segunda-feira, 30 de novembro de 2015

El pánico (RJ)


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Elisa Pinheiro, Kelzy Ecard e Paulo Verlings
Foto: Felipe Pilotto

Comédia a la Almodóvar


Em “El pánico”, a direção de Ivan Sugahara melhora o texto do argentino Rafael Spregelburd a partir de um ponto de vista mais acessível e muito mais interessante ao público brasileiro. A montagem, inspirada na estética kitsch dos primeiros filmes de Pedro Almodóvar, encenada em portunhol, deixou o texto mais engraçado pela relação com as novelas latinas ainda transmitidas em nosso país. O elenco, dentro de uma concepção bem amarrada do encenador, mostra bom trabalho no geral. Destacam-se ainda o figurino de Joana Lima e o visagismo de Josef Chasilew. Depois de cumprir temporada no Espaço SESC de Copacabana, a peça está em cartaz na Sede das Companhias, na Lapa, onde fica até 14 de dezembro.

O quinto texto da "Heptologia de Hieronymus Bosch" de Rafael Spregelburd
A história começa logo depois da morte de Emílio (Marcio Machado) quando uma agente imobiliária, Rosa (Julia Marini), está tentando alugar o apartamento onde ele morava. Betiana é uma das candidatas, mas ela pressente energias “estranhas” no imóvel. Trata-se do fantasma do falecido, que é padrasto de sua colega Jessica (Elisa Pinheiro) nas aulas de dança da Professora Elyse (Suzana Nascimento). Jessica e Guido (Paulo Verlings) são filhos do primeiro casamento de Lourdes (Kelzy Ecard), viúva de Emílio. Para se verem livres uns dos outros, essa mãe e seus filhos precisam retirar uma grande quantia de dinheiro que está no cofre do banco. O problema é que, só depois de encontrar a chave desse cofre, poderão fazer isso. Começa, então, uma aventura deles atrás da memória de onde essa chave foi abandonada. Entram em cena aí a vidente Susana (Suzana Nascimento) e uma terapeuta de família (Débora Lamm).

Escrita em 2002 e levada à cena pela primeira vez no ano seguinte, a peça é o quinto texto que faz parte do que Rafael Spregelburg denominou de “Heptologia de Hieronymus Bosch”, o El Bosco (1450-1516), célebre pintor holandês renascentista. O quadro “Os sete pecados capitais” dele gerou os textos “A inapetência", "A extravagância, "A modéstia" (dirigido no Brasil por Pedro Brício em 2012) e a "A estupidez" (que teve montagem de Ivan Sugahara recente também). Depois de "El pánico", vieram "A paranoia" e "A teimosia", fechando o grupo de sete obras. "El pánico" se refere ao pecado da preguiça, esse representado na obra de Bosch por um homem cochilando diante de uma lareira acesa e de um gato dormindo enquanto, atrás de si, uma mulher chega para lembrá-lo de ler a bíblia.

É muito difícil estabelecer relações entre o quadro de Bosch e a peça de Spregelburd. O desafio, que aliás é bem pouco útil à fruição do segundo, fica menor se houver esforço em identificar nos personagens uma tendência deles em se acomodar. A professora de balé se apoia na sua antiga fama e as bailarinas nos movimentos mais fáceis. A gerente do banco na burocracia, a psicóloga nas marcas superficiais de comportamento, a mãe no modo como o destino se encarrega de cuidar de seus filhos. Esse movimento do olhar do espectador pode revelar alguns níveis para além do mais simples no texto positivamente.

 O título "El pánico" pode se referir a uma inscrição no quadro de Bosch que diz "Cuidado, cuidado, Deus vê". O pavor desse Deus, capaz de identificar o pecador e de puni-lo por seu pecado, tinha um objetivo prático: fazer com o que o homem mudasse de comportamento. Esse posicionamento moralista e um tanto quanto didático que caracteriza um dos pontos limítrofes entre a arte renascentista e a barroca é, na peça de Spregelburd, ponto de entrada para o melodrama exacerbado. O melodrama, um exagero do drama burguês do século XVIII e XIX, levou o moralismo às últimas consequências. A estética kitsch, da qual o espanhol Pedro Almodóvar é referencial no cinema, celebra o consumismo criticado na década de 80 por meio da comédia.

Ótima versão de Ivan Sugahara aproxima o texto de Pedro Almodóvar
Ivan Sugahara, assistido por Beatriz Bertu, acerta em optar pelo idioma “portunhol” (ótima tradução de Diego de Angeli) devido ao modo como os brasileiros consomem os teledramas latinos. As cores fortes e a variedade de tons e de estampas, assim como cortes de cabelos na alternativa das tendências, acompanhado do excesso de lágrimas, de gritos e de explosões emocionais, são aspectos facilmente identificados nas telenovelas dubladas. Tudo isso pode levar o público brasileiro às gargalhadas de maneira que o conjunto de opções da encenação tem a potencialidade de atribuir à dramaturgia original ainda mais força do que aconteceria em uma abordagem mais realista.

Na versão de Sugahara, quase desaparece do texto algum ponto de vista original de Spregelburd sobre o pânico dos vivos em relação ao mundo dos mortos. Nessa abordagem, o fantasma de Emílio é só mais um personagem um tanto especial porque pode saber aquilo que todos querem conhecer: onde está a chave do cofre. Nesse ponto de vista em que o personagem aparece mais humanizado, o espectador precisaria fazer muito esforço para reconhecer nele um representante de tudo aquilo que está no além. E que, conforme o título, poderia assombrar os que ainda estão aqui.

Bom conjunto de interpretações
Tem bom resultado o elenco de um modo geral, considerando os desafios diferentes que cada intérprete teve na divisão dos personagens. Marcio Machado (Emílio), Kelzy Ecard (Lourdes), Elisa Pinheiro (Jéssica) e Paulo Verlings (Guido) interpretam, cada um, apenas um único personagem, mas nenhum deles está propriamente comprometido com a força que leva a narrativa para adiante. Muito próximo do que acontece nos roteiros de Almodóvar dos anos 80, Lourdes, Jéssica e Guido apresentam o conflito inicial, mas se afastam dele: Lourdes desaparece, Jéssica relaxa com as amigas em uma festa privada e Guido se preocupa em resolver suas questões sexuais. Nesse sentido, o mérito dos intérpretes está no empenho em particularizar o universo dos seus personagens, confiando que isso será capaz de levar o interesse para adiante. E é.

Débora Lamm (a estudante Anabel, a bancária Cecília e a Terapeuta), Julia Marini (a agente imobiliária e outras), Pâmela Côto (Betiana e outras), Suzana Nascimento (a professora Elyse, a bancária Roxana e a vidente Susana) e Thais Vaz (a estudante Dudi e outras) vencem o desafio de apresentar figuras diferentes entre as várias que cada uma apresenta. No entanto, tal como o grupo anterior, seus personagens instauram um universo particular, mas nenhum deles está propriamente relacionado com a solução do conflito da narrativa. Perceber destaque em Lamm e em Nascimento é fácil sobretudo pelo modo como as duas atrizes souberam aproveitar bem as ótimas oportunidades que cada uma tinha em mãos.Em “El pánico”, há destaque no figurino de Joana Lima e no visagismo de Josef Chasilew pelo modo como o espetáculo materializa as concepções da direção que relacionam o texto à estética kitsch. A poluição visual, em clara concordância com idioma portunhol, mas também os movimentos, os tons nas vozes e as expressões, aparece assim em todos os aspectos do espetáculo. Na maneira como os personagens estão vestidos, porém, há um ótimo ápice nesse sentido. O cenário de André Sanches, que certamente será melhor observado no palco italiano do que o foi na arena, estabelece um dos poucos vínculos com o mundo sobrenatural. A iluminação de Aurélio de Simoni, em contraposição com o cenário, foi essencial na Arena, recortando a visão dos personagens e valorizando o palco positivamente.

Deliciosa comédia
O modo como o problema da peça (a busca pela chave perdida) parcialmente se resolve é um fato relevante nessa narrativa. Duelando-se isoladamente em contracenas que levam a narrativa através do tempo, mas não propriamente em favor dela, os personagens materializam uma tese do autor. O destino, ou Deus, continua com o poder de gerenciar a vida dos homens (mortos ou vivos) e será punido, na visão do texto, todo aquele que não estiver atento. Eis uma reflexão interessante que pode levar essa deliciosa comédia para além das melhores gargalhadas. 



*

FICHA TÉCNICA
Texto: Rafael Spregelburd
Direção: Ivan Sugahara
Tradução: Diego de Angeli

Elenco / Personagens
Debora Lamm - Anabel, Cecilia Roviro, Terapeuta
Elisa Pinheiro - Jessica Sosa
Julia Marini - Rosa Lozano, Marcia, Úrsula
Kelzy Ecard - Lourdes Grynberg
Marcio Machado - Emilio Sebrjakovich
Pâmela Côto - Betiana Garcia, Regina
Paulo - Guido Sosa
Suzana Nascimento - Elyse Bernard, Roxana, Suzana Lastri
Thais Vaz - Dudi, Melina Trelles

Cenário: André Sanches
Figurino: Joana Lima
Iluminação: Aurélio de Simoni
Preparação Corporal: Duda Maia
Preparação Vocal: Ricardo Góes
Assistente de Idioma: Florencia Santangelo Formento
Assistente de Direção: Beatriz Wurts Bertú
Visagismo: Josef Chasilew
Fotografia: Felipe Pilotto
Projeto Gráfico: Romulo Bandeira
Direção de Produção: Pâmela Côto
Produção Executiva: Thaís Vaz
Produtor Assistente: Leonardo Paixão
Uma Produção: L7 Produções Culturais
Realização: SESC Rio
Assessoria de Imprensa: JSPontes Comunicação – João Pontes e Stella Stephany

sexta-feira, 27 de novembro de 2015

Faça o que precisa ser feito (RJ)

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Foto: divulgação

Waleska Arêas, Edson Zille e Ricardo Gonçalves


Comédia inteligente e bem humorada em cartaz

"Faça o que precisa ser feito" é o novo espetáculo escrito e dirigido por Oscar Saraiva. Com Waleska Arêas, Edson Zille e Ricardo Gonçalves em ótimos trabalhos de interpretação, a comédia diverte o público em uma história cheia de reviravoltas. Próximo ao enterro da mãe, dois irmãos conhecem o jovem namorado da falecida, que diz ter direito à casa onde ela morava. Um jogo de relações entre os três começa, avançando para situações inimagináveis e muito divertidas. Em cartaz na Sala Multiuso, do Espaço SESC Copacabana, até o próximo 29 de novembro, eis uma hilariante opção na programação de teatro carioca.


Comédia original com ótimos trabalhos de interpretação
Muito mais jovem que ela, Bruno (Ricardo Gonçalves) namorava a mãe de Karine (Waleska Arêas) e de P2 (Edson Zille) até quando ela faleceu. O casal havia se conhecido há alguns meses e, apaixonados, passaram a conviver sem que os filhos dela soubessem. Para a surpresa de ambos, na primeira cena da peça, ele anuncia que não pretende sair da casa, o que dá início a um constrangimento mútuo entre os três. Com o evoluir das cenas, a narrativa vai revelando diversas situações hilárias vivenciadas pelos personagens. O texto de Oscar Saraiva é divertido, com diálogos ágeis e cheios de reviravoltas. No entorno, marcas que situam a história no hoje, no modo contemporâneo de lidar com relações afetivas e também familiares. Corrupção envolvendo dinheiro público e sonegação de impostos, laços afetivos, familiares e sexuais, jogo de interesses, entre outros, são temas que atravessam os personagens e os unem nessa história original bastante divertida.

Nas cenas finais, está a parte sensível do dramaturgia. Saindo da comédia de boulevard e avançando para um quadro surrealista, a melhor força da dramaturgia se perde. O desfecho exige do espectador contratos muito diferentes dos realizados na abertura de maneira que, ainda que os e personagens sejam os mesmos, parece que se trata de uma outra peça. No entanto, preservam-se as qualidades ainda que essas tenham ficado diferentes.

Os três trabalhos de interpretação são bastante positivos, mas Edson Zille e principalmente Waleska Arêas têm destaque. Em uma composição corporal que bem pode ser comparada com a de Buster Keaton, Zille dá vida para o texto de modo sublime. De início, o ator interpreta uma espécie de rapaz desastrado bem intencionado que se enfurece pelos problemas, mas evita outros ainda maiores. Depois, principalmente quando a história se modifica, vemos outros contornos, mais ardilosos e mais profundos. Com enorme força, Arêas também não perde o tom as piadas nos momentos assim como segura as falas mais dramáticas. Interpretando a personagem que pode ser vista como um tipo de vítima dos dois outros, ela surpreende principalmente quando, de modo sutil, expressa a sensibilidade de sua Karine.

Camilo Pellegrini assina inteligente direção de arte
“Faça o que precisa ser feito” tem ainda ótima colaboração de Camilo Pelegrini na direção de arte. O cenário é composto por três grandes telas em que se reproduzem imagens em discreto movimento. O feito, além de contextualizar a narrativa dentro do universo urbano e contemporâneo, aponta para a natureza viva e complexa da qual os personagens são apenas parte. Faz ainda sugestões na ordem da construção do sentido, com quadros mais abstratos e que podem amparar alguma sensação advinda dos diálogos e dos solilóquios aos quais se assiste pela cena. A contribuição é, além de bela, inteligente. A iluminação de Renato Machado, com menor lugar diante do valor dado ao cenário, faz positiva participação.

“Faça o que precisa ser feito” apresenta uma crítica social bastante bem-humorada que incita uma reflexão pertinente. Vale a pena ser visto.

*

Ficha técnica:
Texto e direção: Oscar Saraiva.
Elenco: Edson Zille, Ricardo Gonçalves e Waleska Arêas.
Direção de arte: Camilo Pellegrini.
Iluminação: Renato Machado.
Produção: Maria Clara Guim.
Realização: Sesc

quarta-feira, 25 de novembro de 2015

Bolo de carne (RJ)

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Foto: Aline Macedo

Zeca Richa (em cima) e Pedro Emanuel

Feliz encontro de duas companhias cariocas de teatro

“Bolo de carne” é o espetáculo que marca a parceria entre duas companhias teatrais cariocas, sendo o melhor trabalho de ambas. O texto é assinado por Pedro Emanuel, da Cia. em Obra, e a direção é de Iuri Kruschewsky, da Sala Escura de Teatro. No elenco e na ficha técnica, há integrantes dos dois grupos e convidados. A história gira em torno de Paulo, um funcionário de uma grande empresa, que se esforça para ficar alheio à sanha opressora do mundo em que vive. Essa, porém, é uma tarefa que fica mais difícil quando Silva, um novo funcionário, é contratado. Pouco a pouco, o novo colega exercerá sua influência sobre Cardoso, chefe de ambos, mas também sobre Heloísa, esposa de Paulo. Com ótimos diálogos no texto, quadros imagéticos cheios de potência no palco e elogiáveis interpretações de Ana Beatriz Macedo, Gilson de Barros, Zeca Richa e de Pedro Emanuel, o espetáculo é uma ótima opção na programação teatral carioca. A peça está em cartaz no Parque das Ruínas, na Lapa, até o próximo domingo, dia 29 de novembro.

O prazer de ouvir teatro tão bem escrito
A narrativa começa com um diálogo entre Paulo (Pedro Emanuel) e sua esposa Heloísa (Ana Beatriz Macedo) acerca de um acidente de trânsito em que um homem morreu. Desde o início, o espectador percebe a frieza instaurada no ambiente doméstico e os jogos de poder principalmente propostos pela esposa. Para Paulo, o local de trabalho não é menos confortante. Cardoso (Gilson de Barros), o chefe, não se exime da oportunidade de oprimi-lo principalmente a partir da chegada de Silva (Zeca Richa), o novo funcionário.

Em termos de fábula, talvez o mais interessante na narrativa de “Bolo de carne” seja o modo como o protagonista Paulo resiste às pressões e mantém-se como herói. Pouco a pouco, mas cada vez mais, é como se o protagonista fosse ficando encurralado em um universo onde não há bom senso nem tampouco humanidade. Vítima de uma espécie de “seleção natural”, Paulo luta contra a própria extinção e o seu esforço é justamente o que enternece o público que testemunha sua desventura.

Nessa dramaturgia realista, há ainda que se destacar o modo como as palavras atuam nos diálogos. A maneira como elas estão articuladas dá a ver apurado refinamento estético, sonoridade de beleza destacável e profundidade no que diz respeito ao conteúdo. Além disso, o texto não apenas revela uma história, mas manifesta um posicionamento acerca do mundo que merece a atenção da plateia. Dá prazer ouvir teatro tão bem escrito!

O encontro entre Iuri Kruschewsky e Pedro Emanuel
Na direção, Iuri Kruschewsky lembra o público de que se está em um teatro, procurando talvez exigir-lhe uma fruição mais consciente e menos alienada. Em todas as cenas, a movimentação dos atores, embora comece em um sentido mais realista, abandona o óbvio e parte para novos sentidos. Longe de estabelecer uma briga de forças com o texto, a direção, assim, propõe outras perspectivas para o traço das relações que a dramaturgia prevê.

Outro aspecto relevante da direção é o modo como a narrativa se desenvolve em uma curva crescente. Cada vez mais pressionado, o personagem Paulo (Pedro Emanuel) é levado à explosão, o que só quem assistir à peça poderá concluir algo a esse respeito.

Todos os trabalhos de interpretação são elogiáveis nesse espetáculo. Pedro Emanuel, considerando os desafios de um protagonista, é quem apresenta o melhor trabalho. Da força empregada por Gilson de Barros na viabilização de Cardoso, ao sadoquismo sarcástico na construção de Heloísa por Ana Beatriz Macedo, passa-se pela ironia ardilosa de Silva defendido por Zeca Richa. Enfim, chega-se em um lugar complexo que fica além de Macabeia e de Arandir, mas bem antes de Vasco da Gama. Mais humano, mais próximo, mais palpável, o modo como Pedro Emanuel desenha Paulo é talvez mais afiado.

Cia. em Obra e Sala Escura de Teatro
“Bolo de carne” se apresenta ainda com ótimas colaborações principalmente do figurino de Tiago Ribeiro e da trilha sonora de Eduardo Parreira e de Mário Terra. As músicas são interpretadas ao vivo pela dupla e também pelos atores, oferecendo uma leitura que talvez diga respeito à atualidade do teatro. O cenário de Carlos Augusto Campos polui o espetáculo sobretudo porque traz ainda novo trabalho para o espectador, esse já ocupado em dar sentido para o texto e para a interpretação. A luz de João Gioia faz boa colaboração.

“Não há melhor lugar que a nossa casa”, “O confuso e misterioso roubo das vírgulas” e “Febril”, da Cia. em Obra; a “Trilogia dos sonhos” e “3 dias ou menos”, da Sala Escura de Teatro, ganham em “Bolo de carne” mais um bom momento para celebrar. É um prazer acompanhar a história do teatro brasileiro sendo produzida no aqui e agora.

*

Ficha técnica:

Texto original: Pedro Emanuel
Direção: Iuri Kruschewsky
Iluminação:João Gioia
Figurino: Tiago Ribeiro
Fotos: Aline Macedo
Trilha Original: Eduardo Parreira e Mário Terra
Cenografia: Carlos Augusto Campos
Direção de Movimento: Raffaele Casuccio
Direção de Prodção: Rubi Schumacher

Elenco:
Ana Beatriz Macedo
Gilson de Barros
Pedro Emanuel
Zeca Richa

Se vivêssemos em um lugar normal (RJ)

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Foto: divulgação


Roberto Rodrigues

Ótima versão para teatro do romance de Juan Pablo Villalobos

“Se vivêssemos em um lugar normal” é a versão teatral do romance homônimo do escritor mexicano Juan Pablo Villalobos. A ótima adaptação é assinada por Roberto Rodrigues, que atua nesse monólogo de modo vibrante. Depois de uma temporada no Espaço SESC Tijuca e no Parque das Ruínas, e de participar da mostra de repertório da Cia. Teatral Milongas na Sede das Cias, o espetáculo deve retornar a cartaz em breve. Na história, está o ponto de vista sobre a corrupção e a violência de um garoto pobre de um subúrbio no México. Eis uma comédia que tem o mérito de fazer o público refletir e se emocionar.

Segundo livro da Trilogia do México
Trata-se do segundo romance de Juan Pablo Villalobos, que finalizou agora a Trilogia do México. Ela começa com “Festa no covil”, de 2011, e terminou com “Tô vendo um cachorro”, de 2015. “Se vivêssemos em um lugar normal”, cujo título original é “Quesadillas”, foi lançado em 2013.

Orestes é o personagem que conta sua história. Ele tem 13 anos e é o segundo de sete filhos de um casal pobre morador de Lagos de Moreno, no México. (Esse é também o lugar onde nasceu Villalobos.) Uma das primeiras histórias diz respeito ao modo como a família do personagem dividia as quesadillas feitas pela mãe para alimentar a prole. Apertados em uma pequena casa, os sete irmãos aprenderam a calcular, pensando em quantas quesadillas sobrariam se não houvesse tantas bocas.

O desaparecimento dos gêmeos Castor e Pollux, em uma ida ao supermercado, é o que dá início à ação propriamente dita do romance. A partir desse fato, Orestes analisa a atuação da polícia e, de modo mais comprometido, faz reflexões sobre a situação dos pobres em sua sociedade. A chegada de uma família de poloneses, que passa a habitar um palacete vizinho, é outro acontecimento através do qual o jovem protagonista oferece sua visão de mundo. O chefe dessa família acaba sendo metáfora para Orestes compreender a opressão vivida pelos mais necessitados e principalmente o modo como os mais ricos pensam.

Entre as aventuras do personagem, está a explicação de Aristóteles, o irmão mais velho de Orestes, para o desaparecimento dos gêmeos. Segundo ele, os dois foram abduzidos por extraterrestres. Ao partir em busca de provas que possam dar conta da verdade sobre o caso, Orestes inicia a maior de suas aventuras. Abordando questões sérias e que revelam um duro retrato do mundo, a novela diverte a partir de seus elementos tragicômicos. É possível identificar os muitos méritos da adaptação de Roberto Rodrigues pelo modo como o corte é feito. Atualizando a historia sob a perspectiva do teatro, sem satisfazer o interesse em ler o livro, essa versão o desperta ainda mais, encantando o espectador. Excelente!

Roberto Rodrigues em destacável trabalho de interpretação 
Com colaboração artística de Breno Sanches, Hugo Souza e de Matheus Rebelo, a atuação de Roberto Rodrigues apresenta trabalho bastante positivo. O ator interpreta o personagem narrador no âmbito de sua humanidade, evitando gags cômicas que poderiam superficializar a proposta. Não se recorrem aos tipos, mas, ao contrário, explora-se a relação com o público através de um olhar filme, um diálogo fluente e assertivo e principalmente uma corporalidade capaz de dominar o espaço em suas máximas possibilidades. Ótimo ritmo se percebe na condução da narrativa através do tempo através da excelente alternância de acontecimentos, evoluindo em crescente de maneira a convidar o público a esperar pelo final. O intérprete, já elogiado aqui em “Espelunca” da mesma Cia. Teatral Milongas, merece renovados aplausos.

“Se vivêssemos em um lugar normal” tem trilha sonora assinada por Victor Hora que, remetendo à música interiorana, estabelece boa relação entre o público e a narrativa. O figurino de Bruno Perlatto tem participação mais discreta, mas capaz de oferecer o essencial para a composição do personagem tanto em termos de sua apresentação visual como dos seus movimentos. Assinada por Adriana Millomem, a iluminação faz excelente colaboração com o espetáculo no que diz respeito ao uso do espaço e na pontuação do ritmo.

Eis mais um ótimo espetáculo da Cia. Teatral Milongas que merece aplausos.

*

Ficha técnica:

Texto: Juan Pablo Villalobos
Adaptação e Atuação: Roberto Rodrigues
Colaboração artística: Breno Sanches, Hugo Souza e Matheus Rebelo
Figurino: Bruno Perlatto
Iluminação: Adriana Milhomem
Direção de Movimento: Maria Celeste Mendozi
Preparação vocal: Jane Celeste
Operador de Luz: Rafael Tonoli
Trilha Sonora: Victor Hora
Programação visual: IviSpezani
Fotografia: Renan Lima
Assessoria de Imprensa: Lyvia Rodrigues(Aquela que Divulga)
Produção: Pagu Produções Culturais
Realização: Cia. Teatral Milongas

Rasgue minhas cartas (SC)

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Foto: Cristiano Prim

Marina Argenta

Marina Argenta brilha em ótimo espetáculo dirigido por André Carreira

Dirigido por André Carreira, “Rasgue minhas cartas” foi produzido pelos alunos da disciplina de Montagem I – 2015 do curso de Licenciatura em Teatro da Universidade do Estado de Santa Catarina em junho último. Trata-se de uma nova versão do texto “Open House”, do argentino Daniel Veronese. Temas como solidão, abandono e dificuldade de lidar com os acordos afetivos são abordados por Alunos de Teatro na obrigação de dizer algo em cena. Tendo feito apresentações ao longo do segundo semestre do ano, o trabalho tem destaque nas atuações de Ana Flavia Zechini, Camila Passos e Thuanny Paes, mas principalmente na de Marina Argenta, essa última em excelente participação. Na estranha inexistência de uma grade dividida em temporadas, que organizaria o mercado das artes cênicas em Florianópolis, o grupo faz apresentações esparsas as quais o público da capital catarinense deve acorrer quando possível.

O público na construção do sentido do espetáculo
Quando o público entra, os atores que fazem parte do elenco já estão no palco, observando as pessoas encontrarem seus assentos. Não há cortinas, o interior do teatro está revelado e os figurinos usados são similares às roupas vestidas pela audiência. Desde a primeira fala, entende-se que o espetáculo existirá em um intervalo entre a ficção e a realidade além da cena, o que teoricamente resgata o princípio artaudiano de atualidade. Segundo esse, proposto pelo encenador francês Antonin Artaud (1896-1948), o teatro deve falar do agora, do momento presente, da situação compartilhada entre ator e público. Imediatamente, estabelece-se uma rede de relações em que se privilegiam o direito humano de ser ouvido e o seu dever de valorizar sua humanidade.

Em cena, doze intérpretes apresentam suas figuras com expressões discretas, enchendo de responsabilidade o figurino e o texto. Através desse último, conhecem-se algumas ações, determinadas situações, sonhos ou resquícios de reflexão por meio das quais se identificam suas diferenças. É o público quem, em primeiro lugar, precisa preencher o que não foi revelado e, por fim, concluir alguma possível relação entre tudo o que é narrado. Por princípio, só os fatos de coabitarem o mesmo espaço e dividirem o tempo justificam suas presenças.

Há quatorze anos, “Open House” foi produzido em regime de colaboração entre o dramaturgo Daniel Veronese e alunos do Instituto Universitário Nacional de las Artes da Argentina. O grupo, já modificado hoje em dia, segue em apresentações ainda dentro da sua concepção original. Em 2005, no Rio de Janeiro, Antônio Guedes dirigiu uma montagem do texto traduzido por Fátima Saadi com seus alunos de teatro na UniverCidade. A mudança no título, nessa versão atual do texto, dirigida por André Carreira, talvez tenha se dado sob a inspiração da canção “Devolva-me”, de Renato Barros e de Lílian Knapp, gravada em 1966 por Leno e Lilian e em 2000 por Adriana Calcanhoto. Ela abre o espetáculo e sugere o universo semântico através do qual o passado pode justificar a situação presente. A direção musical é assinada por Fernando Bresolin.

Marina Argenta em excelente participação
A direção de André Carreira, assistido por Drica Santos e por Lara Matos, organiza a adaptação do texto original feita pelo grupo que assina essa versão. De modo elogiável, há fluidez na articulação dos quadros em um ritmo que valoriza a situação do ouvir-se. Na movimentação, nenhum ator sai de cena de maneira que os personagens são também públicos uns dos outros. Em todos os sentidos, mas principalmente no modo simples como a encenação se dá, o espetáculo cria clima adequado à abertura de feridas. Facilmente, sente-se convidado a refletir sobre a própria vida, o que é sempre muito positivo.

Na narrativa, há poucos elementos para dar conta do que tradicionalmente se chama personagem. Ana Flavia Zequini, Camila Passos, Francine Costa, Gabriela Dalle Cort, Henrique Goulart, Laura Manuella, Marina Argenta, Ohanna Picolo, Priscila Francisco, Thuanny Paes e Verônica Bortolotto interpretam Alunos de Teatro, sendo também de fato isso no além dessa montagem. Nesse sentido, cada figura da narrativa é lugar de confluência entre as marcas do personagem do texto e os empréstimos da vida daqueles que os interpretam. Mas a questão fundamental aqui é que “Rasgue minhas cartas” se apoia na manutenção da dúvida entre qual dos dois lados está operando com mais força.

Em participações menores, Camila Passos e Thuanny Paes, bem como, mais privilegiada pela dramaturgia, Ana Flavia Zechini têm destaque. Elas sustentam a atenção, construindo e defendendo as marcas mais essenciais da estética do espetáculo já destacadas. Henrique Goulart, o único ator entre as atrizes, também faz colaboração marcante com movimentos discretos e limpos. No entanto, Marina Argenta é quem faz a melhor participação do grupo. Com expressões complexas, através das quais se vê choro e gargalhada, a intérprete dá conta de apresentar melhor o traço humano presente nas histórias. Há excelente uso das nuances de voz, gestual equilibrado e enorme carisma. Excelente!

Aplausos!
A partir desses aspectos, “Rasgue minhas cartas” anuncia claramente o valor dado ao público na construção do sentido do espetáculo. Todas essas características levantadas sobre o espetáculo têm a potencialidade de defender sua concepção estética. Depois de sessenta minutos, não se sai com a narrativa de Veronese (nem com a da adaptação desse grupo na cabeça). Ao contrário, leva-se para a casa a lembrança de se ter ouvido pessoas abrirem suas almas e falarem de si, ou de se ter assistido a uma peça que valorizava esse gesto. Aplausos!

*

Ficha técnica:

Texto: baseado em “Open House”, de Daniel Veronese
Direção: André Carreira
Elenco: Ana Flavia Zequini, Camila Passos, Francine Costa, Gabriela Dalle Cort, Henrique Goulart, Laura Manuella, Marina Argenta, Ohanna Picolo, Priscila Francisco, Thuanny Paes e Verônica Bortolotto
Assistentes de Direção: Drica Santos e Lara Matos
Produção: Samanta Daus Silvius
Luz: Ivo Godois
Direção Musical: Fernando Bresolin
Monitoria: Marlon Spilhere

terça-feira, 24 de novembro de 2015

A Santa Joana dos Matadouros (RJ)

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Foto: divulgação


Luisa Arraes

Excelente versão de texto brechtiano

O excelente "A Santa Joana dos Matadouros" é capaz de de oferecer ao espectador não apenas êxtase estético, mas refinada reflexão política. Dirigido por Diogo Liberano e por Marina Vianna, o trabalho é uma adaptação do original de Bertolt Brecht. No elenco, Luisa Arraes brilha na personagem título ao lado de um conjunto de participações igualmente cheias de méritos, como as de João Velho, Leonardo Netto, Vilma Melo e de Adassa Martins. A produção conta ainda com qualificada colaboração da direção de arte de Bia Junqueira, da direção musical de Rodrigo Marçal e de Arthur Braganti e da iluminação de Paulo Cesar de Medeiros. O espetáculo estreou nesse final de semana no Teatro Glaucio Gill, em Copacabana, e cumpre temporada até 21 de dezembro.

Lugar de confluência entre vários acontecimentos históricos 
O texto original de "Santa Joana dos Matadouros" foi escrito pelo alemão Bertolt Brecht (1898-1956) logo depois do sucesso do seu "A ópera dos três vinténs", de 1928. Naquele momento e lugar, o povo germânico estava destroçado. Sessenta anos antes, inúmeras revoltas haviam unido vários pequenos reinos em um só país chamado Alemanha, o mesmo que, em 1918, havia perdido uma guerra sangrenta contra a França, a Inglaterra e os Estados Unidos. Com a identidade debilitada, a economia falida e uma posição internacional praticamente inexistente, a Alemanha foi um dos países que mais sofreu as consequências do colapso da Bolsa de Valores de Nova Iorque, em 1929.

Personagem protagonista da narrativa, Joana é uma pobre moradora de Chicago, nos Estados Unidos, onde se passa a história. Ela faz parte dos "Boinas Negras", ou "Soldados de Cristo", grupo que se dedica a fazer pregações religiosas entre os trabalhadores da cidade. As aspirações teológicas do grupo, porém, vão à falência diante do frio e da fome compartilhada pelos frequentadores ao longo da crise econômica. Então, Joana decide conhecer o responsável pelos dissabores vividos por ela e pelos seus irmãos. É quando se dá o encontro entre Joana e Mauler, rico empresário dono dos matadouros e das fábricas onde se industrializa carne enlatada. Os dois personagens, ao lado de Slift (quem gerencia os negócios de Mauler) e de Snyder ( o líder religioso), são as estruturas fundamentais dessa narrativa brechtiana.

Em 1920, o papa Bento XV havia santificado a mártir francesa Joana D’Arc (1412-1431). Nos momentos finais da Guerra dos Cem Anos (1337-1453), a França estava dividida: de um lado, a nobreza de Borgonha apoiava o inglês Henrique VI, coroado rei da França em Paris. De outro, os Orleáns apoiavam a coroação do francês Carlos VII. Em meio à guerra, para demonstrar seu apoio ao segundo, a então a jovem Joana D'Arc atravessou perigosamente o território inimigo e, sem nunca ter visto o delfim, o reconheceu sem ajuda em uma sala repleta de outros nobres. Em "Santa Joana dos Matadouros", Brecht reproduz essa cena quando Joana, sua protagonista, reconhece Mauler entre os executivos em reunião. No texto, além dessa, há várias outras pontes entre as duas personagens.

Assim, dentre os vários méritos do texto, está o fato de ele ser lugar de confluência entre diversos acontecimentos históricos além de oportunidade de reflexão política. A França de Joana D’Arc havia sido inimiga da Alemanha na Primeira Guerra Mundial. Os Estados Unidos também, mas o pequeno levante da indústria alemã na República de Weimar havia se dado graças ao dinheiro americano que entrou fartamente ao longo dos anos 20. Logo ali ao lado, a Rússia vivia o regime socialista a favor do qual Bertolt Brecht havia sempre se manifestado. Nesse sentido, para longe de um proselitismo político, esse como todos os outros textos desse autor consegue a façanha de inspirar um pensamento político-ideológico, mas sempre, antes de tudo, ressaltando a humanidade nos personagens em questão.

"Santa Joana dos Matadouros" só foi produzido para teatro em 1959, três anos depois do falecimento de Bertolt Brecht. Hanna Hiob, filha do autor, interpretou a personagem título na ocasião. Em vida, ele dirigiu uma versão para rádio (o original demoraria três horas para ser encenado) em abril de 1932. No Brasil, a tradução de Roberto Schwarz, que Vianna e Liberano usaram na montagem aqui analisada, também serviu de base para a da Companhia do Latão, de 1998. A produção mais recente, assinada por José Renato, aconteceu em 2010, tendo essa feito várias apresentações principalmente em sindicados e em outros movimentos e eventos sociais.

O distanciamento brechtiano em foco
Ao lado das questões da ordem da fábula, existem no teatro brechtiano outros aspectos relevantes que o espetáculo "A Santa Joana dos Matodouros" também bem apresenta. O autor, jutamente com o diretor Erwin Piscator (1893-1966), propôs uma alternativa para o teatro dramático (realista) ou o de verve lírica (simbolista) produzido na Europa no início do século XX. Chamou-se de Teatro Épico o movimento da dupla em favor de um tipo de espetáculo teatral em que o público não ficasse absorto ao longo da encenação, mas se mantivesse conscientemente capaz de tomar decisões e de assumir o controle de suas reflexões. O "efeito de distanciamento" (verfremdungseffket) consistia, assim, em um conjunto de ações da encenação que tinham o objetivo de fazer o espectador acordar do topor ilusório, lembrar de que estava em um teatro e que a realidade, ao redor dali, não havia deixado de existir. Daí que o discurso de "Santa Joana dos Matadouros" é intercalado de frases dirigidas diretamente à plateia, os tempos verbais remetem ao tempo narrativo, mas também ao futuro, e o que é dito nem sempre concorda com as ações que estão sendo realizadas. Tudo isso, que hoje em dia faz parte do que se poderia chamar de linguagem teatral, era novidade nos palcos da Alemanha dos anos 30.

A direção de Marina Vianna e de Diogo Liberano confortavelmente se esforça em atualizar essa perspectiva original na encenação do texto. A peça começa quando Marta (Adassa Martins) surge do público e fala com a plateia. Segue-se um momento em que os atores entram e preenchem o palco com centenas de camisetas de malha que, sob o desenho de luz de Paulo Cesar de Medeiros, fazem o palco ganhar aparente textura de pele humana. Essas mesmas camisetas ganharão toda a ordem de sentido ao longo do espetáculo, exigindo do espectador que ele assuma o controle do sentido ofertado a elas. Marcas conhecidas estampadas relacionam a peça ao momento presente.

Ao longo de duas horas, em uso brilhante do ritmo, a narrativa se alterna em movimento de abrir e de fechar, avançando na fábula, mas convocando o público para a reflexão. Os atores dizem o texto sem amolecer as palavras, valorizando sua sonoridade. Dividido em vários planos, o palco é lugar usado pelo elenco em quadros cuja beleza confere a direção muitos motivos para se elogiar. A cena em que Gunnar Borges parece manipular os movimentos de Luisa Arraes é um dos pontos altos no teatro carioca de 2015.

Luisa Arraes brilha na personagem título
Também composto por Leandro Santanna, Sávio Moll e por Gunnar Borges, o elenco tem ótimas participações de Adassa Martins (Marta), de Leonardo Netto (Slift) e de Vilma Melo (viúva Luckernidle) dispostas a deixar ver grande força e alta capacidade de significação nos menores detalhes. Talvez no melhor trabalho de sua carreira, João Velho (Mauler) se esforça em dizer o texto mais difícil na beleza de suas palavras embora nem sempre com a máxima potencialidade que o papel lhe reserva. Luisa Arraes tem atuação nada menos que brilhante. Sua Joana se oferece tal cordeiro em sacrifício, mas é também leão que ruge no deserto: a perfeita complexidade na figura divina da qual trata Brecht ao longo do texto. Suas palavras finais emocionam. Eis um trabalho marcante!

A diretora de arte Bia Junqueira tem participação essencial nos méritos dessa produção. O figurino, além de sugerir essa atualização da teoria por trás do texto original, também não hesita em narrar. Joana usa roxo nas cenas finais em uma referência ao especto místico de sua personagem, vários personagens usam aparelhos ortopédicos, o corte da camiseta do líder religioso Snyder não é como o dos demais. O cenário, com poucos elementos, constrói a sensação do clima gelado em que vivem os personagens. A direção musical de Rodrigo Marçal e de Arthur Braganti e a iluminação de Paulo Cesar de Medeiros estão tão bem articuladas ao guarda-roupa e aos elementos cenográficos que a estrutura "A Santa Joana dos Matadouros" parece indissociável, movimentando-se pelo tempo e através do espaço de modo sólido mas honradamente perene.

A produção atual de "A Santa Joana dos Matadouros", cuja dramaturgia inclui o texto original de Bertolt Brecht, mas foi acrescida de outros elementos, foi idealizada por Marina Vianna. Pouco encenado no Brasil, eis aqui uma oportunidade de assistir a um excelente espetáculo em cartaz, um dos melhores do ano certamente.

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FICHA TÉCNICA
Do original "Santa Joana dos Matadouros", de Bertolt Brecht
Direção: Marina Vianna e Diogo Liberano
Tradução: Roberto Schwarz
Dramaturgia: Diogo Liberano
Elenco: Adassa Martins, Gunnar Borges, João Velho, Leandro Santanna, Leonardo Netto, Luisa Arraes, Sávio Moll e Vilma Melo
Músico em cena: Arthur Braganti
Direção de arte: Bia Junqueira
Direção Musical: Rodrigo Marçal e Arthur Braganti
Direção de Movimento: Laura Samy
Iluminação: Paulo César Medeiros
Produção executiva: Marcelo Mucida
Direção de produção: Ana Lelis
Realização: Moinho Produções
Idealização: Marina Vianna e Luisa Arraes

Personagens:
Luisa Arraes – Joana Dark, a missionária
João Velho – Mauler, o rei da carne enlatada
Leonardo Netto – Slift, braço direito de Mauler
Sávio Moll – Cridle, industrial da carne enlatada
Vilma Melo – D. Luckernidle, viúva de um trabalhador
Adassa Martins – Marta, missionária
Leandro Santanna – Snyder , missionário
Gunnar Borges – Gloomb, um trabalhador

quinta-feira, 19 de novembro de 2015

A floresta que anda (RJ)

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Foto: divulgação


Julia Bernat

Teatro tem papel coadjuvante em nova obra de Christiane Jatahy

“A floresta que anda”, de Christiane Jatahy, encerra a sua trilogia dos clássicos, composta pelos espetáculos “Julia” (baseado em “Senhorita Julia”, de Strindberg) e “E se elas fossem pra Moscou?” (“As três irmãs”, de Tchekhov). A produção é livremente inspirada em “Macbeth”, de William Shakespeare, mas, diferente dos espetáculos anteriores, esse revela quase nenhuma investigação no campo das artes cênicas. Sugerindo espaço para reflexão sobre o papel do espectador na construção do sentido do espetáculo e enchendo o público de máxima responsabilidade, a encenadora apresenta uma obra em que o teatro faz papel coadjuvante. Sem desmérito algum, há um avançar mais para o campo das artes visuais nesse evento em cartaz na Sala Mezanino do Espaço SESC Copacabana até 29 de novembro.

Referências ao texto “Macbeth”, de William Shakespeare
Espalhadas pelo ambiente, há quatro telas onde, em cada uma, é exibido um documentário cinematográfico diferente. Eles são sobre o modo como jovens do Brasil e do mundo tiveram suas vidas atravessadas pelos movimentos políticos mais recentes. Em um canto, a atriz Julia Bernat, vestida de negro, bebe vinho elegantemente enquanto observa os transeuntes. Cerveja, água e refrigerante são servidos ao público que escolhe o que ver e durante quanto tempo. Cada um recebeu, na entrada, uma lista de instruções que diferem de espectador para espectador em alguns aspectos. Entre elas, está o pedido de não revelar para outras pessoas o que consta em sua lista recebida.

O texto de “Macbeth” foi escrito na primeira década do século XVII, logo depois da ascensão ao trono inglês de Jaime I. O novo rei, que já era o monarca da Escócia há 37 anos, era sobrinho-bisneto de Henrique VIII, pai de Elizabeth I, que havia falecido em 1603 sem descendentes. É justo reconhecer que o dramaturgo William Shakespeare, tão agraciado no período elisabetano, almejasse o mesmo conforto no novo governo. Dizia-se que Jaime I era descendente de Banquo, personagem importante na lenda secular de Macbeth, que o bardo reescreveu.

A história de “Macbeth” se passa na Escócia no século XI. Depois de ter assassinado o Rei Duncan, o personagem Macbeth assume a coroa levando à morte outros inimigos de sua ambição. Lá pelas tantas, as bruxas que uma vez profetizaram sua ascensão ao trono reaparecem com novas previsões: ele não seria vencido até que a floresta de Birnam fosse até o alto do Monte Dunsiname, em cima do qual ficava o castelo real. A história termina quando Malcolm, filho de Duncan, traz um exército escondido sob galhos das árvores de Birnam, retomando a posse sobre a coroa de seu pai. (Outra profecia das bruxas era a de que Banquo não seria rei, mas geraria uma linhagem de reis. Eis aí o afago de Shakespeare ao seu novo Rei Jaime I.)

O título “A floresta que anda” faz assim referência à visão do Rei Macbeth sobre a perda de sua coroa, conforme previra as bruxas. Outra referência da produção ao texto shakespeariano é a loucura de Lady Macbeth (Julia Bernat), lavando incessantemente suas mãos sujas de sangue. Dentro da Sala Mezanino, ecoam ainda trechos da tragédia.

Relações possíveis a partir do espetáculo de Jatahy
Misturando teatro, cinema, performance e artes visuais, Christiane Jatahy estilhaça o texto clássico sugerindo novos contextos para os significados espalhados. O espectador mais atento há de identificar relações possíveis entre as duas obras. Estão lá, o aumento da participação dos movimentos políticos e a proximidade crescente do exército de Malcolm do castelo de Macbeth. Mundo contemporâneo e tragédia shakespeariana se encontram, assim, em “A floresta que anda”.

Interpretada por Julia Bernat, Lady Macbeth na visão de Jatahy pode representar parcela cada vez mais isolada da população mais rica que, acuada pela pressão popular, assombra-se com o futuro descortinado ao mesmo tempo que se sente atraída por ele. Esse é o outro ponto de união possível entre os dois contextos estéticos. E também a única relação possível entre “A floresta que anda” e as artes cênicas.

Discrepâncias
A mais sólida estrutura da sociedade seiscentista em que “Macbeth” foi escrito era a monarquia. (Ainda que a história se passassee na Idade Média, o Shakespeare que a narra vive na Idade Moderna.) A questão do poder, com a coroa passando das mãos de Duncan para Macbeth, desse para Malcolm e, talvez no futuro, para os descendentes de Banquo, não era, assim, um assunto do povo. Tampouco era um tema político na acepção do termo que se discute hoje quando se pensa nos movimentos sociais. O personagem Malcolm não se torna rei porque era mais capaz de governar a Escócia que o tirano Macbeth, mas porque era filho do Rei Duncan e não tinha assassinado seu pai. A primavera árabe de 2010 e os protestos de junho de 2013 no Brasil, entre outros acontecimentos, se deram porque o povo não se sentiu mais representado pelos seus governantes.

Escolher a qual documentário assistir e movimentar-se pelo espaço são convites que mudam muito pouco a relação entre público e espetáculo. Conceitualmente, permanece rígida a relação entre quem vê e quem se dá a ver: palco e plateia. Além disso, por mais acessível que o texto de “Macbeth” esteja mesmo do público brasileiro, a história continua sendo dominada apenas por uma elite intelectual. E quem, na plateia de “A floresta que anda”, não a domina há de ficar um tanto absorto com raras possibilidades de adentrar as proposições estéticas mais profundamente. Em outras palavras, se os movimentos sociais são tema nessa obra, sob vários aspectos ela é tão reacionária quanto a sociedade contra a qual eles existem.

A coadjuvância do teatro
A produção dos documentários e os meios como se dão suas exibições, bem como o uso de filmagens do público que assiste à sessão, são da ordem da cinematografia. A colaboração da música e dos efeitos sonoros de Estevão Case, assim como elementos estéticos de outras ordens como um peixe morto ou como alguém vestindo uma peça de figurino, precisa ser analisado sob outros referenciais.

Vale dizer que o teatro em nada se desmerece em sua coadjuvância nessa produção da Cia. Vértice. Tampouco é possível dizer que o plateia tem função menos relevante. Ao contrário, é somente no olhar de quem assiste que essas e outras relações de sentido podem acontecer. Mas o teatro quase não participa.

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FICHA TÉCNICA
"A FLORESTA QUE ANDA", de Christiane Jatahy
Inspirado em Macbeth", de William Shakespeare
com Julia Bernat e performers convidados
Criação, e direção ao vivo Christiane Jatahy
Direção de fotografia, iluminação e câmera ao vivo: Paulo Camacho
Concepção cenário –Christiane Jatahy e Marcelo Lipiani
Direção de arte e cenário – Marcelo Lipiani
Projeto de som e sonoplastia – Estevão Case
Colaboradores artísticos – Isabel Teixeira e Stella Rabello
Figurino – Fause Haten
Consultoria de vídeo – Julio Parente
Assistente de direção e interlocução artística – Fernanda Bond
Assistente de Iluminação – Leandro Barreto
Assistente de palco – Thiago Katona
Operação de vídeo – Felipe Norkus
Mixagem som ao vivo – Francisco Slade
Fotos – Aline Macedo
Projeto Gráfico – Radiográfico
Assessoria de Imprensa – Factoria Comunicação
Gestão e Acompanhamento – Tatiana Garcias
Assistentes de produção: Lina Miguel e Thiago DiDeus
Produção Executiva – Nathalia Atayde
Direção de produção e tour manager – Henrique Mariano
Co-produção: Le CENTQUATRE-PARIS, TEMPO_FESTIVAL, CENA CONTEMPORANEA e SESC
Patrocínio da Cia: Petrobras

Um projeto da Cia Vértice de Teatro

quarta-feira, 18 de novembro de 2015

Nordestinos (RJ)

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Foto: Janderson Pires

Erlene Melo, Alexandre Lino, Rose Germano e Paulo Roque

Motivos para o Brasil se orgulhar

“Nordestinos”, nova produção de Alexandre Lino, tem o mérito de, através de uma temática regionalista, tratar da necessidade do homem de criar e de manter laços. A peça parte de uma coletânea de depoimentos reais de imigrantes da região Nordeste do país que vieram para o Rio de Janeiro e para São Paulo estabelecer nova residência. Com roteiro de Walter Daguerre e direção de Tuca Andrada, o espetáculo traz, no elenco, boas participações da paraibana Rose Germano, do cearense Paulo Roque e dos pernambucanos Erlene Melo e Alexandre Lino. Está em cartaz no Teatro do Sesi até 28 de novembro. Vale a pena ver.

Laços que identificam o homem
A região Nordeste do Brasil é composta por nove estados: Alagoas, Bahia, Ceará, Maranhão, Paraíba, Piauí, Pernambuco, Rio Grande do Norte e Sergipe. Ela se divide em quatro sub-regiões: Meio-norte, Sertão, Agreste e Zona da Mata. De cultura vasta, índices econômicos e de desenvolvimento muito variados, características ambientais, sociais e antropológicas diversas, essa parte do país é como o seu todo: riquíssima! Assim como se constituíram seus limites político-geográficos, é muito difícil determinar traços que sejam comuns na cultura do seu povo.

Sobre o espetáculo em questão, vale dizer antes de tudo que o título “Nordestinos” nomeia não a terra, mas quem nasce nela. Mais especificamente talvez, diz respeito ao conjunto de laços invisíveis por meio do qual moradores do Rio e de São Paulo, que nasceram no Nordeste, se reconheçam entre si. Mas os méritos da montagem vão para além da celebração dos traços regionalistas. Ainda que coberta deles, é possível notar que, lá pelas tantas, a peça os abandona lindamente. E adota, em substituição, outro intento: o de unir aqueles que um dia partiram de seu lugar de origem em busca de novos horizontes.

Com exceção de militares e de aventureiros, até entre os séculos XVI e XVII, as sociedades eram compostas por pessoas que nasciam e morriam no mesmo lugar. O advento das cidades e todas as modificações em torno dessa nova realidade impuseram um desafio: velhos conhecidos passaram a conviver com desconhecidos (cuja história era contada por eles próprios). Mudaram-se as qualidades dos laços afetivos entre pessoas e delas com a terra, alteraram-se os comportamentos e a questão da identidade atingiu patamar de maior importância. Compreender essas questões talvez não seja necessário para fruir “Nordestinos” em sua contribuição mais superficial, mas é sem dúvida importante para sentir o espetáculo mais profundamente.

O texto da peça surgiu de relatos verdadeiros de nordestinos. A coletânea de histórias está publicada pela editora Giostri e, além de inspirar o roteiro de Walter Daguerre para a peça, há de ser ponto de partida para o documentário cinematográfico a ser realizado a partir do espetáculo. Escritos em primeira pessoa, não assinados, os depoimentos falam do Nordeste, mas principalmente de quem fala sobre aquela região. A paisagem, afinal de contas, tem muito do olho de quem a vê. A lembrança mais ainda.

Narrativa cênica evolui graciosamente
Dirigido por Tuca Andrada, o espetáculo conserva essas marcas da dramaturgia na medida em que os personagens não se definem apenas no campo da ficção, mas lançam outras pistas. Alexandre Lino, Erlene Melo, Paulo Roque e Rose Germano, manipulando bonecos, interpretando outras figuras e permitindo pensar que narram suas histórias pessoais, atuam nesse sentido. A narrativa, assim, estabelece códigos, mas não hesita em se desfazer deles e propor novos, criando outras relações, jogos em que intérpretes e público avançam pelo imaginário do texto.

Os trabalhos de interpretação, de uma concepção mais tradicional até uma versão mais rapsódica, apresentam ótimo resultado, defendendo com carisma a proposta do espetáculo. Com poucos elementos, mas uso rico principalmente da iluminação de Renato Machado e qualificado aproveitamento da trilha sonora dirigida por Alexandre Elias, o ritmo corre fluidamente. O figurino e o cenário são de Karlla de Lucca. Neles estão expressos alguns elementos referenciais do que se toma por cultura nordestina.

Castigada pelo sol, pela falta de chuva, pelo abandono da administração pública de um modo geral, a região Nordeste sofre de mazelas históricas que há muito deixaram de ser compreensíveis. Seu povo, porém, dono de algumas narrativas como a que “Nordestinos” oferece, há de encontrar nesse espetáculo motivo para se orgulhar. Qualquer que seja o homem que, um dia, partiu de sua casa se encontra ali. Aplausos!

*

Ficha Técnica
Direção: Tuca Andrada
Dramaturgia: Walter Daguerre
Argumento e Idealização: Alexandre Lino
Elenco: Alexandre Lino, Erlene Melo, Paulo Roque e Rose Germano / Stan-in:
Natália Régia
Direção Musical: Alexandre Elias
Iluminação: Renato Machado
Cenário e Figurinos: Karlla De Luca
Preparação corporal e Movimento: Paula Feitosa
Assistente de Direção e Dramaturgia: Fabrício Branco
Assessoria de Imprensa: Ney Motta
Design Gráfico: Guilherme Lopes Moura
Fotógrafo: Janderson Pires, Foto Janderson Pires
Revisora Textual: Yonara Costa
Assessoria Jurídica: André Siqueira
Produção Executiva: Daniel Porto
Direção de Produção: Alexandre Lino
Realização: Cineteatro Produções

Galápagos (RJ)

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Foto: divulgação

Kadun Garcia e Paulo Giannini


Eis um belo espetáculo!

Um dos espetáculos melhor avaliados de 2014, “Galápagos” fez curta temporada entre outubro e novembro de 2015 no Teatro Gláucio Gill em Copacabana. Com texto de Renata Mizrahi e direção de Isabel Cavalcanti, a peça narra o encontro entre Vander e Carlos, dois homens completamente diferentes interpretados por Kadu Garcia e por Paulo Giannini. Eles se encontram em um bar a bordo de um navio que os leva ao arquipélago equatoriano Galápagos. Com humor delicado e drama leve, a história revela um tipo de solidão em que é gostoso estar junto bem como uma companhia em que se é possível sentir-se só. Uma linda produção que merece mais atenção e temporadas mais longas.

Reflexões da dramaturgia contemporânea
O arquipélago Galápagos, paraíso ecológico a oeste do Equador, é formado por 58 ilhas habitadas por preciosíssima fauna, como as tartarugas gigantes que dão nome ao local. Capazes de viver até 150 anos e podendo chegar a 1,80m de comprimento e 300kg, elas atraem pesquisadores do mundo inteiro. Esse porém não é o caso nem de Vander, nem de Carlos, dois personagens a caminho de lá por motivos diferentes na história original escrita por Renata Mizrahi.

Vander é um funcionário de multinacional, pai de três filhos e insatisfeito com a própria companhia. Carlos é um artista plástico de fama internacional, menos solitário do que realmente gostaria de ser. A voz potente de uma cantora no microfone do bar do navio onde eles viajam atrai essas duas figuras para uma amizade que nasce aos barrancos e talvez não perdure, mas talvez sim.

Autora de inúmeras peças muito elogiadas, Renata Mizrahi desenvolveu a história idealizada pelos atores Paulo Giannini e Kadu Garcia. O modo como as cenas evoluem deixa ver algumas marcas da dramaturgia contemporânea. A narrativa evolui mais verticalmente na estrutura de cada quadro do que se espalha pelo todo da ficção fabular. Os diálogos têm menos marcas que os unem e mais expulsões que os separam. Só o que se sabe dos personagens é aquilo que eles revelam de si próprios de maneira que talvez ambos continuem sendo desconhecidos um para o outro. Não há qualquer coisa que os una, nenhum conflito, nenhum interesse, qualquer acordo a não ser o prazer que ambos sentem em ouvir a cantora cantar. Todos esses aspectos formais do texto são claramente sinais de conteúdo. Ao mesmo tempo em que enchem o espectador de dúvidas, eles conferem ao público a responsabilidade de investigar-se em busca de respostas existenciais. Trata-se de alta dramaturgia aqui.

Palco espelho para o público na encenação dirigida por Isabel Cavalcanti
A direção de Isabel Cavalcanti resolve com habilidade alguns desafios do texto na encenação. Uma vez que todos os encontros dos personagens Vander (Kadu Garcia) e Carlos (Paulo Giannini) acontecem em um show, ambos ficam boa parte das cenas completamente virados para o público. É bonito reparar o quanto, evitando a troca de olhares, eles fazem da falta de triangulação uma marca do olhar por sobre si. É como se eles estivessem buscando no outro uma resposta para si mesmos além do fato da plateia ter a oportunidade de vê-los talvez como os veria a cantora por eles admirada. Essa possibilidade traz nova reflexão.

Seria normal que estivesse o público sob a luz dos refletores e os personagens sob a escuridão uma vez que é da plateia que sai a voz - Simone Mazzer – capaz de atrair esses dois personagens da superfície às profundezas do navio. Em “Galápagos”, porém, a plateia (nós) observa a plateia (Vander e Carlos) de maneira que, nesse espetáculo, o palco vira espelho íntegro, questionador, potente.

Ótimos trabalhos de interpretação de Paulo Giannini e de Kadu Garcia
As ótimas interpretações de Paulo Giannini e de Kadu Garcia garantem também outros elogios a “Galápagos”. O espetáculo acontece em excelente ritmo, com articulações precisas dos quadros e disposto a potencializar as diferentes nuances que revelam sutil curva dramática ascendente. Em outras palavras, é fácil torcer para que a amizade entre Vander e Carlos perdure, traço que aponta para o brilhantismo da defesa tanto das figuras como da relação que nasce entre eles por parte de seus intérpretes e da direção.

Com destaque para a trilha sonora de Felipe Storino, a peça tem bons figurinos de Bruno Perlatto, cenário de Aurora dos Campos e iluminação de Renato Machado. A sutil mas essencial colaboração desses últimos elementos define positivamente a potencialidade de cada pequena participação. O repertório ouvido em cena, que é interpretado por Simone Mazzer, integra-se à dramaturgia como se ambos fossem um só (e talvez sejam).

Eis um belo espetáculo!

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FICHA TÉCNICA
Direção: Isabel Cavalcanti
Texto: Renata Mizrahi
Elenco: Paulo Giannini e Kadu Garcia
Cenografia: Aurora dos Campos
Iluminação: Renato Machado
Figurino: Bruno Perlatto
Trilha Original: Felipe Storino
Design Gráfico: Roberta de Freitas
Fotografia: Dalton Valério e Débora Setenta
Assistente de direção: Renata Mizrahi
Assistente de Cenografia: Ana Machado
Consultoria de movimento para o personagem Carlos: Moira Braga
Produção Executiva: Thamires Trianon
Direção de Produção: Paulo Giannini e Kadu Garcia
Realização: Saravá Cacilda Projetos Culturais

terça-feira, 10 de novembro de 2015

O Beijo no Asfalto – O musical (RJ)

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Foto: divulgação

Thelmo Fernandes, Ricardo Souzedo, Claudio Lins, Jorge Maya e Claudio Tovar

Excelente nova versão do clássico de Nelson Rodrigues

“O Beijo no Asfalto – O musical” é uma das mais gratas surpresas de 2015 no teatro carioca. Dirigido com habilidade e inteligência por João Fonseca e com belas canções originais de Claudio Lins e outras atualizadas na direção musical de Délia Fischer, a peça dá novo ar ao clássico texto escrito por Nelson Rodrigues há 55 anos. Com um elenco inteiramente constituído por excelentes participações, o drama rodrigueano está todo lá em sua plenitude, mas se destaca o modo como essa nova abordagem o recontextualiza. Além do próprio Lins, Laila Garin, Gracindo Jr., Yasmin Gomlesvky, Claudio Tovar, Janaína Azevedo e Jorge Maya estão no elenco em atuações bastante elogiáveis dentre outras participações. Os figurinos de Tovar são outros ótimos destaques. O espetáculo, cuja primeira temporada no Teatro Sesc Ginástico terminou nesse domingo, reestreará no Teatro das Artes, no Shopping da Gávea, na próxima quinta-feira, dia 12 de novembro. Vale a pena ver!

Um clássico da dramaturgia brasileira volta em nova abordagem
“O beijo no asfalto” foi escrito por Nelson Rodrigues (1912-1980), em 1960, sob encomenda do Teatro dos Sete. O grupo, formado em 1959, tinha como integrantes o diretor Gianni Ratto e os atores Fernanda Montenegro, Fernando Torres, Sérgio Britto e Ítalo Rossi (além de Luciana Petrucelli e de Alfredo Souto de Almeida). O quinto espetáculo do grupo estreou em 7 de julho de 1961, menos de dois meses antes da renúncia do Presidente Jânio Quadros. Foi a 13ª peça de Nelson Rodrigues, vinda logo após “Boca de ouro”.

Dirigida por Fernando Torres, a primeira montagem tinha, no elenco, Oswaldo Loureiro e Francisco Cuoco (Arandir), Fernanda Montenegro (Selminha), Sérgio Britto (Amado Ribeiro), Ítalo Rossi (Delegado Cunha), Mário Lago e Labanca (Aprígio), Suely Franco e Maria Esmeralda (Dália), Renato Consorte e Claudio Corrêa e Castro (Aruba), Zilka Salaberry (Dona Matilde), entre outros. A peça estreou no Teatro Ginástico e depois foi para o Teatro Maison de France, cumprindo no total sete meses de temporadas no Rio de Janeiro. Nelson Rodrigues ganhou o Prêmio Artur Azevedo, da Academia Brasileira de Letras, de Melhor Autor Nacional do ano de 1961.

A peça teve ainda duas versões cinematográficas, a primeira, “O beijo”, em 1964, foi dirigida por Flávio Tambellini e e teve Reginaldo Faria e Jorge Dória nos papéis de Arandir e de Mário Ribeiro (Amado). Bruno Barreto dirigiu, em 1980, outra versão bem mais próxima do texto original, embora adaptada para os anos 70. Ney Latorraca, Tarcísio Meira, Christiane Torloni e Daniel Filho interpretaram Arandir, Aprígio, Selminha e Amado Ribeiro. Em breve, está para estrear, com a direção de Murilo Benício, o filme “O beijo, o processo” em que um grupo de atores ensaiam a peça de Nelson Rodrigues.

Uma pérola da dramaturgia brasileira e universal
O texto de “O beijo no asfalto” é uma tragicomédia. Isto é, foi escrito originalmente em um estilo através do qual tanto o que há de melhor como o de pior no ser humano se valem da tragédia e da comédia para serem expressos. São treze cenas, divididas em três atos em que o autor inaugura as falas cortadas e marcadas por um ponto final. (Exemplo: “Eu quero te dizer que.") Em termos de sua estrutura narrativa, a obra é muito próxima de “O idiota”, do russo Fiódor Dostoiévski. Nesse romance do realismo psicológico, há um ser cuja perfeição é tão absoluta que é capaz de refletir (ou de aumentar) toda a podridão daqueles que o cercam.

Arandir está casado com Selminha há um ano e, segundo ela, ele é um ótimo amante. Quando a peça começa, ele está indo ao banco para penhorar uma joia a fim de obter dinheiro para manter a esposa fisicamente em forma. No caminho, um acidente com um ônibus mata um transeunte que, nos segundos derradeiros, pede a Arandir um beijo na boca, o que ele concede. O fato é testemunhado pelas pessoas ao redor, entre elas, Aprígio, sogro de Arandir; e Amado Ribeiro, que escreve para um jornal sensacionalista. Dias antes, Ribeiro havia espinafrado Delegado Cunha, em sua coluna no jornal, dizendo que ele havia agredido uma mulher grávida, levando-a ao aborto. O caso d”O beijo no asfalto” interessa a Amado e Cunha porque pode atribuir a eles a marca de defensores da moral e dos bons costumes. Onde já se viu, afinal de contas, um homem beijar outro, na rua, durante o dia, na frente de pessoas de bem? (sic)

Ao longo da peça, o texto revela várias questões pertinentes à reflexão do comportamento social. As relações familiares (incesto), profissionais (fofoca entre colegas, conchavos) e políticas (a imprensa e o poder público) são iscas para se tratar da fragilidade humana. Discutida a partir das reflexões dos filósofos da Escola de Frankfurt e de seus pares, a capacidade da imprensa de criar um fato e não apenas divulgá-lo é outro assunto discutido em “O beijo no asfalto”. Eis uma pérola da dramaturgia brasileira e universal que ganha excelente lugar na sociedade hoje por tratar, principalmente, da questão do preconceito em relação à orientação sexual.

Atuações ímpares
Claudio Lins e João Fonseca, através das canções inseridas na narrativa original, reforçam as tintas do melodrama que tão bem valoriza o desenrolar da trama. Os números musicais, quase todos solilóquios cantados pelos personagens, ficam com o encargo do elemento tragicômico. O público, que assiste a um só tempo peça e música, se envolve fluidamente com as cenas, mergulhando no pesadelo rodrigueano em cujo fundo poderá se encontrar com Arandir (e resgatá-lo de lá). Aos poucos, o ritmo mais lento que o do original vai envolvendo tal qual a versão primeira, provando que não há jeito certo nem errado de fazer teatro, mas meios mais e menos qualificados de se adaptar um texto. Lins e Fonseca, com enorme coragem, ousam participar com Nelson Rodrigues da autoria da peça, mas se saem muito bem. Quem ganha é o público!

Laila Garin

Todos os trabalhos de interpretação são bastante bons, mas é possível identificar alguns destaques. Os mais visíveis se referem às participações de Claudio Tovar e de Janaína Azevedo, interpretando o Delegado Cunha e a vizinha Dona Matilde. É fácil perceber o quanto esses dois excelentes atores alçam seus personagens pequenos a lugares definitivos através da sutileza de cada expressão, do ótimo aproveitamento de cada respiro, da mais sutil nuança. Thelmo Fernandes (Amado Ribeiro), que repete o mesmo papel já visto em “A arte da comédia” e em “S’imbora”, está em lugar bastante confortável. Yasmin Gomlevsky igualmente repete seu papel em “Anti-Nelson Rodrigues”. Jorge Maya (Aruba), Pablo Áscoli (O Morto), Juliane Bodini (A Viúva), Gabriel Stauffer (Werneck), Ricardo Souzedo (Barros e Pimentel) e Juliana Marins (Dona Judith) fazem boas participações dentro dos limites possíveis positivamente. São vibrantes as atuações de Laila Garin (Selminha), Gracindo Jr. (Aprígio) e de Claudio Lins (Arandir). Partes da estrutura mais fundamental da peça, por onde bailam os demais personagens e a própria história, suas interpretações mantêm a tensão latente, o drama preservado e a crítica mais inteligente. Com talento, habilidade, carisma e enorme beleza, esses trabalhos são ímpares!

As lindas vozes de Janaína Azevedo e de Laila Garin
O cenário de Nello Marrese é uma variação do que já foi visto em “Doroteia” (ao invés de transparências, aqui há telas de alumínio onde folhas de jornais são penduradas) com cadeiras Gruvyer pretas . O único momento relevante dessa opção é quando as placas vão para o centro do palco, apertando o espaço cênico. Em contrapartida, o figurino de Claudio Tovar é excelente. Ricamente explorado e expresso em detalhes bem afinados, ele finca o espetáculo no gênero musical. A iluminação de Luis Paulo Nenén, atuando sem a ajuda do cenário, colabora com a evolução da narrativa. As canções de Claudio Lins e a direção de Delia Fischer tem excelentes momentos em “Não foi o primeiro beijo”, “Faz tempo...”, “Ainda aqui/Quem sabe de si”, “Toda noite” e em “A noite do meu bem”. As belíssimas vozes, principalmente de Janaína Azevedo e de Laila Garin ecoam plateia afora para além do fim do espetáculo lindamente.

“O Beijo no Asfalto – O musical” mantém todos os valores do texto de Nelson Rodrigues e acrescenta outro mais. É um dos melhores espetáculos de 2015. Aplausos!

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Ficha técnica:
Direção Geral : JOÃO FONSECA
Trilha Original : CLAUDIO LINS
Direção Musical : DÉLIA FISCHER
Figurinos : CLAUDIO TOVAR
Cenário : NELLO MARRESE
Iluminação : LUIS PAULO NENÉN
Direção de Movimento: SUELI GUERRA

ELENCO:
Arandir – CLAUDIO LINS
Selminha – LAILA GARIN
Dália – YASMIN GOMLEVSKY
Amado Ribeiro – THELMO FERNANDES
Cunha – CLAUDIO TOVAR
Aruba – JORGE MAYA
D. Mathilde – JANAÏNA AZEVEDO
Werneck – GABRIEL STAUFFER
Morto – PABLO ÁSCOLI
Pimentel – RICARDO SOUZEDO
Viúva – JULIANE BODINI
D. Judith – JULIANA MARINS
Ator convidado : GRACINDO JR. como Aprígio

Engenheiro de Som: CARLOS ESTEVES
Assistente de direção: LUCAS MASSANO
Assistente de Figurino: THIAGO DETOFOL
Assistente de Cenografia: LORENA LIMA
Programações Eletrônicas e Orquestrações : HEBERTH SOUZA
Pianista Regente e Assistente Direção Musical : EVELYNE GARCIA
Arranjos Vocais: AUGUSTO ORDINE
Preparação Vocal: JANAÍNA AZEVEDO
Assessoria de Imprensa : HORÁCIO BRANDÃO e ALEX DAYRELL – Midiorama Marketing/ apoios: GHEU TIBÉRIO
Produção Executiva : ANA BEATRIZ FIGUERAS
Produtora assistente: TAIANA STORQUE
Direção de Produção : ISABEL THEMUDO
IDEALIZAÇÃO : CLAUDIO LINS 

domingo, 8 de novembro de 2015

SamBRA (RJ)

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Foto: divulgação

No centro, Gustavo Gasparani


Não deixe o SamBRA morrer!

“SamBRA, o musical – 100 anos de samba” deixa claro que Gustavo Gasparani não é apenas um grande ator, dramaturgo, diretor e um bailarino excelente. Ele também é um dos artistas mais importantes do teatro brasileiro contemporâneo. O espetáculo, que, desde 15 de outubro, está em temporada popular no Teatro João Caetano, na Praça Tiradentes, eleva a qualidade do espetáculo nacional sobre a música popular do nosso país. Ao longo de duas horas e meia, uma grande festa celebra o centenário do ritmo carioca que dominou o Brasil e se espalhou pelo mundo. Dentre os dezessete atores, todos eles em excelentes trabalhos, destacam-se as lindas vozes de Beatriz Rabello, Lilian Valeska e de Wladimir Pinheiro, o enorme carisma de Édio Nunes e de Patrícia Costa, mas principalmente as vigorosas atuações de Bruno Quixotte e do próprio Gasparani. Com um mínimo de parafernália cênica e com máxima exploração estética de tudo o que há no palco, eis aqui um espetáculo no melhor sentido do termo. Produzido pela Aventura Entretenimento e pela Musickeria, aqui mais um motivo para 2015 se orgulhar como o ano em que mais e melhores musicais foram produzidos no Rio de Janeiro.

Os enormes méritos da dramaturgia de Gustavo Gasparani
Quando se cobra excelência no padrão estético dos espetáculos, fala-se menos em visual e muito mais no modo como tudo pode ser capaz de viabilizar beleza que atenda às expectativas. A começar pelo roteiro, “SamBRA”, escrito por Gustavo Gasparani, parte de um lugar simples, mas oferece enorme potencialidade. A história começa com o registro da canção “Pelo Telefone”, um samba de Ernesto dos Santos (1890-1974), mais conhecido por Donga, na Biblioteca Nacional em 27 de novembro de 1916. A música havia sido composta em uma das festas na casa de Tia Ciata (Hilária Batista de Almeida, 1854-1924), conhecida mãe de santo, onde os batuques eram acorridos por gente de todas as origens. Nesse momento da história, a Praça Onze, no Rio de Janeiro, era lugar de convivência entre ex-escravos e judeus, inválidos da Guerra do Paraguai e gente pobre de diversos tipos. De forma bem humorada, o texto de Gasparani contextualiza o modo como várias pessoas reclamaram a autoria de “Pelo Telefone” como também a composição verdadeira do primeiro samba da história.

Pela dramaturgia, desfilam personagens célebres relacionados ao ritmo, mas também a própria história do país. O melhor, porém, para longe da monótona estrutura do musical biográfico tantas vezes repetida, é o jogo que o texto estabelece com o público em pequenos detalhes. Gasparani ao lado de Ana Velloso, Wladimir Pinheiro e de Édio Nunes, entre outros, há muito têm apresentado sólida pesquisa sobre o Teatro de Revista no Brasil. As contribuições desse gênero espetacular para o teatro brasileiro, mas principalmente para o modo como nosso povo frui as narrativas cênicas são definitivas. Elas dão conta de explicar a preferência nacional por um tipo de ironia que critica e excita, agride e se diverte, fere e desliza tanto pelo campo superficial como pelo mais complexo. Quando, por exemplo, o texto chama Getúlio Vargas (Édio Nunes) e dá a ele um “pau de selfie” para fazer um autorretrato, está falando do ditador que fez voltar a censura nos anos 30, mas também trazendo para hoje o comportamento popularesco do Pai dos Pobres, aquele que foi o mais amado dentre os presidentes brasileiros.

Em se tratando de um texto que parte de fontes históricas e de personagens que realmente viveram, outro mérito da dramaturgia de “SamBRA” é o modo como a peça usa as referências. Figuras reais como Tia Ciata (Lilian Valeska), Ismael Silva (1905-1978) (Édio Nunes) e José Barbosa da Silva (1888-1930), mais conhecido como Sinhô (Wladimir Pinheiro), aparecem, mas sem pesar a narrativa com um excesso de informações sobre si mesmos. A peça, afinal de contas, não é sobre eles, mas sobre o samba. E, além disso, a graça de suas aparições é o que basta para o público se afeiçoar a eles e ao espetáculo do qual fazem parte. Há, ainda, personagens, como o Moleque Samba (Bruno Quixotte) ou como o Malandro (Édio Nunes), que não existiram em uma só pessoa, mas são figuras representativas de uma identidade que todos conhecem. Essa união de sabores, sobretudo porque bem disposta, é grande responsável pelos méritos do todo.

Por fim, há ainda outro ponto bastante destacável no texto de “SamBRA”: a maneira como o espetáculo viabiliza não apenas seu encontro com o público, mas aquele que se dá entre a plateia e os atores. Lá pelas tantas, Ana Velloso (Baiana) e Patrícia Costa (Rainha da Bateria da Portela), essa última no melhor momento de sua carreira, protagonizam dois pontos altos da produção. Falando em primeira pessoa, contam sua própria história, destacando o que as relaciona mais particularmente com o enredo. De forma tocante, o teatro aí se volta para sua origem – um encontro único que acontece entre seres humanos.

A vibrante encenação também de Gustavo Gasparani
Em ordem de sua encenação, “SamBRA, o musical – 100 anos de samba” flui articuladamente pelo tempo de maneira bastante positiva. O cenário de Helio Eichbauer, a luz de Paulo Cesar de Medeiros e o videografismo de Thiago Stauffer deslizam pelo palco assim como evoluem os arranjos de Nando Duarte em sua brilhante direção musical. Nesses elementos, marcas de verossimilhança, mas também de originalidade convivem e se alternam com extrema beleza. O figurino assinado por Marília Carneiro e por Reinaldo Elias atua no mesmo sentido, retratando de maneira mais modesta as épocas com algum momento mais relevante.

São, no entanto, no movimento e nas coreografias de Renato Vieira e principalmente nas interpretações do elenco que “SamBRA” atinge seus maiores valores. Maurício Detoni faz duas ótimas participações, como João Gilberto (“Chega de Saudade”) e como Noel Rosa, esse último ao lado de Alan Rocha, como Martinho da Vila. Há ainda os ótimos Wladimir Pinheiro como Sinhô (“Jura”), Ana Velloso como Carmen Miranda e como Beth Carvalho e Beatriz Rabello como Pastora e como Aracy Cortes. Com destaque, Bruno Quixotte e Patricia Costa interpretam “Boneca de Piche” e Gustavo Gasparani protagoniza os belíssimos quadros “Aquarela do Brasil” e “Roda Viva”. Em todos eles, e principalmente no todo, impera excelente nível estético que, em ótimo ritmo, leva o espetáculo para adiante e deixa gosto de “quero mais”.

Em cartaz agora até 6 de dezembro no Teatro João Caetano, “SamBRA, o musical – 100 anos de samba” estreou no último verão com Diogo Nogueira no papel principal. Gustavo Gasparani, que escreveu e dirigiu essa peça, e que agora a protagoniza, é o mesmo autor do célebre “Samba Futebol Clube”, um dos espetáculos mais elogiados de 2014. Ainda que Laila Garin tenha tido especialíssimo destaque em “Elis – A musical”, esse aqui é sem dúvida o melhor espetáculo produzido pela Aventura Entretenimento desde 2012. Valeapeníssima ver!! Parabéns e vida longa!!

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Ficha técnica:

(a ficha técnica completa não foi divulgada no release)

Elenco
Gustavo Gasparani, Ana Velloso, Beatriz Rabello, Lilian Valeska, Patricia Costa, Alan Rocha, Bruno Quixotte, Édio Nunes, Wladimir Pinheiro, Cátia Cabral, Patrícia Ferrer, Shirlene Paixão, Simone Debett, Charles Fernandes, Pablo Dutra e Paulo Mazzoni

Músicos
Nando Duarte (Regente/Violonista), Alexandre Caldi(Sax/Flauta), André Vercelino (Percussão), Zé Luiz Maia (Baixo), Fabiano Segalote (Trombone), Gustavo Salgado (Piano), João Callado (Cavaco), José Arimatea (Trompete), Nailson Simões (Bateria e Percussão) e Rodrigo Jesus (Percussão)