente alcançado.

As cenas se articulam com fluidez ainda que dispostas em ordem diferente da que consta no texto original. O empenho talvez se interesse pelo estranhamento, combatendo propositalmente as expectativas trazidas por quem conhece a peça e enfrentando o desafio de manter o olhar diante de algo que pareça novo. O ritmo cai em vários momentos negativamente, porque há solilóquios dos quais Mendonça e Paulo de Moraes não conseguiram fugir, como o de Claudius em sua oração, o “Ser ou Não Ser” de Hamlet e o delírio de Ofélia. Em Shakespeare, esses e outros vários momentos estão contextualizados em diálogos longos imersos em uma narrativa que acontece lenta regularmente. Aqui, o apressar do ritmo em algumas partes fez outras parecerem chatas.

Os figurinos de Carol Lobato e de João Marcelino têm seu ponto mais alto no belíssimo rufo usado por Ofélia e na caracterização geral de Hamlet, interpretado pela atriz Patrícia Selonk. Articulado com a direção e com outros elementos estéticos como a dramaturgia, o cenário e como a trilha sonora, o guarda-roupa mantém o estranhamento que parece ser útil aos intentos do projeto, investindo em roupas com tecidos contemporâneos ora em cortes mais clássicos, ora em looks mais atuais.

O cenário de Carla Berri e de Paulo de Moraes faz um misto do que recentemente o Rio de Janeiro viu em “Krum” e em “Nós”, ambos espetáculos dirigidos por Márcio Abreu: fileiras de cadeiras de cinema (ou de teatro) mais uma grande estrutura de fundo que, lá pelas tantas, se mexe como uma porta de garagem que se abre. Junto com a luz de Maneco Quinderé, os móveis compõem um quadro bonito, mas que não exatamente participam do conceito (ainda que poltronas aludam à algo a que alguém assiste como uma peça dentro da peça). Em outras palavras, parece um cenário bem construído de uma outra montagem que, na falta de outro, apareceu ali.

A trilha sonora original de Ricco Viana se empenha no rock romântico contemporâneo, forçando - com som bem alto e muitos gritos com e sem microfone - uma indignação que cheira à fricote adolescente. Nessas ocasiões, a peça tem seus piores momentos, porque superficializam não só o conteúdo, mas também a forma. A concepção e o modo como ela se apresenta parecem ter sido os caminhos mais fáceis e não os mais nobres.

Ótimos trabalhos de interpretação
Marcos Martins (Polonius e Coveiro), Jopa Moraes (Laertes, Guildenstern e Ator), Isabel Pacheco (Gertrudes) e Luiz Felipe Leprevost (Horácio, Rosencrantz e Loba) apresentam bons trabalhos de interpretação, mas sem destaque porque muito pautados em suas próprias figuras cênicas e pouco além disso. Moraes basicamente repete os personagens já feitos por ele em “Shopping and Fucking” e em “O dia em que Sam morreu”, Leprovost se serve da liberdade oferecida por uma figura que não existe em Shakespeare e os demais são salvos pelo figurino.

Ricardo Martins e Patrícia Selonk
Lisa Eiras (Ofélia) e Ricardo Martins (Claudius), esse último com mais desafios vencidos e, portanto, com resultado ainda mais excelente, brilham em cena na defesa de personagens dificílimos. Ofélia, tão representada quanto o próprio personagem título, oferece à atriz o problema de vencer a expectativa. Claudius, por sua vez, é quem detém a tarefa de não deixar a trama óbvia, mas de sustentar tanto quanto possível a dúvida e consequentemente a complexidade sobre as quais se fundam o duelo interno de Hamlet. Eiras e Martins, ambos com sensibilidade e delicadeza nas menores expressões conseguem, para além de toda a colaboração (ou entrave) estética, manter a peça tão viva para muito além de qualquer outro traço superficial.

Patrícia Selonk (Hamlet) leva os valores obtidos por Eiras e por Martins anteriormente citados para patamares ainda mais elevados, aproveitando todas as muitas chances que seu personagem lhe possibilita, mas também seus enormes e tantas vezes elogiados talento e técnica como atriz. Seu príncipe, dentro da proposta, consegue permanecer senhor de uma guerra interna expressa por meio de um texto dito de forma emocionada, mas não melodramática; complexa, mas não difícil; inteligente, mas não inacessível; verdadeira, mas ainda assim poética. Esses três atores, mais que tudo nessa montagem, merecem os aplausos do público.

O aniversário da Armazém Companhia de Teatro
É bonito ver um grupo como a Armazém Companhia de Teatro completar seu aniversário de três décadas de atividade e presentear seu público com montagem cheia de méritos como essa. Fica, no entanto, a triste pergunta: se nem eles montaram “Hamlet” inteiro, quem mais o fará?

*

Ficha técnica
HAMLET
Da obra de William Shakespeare
Montagem da Armazém Companhia de Teatro
Patrocínio: Petrobras e Banco do Brasil
Realização: Centro Cultural Banco do Brasil
Direção: Paulo de Moraes
Versão Dramatúrgica: Maurício Arruda Mendonça
Elenco: Patrícia Selonk (Hamlet), Ricardo Martins (Claudius), Marcos Martins (Polonius), Lisa Eiras (Ofélia), Jopa Moraes (Laertes), Isabel Pacheco (Gertrudes) e Luiz Felipe Leprevost (Horácio)
Participação em Vídeo: Adriano Garib (Espectro)
Cenografia: Carla Berri e Paulo de Moraes
Iluminação: Maneco Quinderé
Figurinos: João Marcelino e Carol Lobato
Música: Ricco Viana
Preparação Corporal: Patrícia Selonk
Coreografias: Toni Rodrigues
Preparador de Esgrima: Rodrigo Fontes
Fotografias e Vídeos: João Gabriel Monteiro
Programação Visual: João Gabriel Monteiro e Jopa Moraes
Técnico de Palco: Regivaldo Moraes
Assistente de Produção: William Souza
Assessoria de imprensa: Ney Motta
Produção Executiva: Flávia Menezes
Produção: Armazém Companhia de Teatro

O que terá acontecido a Baby Jane? (SP)

Curta nossa página no Facebook: www.facebook.com/criticateatral
Siga-nos no Instagram: @criticateatral
Foto: divulgação

Eva Wilma e Nathália Timberg

Um grande espetáculo em meio à crise

“O que terá acontecido a Baby Jane?” é a primeira versão oficial no Brasil para teatro da novela do americano Henry Farrel (1920-2006) eternizada por Bette Davis e por Joan Crawford no filme de 1962 dirigido por Robert Aldrich. A peça, que surge traduzida por Cláudio Botelho com adaptação e direção de Charles Möeller, chegou ao Rio de Janeiro com Eva Wilma e Nathália Timberg nos papeis principais. Além dos grandes trabalhos de interpretação delas e de seus pares no elenco, a produção teve também contribuição valorosa da cenografia de Rogério Falcão, do figurino de Carol Lobato e da luz de Paulo Cesar Medeiros. Cumpriu longa e meritosa temporada no Theatro Net Rio, em Copacabana, na zona sul do Rio de Janeiro.

Bette Davis e Joan Crawford
Vale considerar duas histórias no imaginário do público brasileiro sobre “What ever happened do Baby Jane?”: a primeira diz respeito à narrativa interna do filme e outra às narrativas da produção da obra cinematográfica. Quanto à primeira, é fácil lembrar de que são duas irmãs já às portas da velhice: a grande estrela do cinema americano Blanche Hudson (Joan Crawford), aprisionada em uma cadeira de rodas depois de um acidente de trânsito; e sua irmã Jane Hudson (Bette Davis), que a ampara. A história é entremeada pelas memórias de ambas personagens. Quando crianças, Jane era uma famosa menina do teatro de variedades americano que, pouco a pouco, foi substituída pela irmã no palco e nas telas de cinema. Décadas depois, a mágoa ainda norteia o relacionamento delas e fica pior quando novas informações sobre o acidente de Blanche vêm à tona. O público acompanha o isolamento imposto à Blanche por Jane, que limita o recebimento de cartas, as visitas da empregada e a comida à antiga estrela, torcendo pela libertação da prisioneira. Mas, ao final, poderá reavaliar a situação e talvez reocupar os lugares de mocinha e de vilã.

A segunda história, talvez, seja ainda mais interessante. Baseado em uma novela escrita em 1960, o filme foi produzido pela Warner dois anos depois. Consta que a ideia veio de Joan Crawford (1904-1977) e que também surgiu dela o convite a Bette Davis (1908-1989). As duas atrizes tinham sido desde muito tempo uma espécie de concorrentes no cinema americano. Crawford já era célebre na época da entrada do cinema falado, em 1927. Até os anos 50, já tinha ganhado duas indicações ao Oscar e um prêmio de Melhor Atriz. Davis, por outro lado, tinha consolidado sua carreira no teatro quando foi para o cinema nos anos 30. Acumulou sete indicações e dois Oscar de Melhor Atriz. A primeira nunca tinha sido considerada tão talentosa quanto a segunda. A outra jamais tão bonita. Enumeram-se histórias sobre as brigas entre as duas na filmagem de “O que terá acontecido a Babe Jane?”, por qual Davis foi indicada ao Oscar, mas que Crawford recebeu a estatueta, representando outra atriz concorrente de outro filme que venceu na disputa (Anne Bancroft por “O milagre de Anne Sullivan”). “Babe Jane” ganhou quatro indicações e o Oscar de Melhor Figurino. Custou hum milhão de dólares e, no ano de seu lançamento, lucrou dez milhões, se tornando um dos filmes mais lucrativos do ano.

Em 1990, houve uma segunda versão da obra para a televisão. Dirigida por David Greene, ela foi estrelada por Vanessa Redgrave (Blanche) e por sua irmã Lynn Redgrave (Jane). Em 2002, depois de longas tentativas, houve uma versão da novela para teatro musical. Defendido por Leslie Denniston (Blanche) e por Millicent Martin (Jane), a produção tinha músicas de Lee Pockriss, letras de Hal Hackady e direção de David Taylor. Mas foi considerada um enorme fracasso em sua primeira temporada no Texas e, por isso, nunca foi levada à Broadway. Além dessa montagem dirigida por Möeller, houve várias investidas do teatro em relação ao filme nos últimos 55 anos. Uma delas está em cartaz atualmente em Porto Alegre, com direção de Zé Adão Barbosa, e com Caio Prates (Blanche) e João Carlos Castanha (Jane) no elenco.

Joan Crawford e Bette Davis

Muito se escreveu sobre as polêmicas entre Joan Crawford e Bette Davis no entorno do filme. Talvez, entre tudo o que já foi produzido, vale destacar a série americana de TV “Feud”, criada por Ryan Murphy, Jaffe Cohen e por Michael Zam a partir do livro “Bette and Joan: the divine feud”, lançado em 1989 por Shaun Considine. Susan Saradon (Bette Davis) e Jessica Lange (Joan Crawford) interpretam as duas atrizes no programa que tem oito belos episódios que foram ao ar pela Fox entre março e abril de 2017 nos Estados Unidos.

Charles Möeller
A versão oficial brasileira de “O que terá acontecido a Baby Jane?” estreou em agosto de 2016 no Teatro Porto Seguro em São Paulo e, no último outono, cumpriu temporada no Rio de Janeiro. Lá Nicette Bruno interpretava o papel de Blanche, aqui é Natália Thimberg quem a defendeu ao lado de Eva Wilma (Jane). Ao longo de 70 minutos (o filme tem 133min), o espectador do teatro tem bastante claras as referências à obra cinematográfica. Charles Möeller e Claudio Botelho atualizaram no palco o sabor de um noir que beira o terror psicológico. Estão lá o clima soturno de duas estrelas (quase) esquecidas em uma grande casa velha, as reviravoltas clássicas de um cinema de baixíssimo orçamento, as metalinguagens da arte falando de arte e principalmente as gags de comédia advindas da suspensão da tensão e do empenho da trilha sonora bem como a poesia de falas bem escritas e da humanidade por trás de figuras tão fantasiosas quanto, no fim das contas, reais. Os cortes, se reduziram o tempo da narrativa, mantiveram o excelente ritmo: o grande público está seguro em uma história bem contada e, com base nisso, pode se divertir e, ao mesmo tempo, se emocionar em sua confortável posição.

Como é de costume, Charles Möeller não dispensa os mínimos detalhes do cuidado estético. Há cenários que sobem e descem, trilha em todos os momentos da narrativa, movimentos de luz que invadem a cena nos tempos específicos e, no figurino, sobram perucas, babados e maquiagem positivamente. Todo esse enorme investimento estético, infelizmente raro hoje em dia, parece servir especialmente a um grande propósito: entreter. Através de suas marcas, a peça deixa a plateia em uma situação bastante estável que, quando é posta a perigo, gera um riso interessante à abordagem. As maldades de Jane vão surpreendendo cada vez mais, levando o público ao divertimento, mas também, pouco a pouco, à expectativa de que a ordem retorne, isto é, de que a vilã seja punida. A direção, em todos os seus argumentos, estrutura um quadro que vai ser reanalisado a partir dos momentos finais. E é isso exatamente que era para acontecer.

O cenário de Rogério Falcão com luz de Paulo Cesar Medeiros, o figurino de Carol Lobato com visagismo de Beto Carramanhos, e o desenho de som de Ademir Moraes Jr. constroem um misto de fantasia e de realidade. De um lado, o guarda-roupa e a ambientação atendem a propostas estéticas que, em exercício de redundância, aproximam a obra do consenso. Por outro, as caracterizações, a luz e a trilha sonora colaboram para um idealismo próprio de uma reflexão sobre cinema e teatro que os personagens propõem. As duas dimensões, ao contrário do que se poderia pensar, não são contraditórias, mas colaborativas. Em questão, está a lição de vida que o final oferece através delas.

É difícil identificar destacar os méritos dos trabalhos de interpretação, porque esses chegam ao público muito contextualizados por outras marcas estéticas: o texto, o figurino, a maquiagem, a luz e o cenário. Nedira Campos, dando vida à vizinha; Paulo Goulart Filho, ao pai e ao pianista; e Teca Pereira, à empregada, parecem aproveitar muito bem as chances que têm e apresentam trabalhos, dentro do possível, valorosos. Ágatha Félix e Juliana Rolim, que interpretam respectivamente e a menina e a moça Jane têm mais oportunidades que Duda Matte e Karen Junqueira, a menina e a moça Blanche. Nesse sentido, talvez esteja aí o destaque que as primeiras ganham – e conquistam – em relação às segundas.

Eva Wilma e Nathalia Timberg são as estrelas da produção. Cada uma delas acumula uma carreira longa e cheia de sucesso no teatro e na televisão que se confirma por seus trabalhos nessa montagem. Se o filme não é popular entre o maior público, esse também pode gostar dele a partir do interesse gerado pela presença desses grandes nomes no elenco. Quanto a suas participações, vale dizer que, aprisionadas pelas inúmeras referências tanto à obra primeira quanto às marcas estéticas da própria produção, o trabalho delas sofre como os outros: é difícil identificar as particulares. É fácil, no entanto, perceber os mesmos aspectos positivos: texto bem dito, marcações bem feitas, ótimo ritmo.

Aplausos!
“O que terá acontecido a Baby Jane?” foi um grande espetáculo que passou pelo Brasil, atravessando a enorme crise que assola o país com a cabeça erguida e fazendo o público se orgulhar de seus artistas. Valeu a pena tê-lo assistido e torce-se que prossiga sua carreira em outros lugares da nação. Aplausos!

*

Ficha técnica:
Autor: Henry Farrell.
Adaptação: Charles Möeller.
Tradução: Claudio Botelho.
Direção: Charles Möeller.
Cenografia: Rogério Falcão.
Figurinos: Carol Lobato.
Iluminação: Paulo Cesar Medeiros.
Visagismo: Beto Carramanhos.
Design de som: Ademir Moraes Jr.
Coordenação Artística: Tina Salles.
Produtor executivo: Bruno Avellar
Assistente de produção: Leonardo Leone
Elenco: Eva Wilma, Nathália Timberg, Paulo Goulart Filho, Teca Pereira, Nedira Campos, Juliana Rolim, Karen Junqueira e as crianças Sophia Valverde, Duda Matte, Alessandra Martins e Ágatha Félix.
Realização: Brain+