terça-feira, 28 de outubro de 2014

Pop - 15 minutos de fama (RJ)


Foto: Breno Sanches 
Roberto Rodrigues, Hugo Souza e Matheus Rebelo



A comédia burlesca está viva!

“Pop – 15 minutos de fama”, em cartaz no Buraco da Lacraia, na Lapa, é uma ótima comédia burlesca como raramente se tem visto. Em cena, Matheus Rebelo, Hugo Souza e Roberto Rodrigues criam histórias rápidas, cujas origens não se sabe se são sobre suas vidas particulares, sobre a história do Grupo Milongas ou se totalmente ficcionais. Assim como as narrativas, o desenvolvimento do tema da fama na dramaturgia, o investimento na cultura pop na estética e a participação especial do contorcionista Bruno Carneiro têm igual peso, revelando um espetáculo tão fluído quanto o astral da casa onde ele se apresenta. Concebido e dirigido por Breno Sanches, é divertidíssimo.

O espetáculo burlesco, também conhecido como “show de variedades”, remonta à constituição do teatro como festa popular, isto é, acontecida fora do ambiente litúrgico ou palaciano. Ao invés de uma narrativa sólida, as produções nascem a partir da justaposição do que de mais interessante há para ser visto, aplaudido e vendável. A abertura das casas de teatro nos séculos XV e XVI e a ascensão da burguesia frequentadora de cabarés na Europa e na América no século XIX fizeram com que o gênero atingisse o seu auge. Nos últimos anos, a facilidade do acesso às outras modalidades de espetáculo e a popularização de narrativas mais regulares atribuíram ao burlesco uma imagem equivocadamente negativa. “Pop – 15 minutos de fama” se aproveita disso e mostra que a comédia burlesca é boa e está viva.

Paródias de clipes musicais, de novelas e de programas de auditório, além de referências à cultura pop: a dramaturgia, que teve colaboração de Camilo Pellegrini e de Felipe Barenco, é leve, mas não menos crítica, ácida ou politizada. As situações cômicas desfilam por temas como alienação política e cultural e como preconceito religioso e de orientação sexual com muito humor. Michael Jackson, Beatles, Menudo, Dominó, passando por Sandy e Júnior, Caetano Veloso, por One Direction, e por entre outros, fazem parte da trilha, cujo número de “Single Ladies”, da diva do pop Beyoncé, é um dos destaques do programa. As coreografias assinadas por Paulo Cristo pontuam um ritmo ascendente na evolução da peça. O contorcionista Bruno Carneiro, atribuindo ao show o preciosismo da habilidade técnica, marca outro dos melhores momentos.

Matheus Rebelo, Hugo Souza e principalmente Roberto Rodrigues dominam as cenas, prendem a atenção e divertem. O contato com a plateia é direto sem ser invasivo de forma que a adesão do público surge como uma resposta natural ao carisma do elenco. O resultado é bastante positivo.


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FICHA TÉCNICA
 Atores: Hugo Souza, Matheus Rebelo e Roberto Rodrigues
Direção e Concepção de Dramaturgia: Breno Sanches
Coreografias: Paulo Cristo
Trilha Sonora: Adipe Neto
Colaboração de Dramaturgia: Camilo Pellegrini e Felipe Barenco
Participação especial em off: Mabel Cezar, Luiza Cesar e Ronaldo Julio
Cenário, Adereços e Designer Gráfico: Tuca
Figurinos: Camila Nhary
Caracterização: Isabel Chavarri
Costureira: Jane Travassos
Assessoria de Imprensa: Lyvia Rodrigues (aquelaquedivulga.com.br)
Produção: Pagu Produções
Realização: Grupo Milongas

Uma carta perdida (RJ)


Foto: divulgação
Elenco em cena

Comédia ideal sobre a política atual

“Uma carta perdida” é um espetáculo que se torna ainda mais interessante do que já é pelo contexto em que sua produção aparece: as eleições de 2014. Peça escrita em 1884 pelo romeno Ion Luca Caragiale (1852-1912), uma edição do texto constava na herança deixada ao Tablado pelo professor Bernardo Jablonski (1952-2011). Com nove atores no elenco, o espetáculo surgiu como resultado de uma meritosa campanha de doações organizada através do site Catarse. Em cena, o resultado só não é melhor porque a direção de Daniel Belmonte não imprime ainda no trabalho uma certa dose vital de delicadeza que faria da ironia mais um bom motivo para a comédia. Vale a pena conferir a produção!

Ambientalizada em 1883, em uma pequena cidade da Romênia, no leste europeu, a história se passa nos momentos em redor de uma eleição para deputado. O prefeito Estevão Tipatesco (Adriano Martins) é o candidato favorito, mas vê sua candidatura ameaçada por causa do sumiço de uma carta de amor escrita por ele ao presidente do Comitê Permanente Zoé Thahanache (André Pellegrino). Para seu desfavor, a carta perdida agora está em posse de Nae Catzavenco (André Dale), proprietário do jornal de oposição. O único jeito de abafar o escândalo é, ao invés de se candidatar, apoiar a candidatura do inimigo. No entanto, chega da capital, o escolhido pelo partido: Agamemnon Dandanache (Alexandre Duvivier), aumentando os apuros do prefeito. Em uma trama cheia de reviravoltas, esse vaudeville retrata com muito bom humor uma visão sombria de uma sociedade falida pela corrupção.

A adaptação de Adriano Martins e do diretor acrescenta o elemento da homossexualidade, invertendo os personagens. No original, o prefeito Tipatesco escreveu a carta para a senhora Zoé Trahanache (que, nessa montagem, é o marido), a esposa de Zaharia Trahanache (aqui chamada de Nadja Trahanache). A mudança também valorizou o papel da mulher, dando à personagem Nadja (Bruna Brignol) uma importância que a esposa não tinha. É ela quem coordena a sessão legislativa em uma das cenas finais. Igualmente positiva é a permanência, nessa versão, da briga de forças do texto original entre os liberais e os independentes, bem como suas querelas internas sobre quem o partido vai apoiar e sobre uma suposta traição, desprezando os cidadãos mais pobres, esses personificados nas figuras do policial Pristanda (Pedro Tomé) e do Eleitor (Rodrigo de Arruda). É essa justamente a ponte principal que relaciona esse texto romeno do século XIX com os dias atuais.

A direção de Daniel Belmonte não é tão boa infelizmente. Sem exceção, todos os personagens aparecem com expressões muito exageradas, em movimentos bruscos e a partir de uma sucessão constante de gritos que não cabem no palco em tamanho reduzido do Teatro Café Pequeno. Falta delicadeza, leveza e sensibilidade, essas que construiriam a ironia capaz de evidenciar a ardilosidade da trama de maneira que o tom farsesco ganhasse novos níveis.

Quanto às interpretações, no que diz respeito ao mérito individual de cada construção de personagem, é possível destacar Pedro Tomé (o guarda Pristanda) como aquele que tem o melhor resultado no grupo. O tom escorregadio de sua construção ensaia um malandro tragicamente sem vez na disputa política elevada. Nas demais atuações, é visível que as marcas são maiores que as intenções de forma que os atores antecipam as ações aos motivos que as gerariam.

A direção de arte de Colmar Diniz pontua a concepção farsesca do diretor sobre o tema. O prefeito usa uma casaca do mesmo tecido de que é coberta a parede de seu gabinete. As maquiagens são carregadas, há um expressivo conjunto de informações em cada parte do cenário de Julia Marina e também do figurino de Anouk Van Der Zee, de Raquel Dimantas e de Marianna Pastori. Esse realismo visual é adequadamente bom ponto de partida para o vaudeville. A produção tem ainda ótimas participações da iluminação de Felipe Lourenço e da trilha sonora de Rodrigo Miravalles.

“Uma carta perdida” inicia nova temporada ainda no Teatro Café Pequeno, talvez um espaço pequeno demais para a força dos seus encenadores, claramente interessados em mostrar o seu melhor. O sucesso que a peça tem tido é, sem dúvida, uma resposta do público ao seu empenho, mas também à graça que tem o texto mais famoso de Ion Luca Caragiale. A ver!


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FICHA TÉCNICA
Texto: Ion Luca Caragiale
Adaptação: Adriano Martins e Daniel Belmonte
Direção: Daniel BelmonteIluminação: Felipe Lourenço
Figurino: Anouk van der Zee, Raquel Dimantas e Marianna Pastori
Iluminação: Felipe Lourenço
Pesquisa musical: Rodrigo Miravalles
Cenografia: Julia Marina
Visagismo: Marianna Pastori
Diretor de arte: Colmar Diniz
Chapeleira: Lund Chapéus
Produção: Marina Henriques e Ivan LP
Ass. de produção: Isadora Krummenauer
Design gráfico: Victoria Scholte
Apoio Audiovisual: HM Multimídia

Elenco:
Prefeito Estevão Tipatesco- Adriano Martins
Policial Pristanda- Pedro Tomé
Nadja Trahanake- Bruna Brignol
Zoe Trahanake- André Pellegrino
Farfuridi- João Sant`Anna
Branzovenesco - Daniel Zumbrinsky
Cidadão Embriagado - Rodrigo Arruda
Nae Catzavenco - André Dale
Agamitza Dandanake - Alexandre Mello

Entredentes (RJ)


Ney Latorraca, Maria de Lima e Edi Botelho em cena
Foto: divulgação

Frustrante

“Entredentes” é constrangedoramente ruim, porque nem define qual é a relação com o público, nem se utiliza da indefinição para discutir um conceito de arte que possa promover uma reflexão social. Escrito e dirigido por Gerald Thomas, o único bom motivo para assistir ao espetáculo é a oportunidade de rever Ney Latorraca em cena. A peça está em cartaz no Teatro Sesc Ginástico no centro do Rio de Janeiro.

Na primeira cena, dois astronautas se encontram em algum lugar fora da Terra. Em seguida, eles aparecem, segundo o release, no Muro das Lamentações em Jerusalém. Os personagens Didi (Edi Botelho) é muçulmano e Ney (Ney Latorraca, para quem a peça foi escrita) é um judeu com ares de mediunidade umbandista (vulgo “macumbeiro”). A piada, no entanto, para nessa situação pseudo-dramatúrgica, pouco avançando nas performances dos intérpretes e na cenografia, em que se vislumbra a possibilidade de uma imensa vagina pichada no Muro. Ao longo de noventa minutos, talvez o único momento relevante seja uma crítica direta, franca e explosiva ao Brasil, que se torna engraçada porque é feita com o sotaque português de Maria (a atriz portuguesa Maria de Lima), um terceiro personagem sem contornos minimamente definidos.

O teatro pós-dramático infelizmente não pode ser requisitado como base de análise para “Entredentes”. Nas produções concebidas sob esse conceito, os diversos signos justapostos em cena têm relações sugeridas e sua estruturação revela uma reflexão: o espectador há que ser ativo por sobre a peça da qual participa. Em “Entredentes”, a crítica de um estado social da guerra (religiosa, política ou moral) perde força diante da piada comercial, que, por sua vez, se mostra gratuita e sem identificação. As imagens são esteticamente pobres de forma que a falta de um investimento nesse sentido também deixa de contribuir para o referencial artístico do pós-dramático (ver a teoria de Hans-Thiesen Lehmann). O fato de não haver limites claros entre os personagens e os atores que os interpretam não é suficiente para estabelecer uma relação de investigação artística entre os realizadores e o público.

A proposta anunciada de querer dizer muito serve aqui apenas para não dizer algo realmente sólido infelizmente. Apesar do nobre currículo dos autores de “Entredentes”, a opção não vale a pena. Frustrante.

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Ficha Técnica:
Autor e Diretor: Gerald Thomas
Elenco: Ney Latorraca, Edi Botelho e Maria de Lima
Iluminação: Gerald Thomas
Designer de Luz: Wagner Pinto
Cenografia: Lu Bueno e Gerald Thomas
Figurino e Programação Visual: Lu Bueno
Direção de Movimento: Daniella Visco
Trilha Sonora: Gerald Thomas (“Chão de Estrelas” de Orestes Barbosa e Silvio Caldas, sobre música de Philip Glass.)
Assistente de Direção/Diretor de Cena: Gabriel Barone
Designer de Som: Tocko Michelazzo
Técnico Operador de Som: Antonio Neto
Técnico Operador de Luz: Wagner Pinto
Assistente de Iluminação: Tulio Pezzoni
Montagem da Luz: Equipe Armazém da Luz - SP
Microfonista: Adriana Lima
Contrarregra: Wanderley D. Lascko e Robson Patrício
Camareira: Cacinha Tiengo
Cenotécnico: Gereba e equipe
Fotógrafo: Guga Melgar
Design Gráfico RJ: Espaço Donas Marcianas
Ilustração: Gerald Thomas
Assistentes de Produção: Claudio Calixto e Maria Inês Vale
Assessoria de Imprensa: Ney Motta
Direção de Produção: Willian Taranto
Produção: Taranto Produções

terça-feira, 21 de outubro de 2014

Cabaré Foguete (RJ)

Foto: divulgação
Elenco e músicos em cena no palco da Sede das Companhias


Divertidíssimo!

“Cabaré Foguete” é o espetáculo dirigido por Ivan Sugahara e por Gustavo Damasceno em cartaz no teatro da Sede das Companhias, na escadaria do Selarón, na Lapa. O texto desenvolve a história de Ana Foguetinho, personagem que já apareceu nas produções “Sarau das Putas”, dirigida por Sugahara, e “Baseado na Rua de Trás”, com texto de Mateus Tiburi e dirigida por Damasceno. Recheada de números musicais e de mágica, coreografias eróticas e de cenas de humor burlesco, a peça é uma divertidíssima opção na programação do teatro carioca. O elenco é composto por Nara Parolini, Rita Fischer, Catarina Saibro, Joel Vieira e por Thiago Ristow. Em cena, a banda “Héteras”, cujos integrantes são Antônio Ziviani, Breno Góes, Felipe Ridolfi e Pedro Leal David, anima o espetáculo com suas participações ao vivo.

O clima é de festa. Ao longo da apresentação, o público pode pedir bebidas e sair para ir ao banheiro. Organizada em quadros, “Cabaré Foguete” narra a história de Ana Foguetinho, uma prostituta famosa, mas é, antes de tudo, um manifesto em favor do sexo. Dissertando sobre o prazer sexual desde a infância até a realização dos atos sexuais propriamente ditos na idade adulta, a proposta relaciona ao gozo diversas outras sensações: a ilusão das mágicas, a realização de fetiches, o uso de drogas, a saciedade, a alegria, a atividade física. Além disso, no texto, há um posicionamento frente ao fim do preconceito com a diversificada orientação de gênero e com as atividades profissionais sexuais, havendo a valorização do sexo como um exercício vital e plenamente natural.

Nara Parolini, elogiada em “Sarau das Putas” e em “Baseado na Rua de Trás”, volta a interpretar Ana Foguetinho. Na primeira cena, a personagem conta sua história aos pais de seu futuro marido: a infância no interior do Paraná, a chegada ao Rio e a decisão de entrar para a prostituição, profissão essa que lhe deu fama internacional. Rita Fischer, Catarina Saibro, Joel Vieira e Thiago Ristow interpretam os demais personagens sempre em excelente tom de comédia: a apresentadora de programa de televisão (Fischer), o marido de Foguetinho (Ristow), o mestre de cerimônias (Vieira), entre vários outros. Catarina Saibro protagoniza números musicais que elevam, junto da banda e dos colegas, os valores estéticos da obra, essa que justapõe graça e beleza equilibradamente. O destaque está para a cena em que um grupo de crianças usa drogas, representando talvez que o prazer faz parte da vida e deve estar livre de qualquer jugo moral ou ético.

Sem propriamente a participação do público, “Cabaré Foguete” inclui a audiência dentro do interior da sua narrativa, construindo um clima bastante agradável com a plateia. Os figurinos de Tarsila Takahashi e os elementos cenográficos de André Sanches auxiliam na medida em que são bonitos e interessantes, mas não ostensivos. A direção de Sugahara e de Damasceno divide os méritos com Kelly Siqueira que assina a direção de movimento, pois espetáculo ocupa tão bem o espaço quanto o tempo, tornando essa opção de programação cultural uma divertida escolha. Aplausos!

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Ficha técnica
Direção e Dramaturgia: Ivan Sugahara e Gustavo Damasceno
Direção Musical e Preparação Vocal: Ricardo Góes
Assistente de Direção Musical: Breno Góes
Elenco: Catarina Saibro, Joel Vieira, Nara Parolini, Rita Fischer e Thiago Ristow
Músicos: Antônio Ziviani, Breno Góes, Felipe Ridolfi, Pedro Leal David
Direção de Movimento: Kelly Siqueira
Cenário: André Sanches
Figurino: Tarsila Takahashi
Iluminação: Ricardo Grings
Colaboração Dramatúrgica: Valéria Motta
Fotografia e Programação Visual: Thiago Ristow
Assistente de Produção: George Luís Prata
Direção de Produção: Maria Alice Silvério e Alan Isídio

Depois do ensaio (RJ)

Foto: divulgação
Sophia Reis, Leopoldo Pacheco e Denise Weinberg em cena


Mais Strindberg do que Bergman

Dirigida por Mônica Guimarães, a versão de “Depois do ensaio”, em cartaz no teatro Oi Futuro, no Flamengo, zona sul do Rio de Janeiro, deixa de ser melhor porque sua referência é mais o realista Strindberg do que Ingmar Bergman (1918-2007). Escrita originalmente por Bergman, a história parte de um diálogo entre o personagem-diretor Henrik Vogler, que está levantando uma montagem de “O sonho”, do sueco August Strindberg (1849-1912), com a personagem-atriz Anna. Na pauta, uma reflexão sobre o teatro feita por duas gerações diferentes. “Depois do ensaio” estreou participando da programação da quinta edição do Tempo_festival, evento coordenado por Bia Junqueira, César Augusto e por Márcia Dias, mas segue em cartaz até o fim de novembro.

As dramaturgias de “O sonho”, escrita em 1901 por August Strindberg, e de “Depois do ensaio”, em 1980, por Ingmar Bergman, são bastante diferentes. A primeira representa uma quebra de paradigma para o seu autor. O célebre realismo naturalismo strindberguiano, que tornou famoso o autor de “Senhorita Júlia” e “Os Credores”, virou expressionismo, em “O sonho”, na medida em que toda a situação dramática é a expressão das emoções da protagonista Inês, filha da deusa Indra. Já em “Depois do ensaio”, o surrealismo de Bergman, dos filmes “O ovo da serpente” ou “O sétimo selo”, se confirma, pois não sabemos qual o limite do sonho e da realidade ou qual (ou quais) personagem(s) está(ão) consciente(s) e quem está sonhando.

A partir de “O sonho”, de Strindberg, Bergman chama a atenção para o fato de que a lógica de causa e de efeito pode até funcionar bem nos planos, mas, assim como não acontece nos sonhos, também não acontece na vida real. Na abertura da peça, o diretor Henrik Vogler (Leopoldo Pacheco) almeja tirar um cochilo no palco depois de uma tarde de ensaio. Entra Anna (Sophia Reis) e, a partir daí, o espectador não tem mais como saber se Henrik conseguiu dormir e se o diálogo com Anna faz parte de seus sonhos, ou se ela realmente entrou. Em seguida, surge Rakel (Denise Weinberg), a princípio já falecida, que participou da montagem do mesmo texto no papel agora da filha, em montagem anterior dirigida por Vogler. O devaneio, o sonho, a fantasia, principalmente na cena final, dominam a narrativa, cujo diálogo final nos convoca a refletir sobre o quanto “ensaiamos” a vida muito mais do que a vivemos. Nesse sentido, “Depois de ensaio” não é uma peça apenas para pessoas de teatro, porque seus personagens são pessoas de teatro, mas uma obra a respeito da vida real versus as expectativas criadas.

De um modo geral, nenhuma construção de personagem realmente aproveita a potencialidade do texto, o que denota uma concepção problemática da direção de Mônica Guimarães. Nessa versão de “Depois do ensaio”, todas as três figuras exibem equivocadamente altas doses de consciência, até mesmo Rakel (Denise Weinberg), que é paciente de um tipo de tratamento psicológico. Seus espasmos de loucura não são suficientes para criar o surrealismo, mas negativamente mantêm o realismo na narrativa. Bastante racionais, como talvez só Inês de Strindberg possa ser, os personagens Vogler, Anna e Rakel discutem a relação ao longo dos 80 minutos cansativamente.

Leopoldo Pacheco (Henrik Vogler) e Denise Weinberg (Rakel) dizem bem o texto, se movimentam pelo palco com força, manipulam as palavras com habilidade. No entanto, embora as frases revelem detalhes de suas relações, o todo parece inalterado, terminando a narrativa com as mesmas certezas tidas no princípio. Ao final, a dramaturgia deixa ver outro motivo para a entrada de Anna em cena além da desculpa inicial, mas essa informação não recebe novas cores na interpretação de Sophia Reis que deixa muito a desejar.

O cenário de Marco Lima informa o espectador sobre a peça e sobre o cenário da peça dentro da peça, sendo elegante e pouco ostensivo positivamente. A música original de Marcelo Pelegrini e a belíssima contribuição da iluminação age bem nesse sentido igualmente, criando profundidade para o momento e para os personagens. É uma pena que esses tenham sido os melhores elementos da composição desse quadro.
 

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Ficha Técnica
Direção: Mônica Guimarães
Elenco: Denise Weinberg, Leopoldo Pacheco e Sophia Reis
Tradução: Amir Labaki e Humberto Saccomandi
Música Original: Marcelo Pelegrini
Cenário: Marco Lima
Iluminação: Wagner Freire
Assistente de direção/produção: Pitxo Falconi
Produção RJ – Cláudio Rangel
Produtores Associados: Amir Labaki e Mônica Guimarães
Realização: Oi Futuro

domingo, 19 de outubro de 2014

A verdadeira história de Alessandra Colasanti (RJ)

Foto: Ana Alexandrino
Alessandra Colasanti em cena


Lírico

Com altas doses de lirismo, o maior mérito de “A verdadeira história de Alessandra Colasanti” é que o público sabe que, nesse espetáculo, está assistindo a uma versão da vida da própria atriz-título. O feito, ultrapassando a barreira do particular, mas positivamente avançando para aquilo que qualquer um é convidado a fazer, permite uma reflexão sobre como cada um conta a sua própria história. Depois da estrear na Sala Multiuso do Espaço Sesc Copacabana, a peça cumpre temporada no Teatro do Sesi no centro do Rio de Janeiro. 

Em cena, a detetive decadente Alexandra Cavalcanti é chamada pelos pais de Alessandra Colasanti para localizá-la. Os escritores Marina Colansanti e Affonso Romano de Sant`Anna, que como a filha existem (e são célebres) além de qualquer narrativa, oferecem uma mala de jóias em troca do paradeiro da filha desaparecida. É quando “A verdadeira história de Alessandra Colansanti” deixa de ser uma tentativa de comédia boba e assume o seu lugar como um monólogo poético bem realizado. A dramaturgia, parcialmente ficcional, assinada pela atriz que dirige e interpreta o espetáculo, parte de um intenso jogo de palavras, cujas sonoridades bailam no texto dito, esse recheado de brincadeiras com os significados de cada uma e múltiplas referências culturais do mundo pop. Assim, o monólogo evolui para lugares cheios de magia encantadores. Da plateia, o espectador vê o escritório da detetive dar lugar para a descrição de um território fantástico, onde provavelmente se encontra a Colasanti desparecida, mas também um pouco de cada um de nós. 

O desafio é árduo, mas vencido. “A verdadeira história de Alessandra Colansanti” enfrenta minuto após minuto o perigo de ser uma auto-homenagem, fechada em si e apenas disposta às pessoas próximas de Alessandra Colasanti. O gesto, porém, de apresentar a personagem e situá-la onde todos possam alcança-la, através das histórias dos pais e dos avós, dos depoimentos dos amigos e principalmente dos relatos em primeira pessoa, abre a atenção da audiência pela criação de um universo carismático e cada vez mais sólido ao longo da apresentação. Ao final, o público não apenas se sente próximo da personagem (talvez reencontrada pela detetive?), mas também consegue compreender que lembrou da própria biografia a partir do exposto em cena. 

É positivo porque envolvente o investimento em cenário (Aurora dos Campos), em figurino, em videografismo (Nani Escobar e Colasanti), em iluminação (Tomás Ribas) e em trilha sonora (Arthur Braganti e Letícia Novaes). A criação de um personagem-ouvinte, a assistente Ramalhate (Flávia Espírito Santo), no mesmo intento que embasa a presença dos demais elementos cênico-narrativos, também auxilia na construção de uma situação sólida que será substituída por algo mais fluído. A curva, plenamente ascendente, é bem desenhada, pois se expressa a partir de detalhes visivelmente conceituais. 

Falar de si próprio é um ato corajoso, mas apresentar uma possível subversão da própria biografia é ainda mais audacioso. Há que se aplaudir tal feito. 

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FICHA TÉCNICA
texto e direção: ALESSANDRA COLASANTI
elenco: ALESSANDRA COLASANTI e FLAVIA ESPÍRITO SANTO
elenco extraordinário em off : MARINA COLASANTI e AFFONSO ROMANO DE SANT'ANNA
elenco extraordinário em vídeo: JOAO VELHO como SUPEREGO; e CARLOS GRUN, FERNANDA FELIX, LETÍCIA NOVAES, MARCIO DEBELLIAN, MICHEL BLOIS, MICHEL MELAMED, PEDRO HENRIQUE MONTEIRO, RODRIGO NOGUEIRA, SAMIR ABUJAMRA, THIARE MAIA
cenografia: AURORA DOS CAMPOS
luz: TOMÁS RIBAS
direção musical: ARTHUR BRAGANTI e LETÍCIA NOVAES
vídeo: NANI ESCOBAR e ALESSANDRA COLASANTI
figurino: ALEXANDRA CAVALCANTI
assistente de direção: RAFAEL MEDEIROS
assistente de cenografia: JULIA SALDANHA
cenotécnico: MARANHÃO e DJAVAN
beleza: VINI KILESSE
fotos: ANA ALEXANDRINO
programação visual: BADY CARTIER
mídias sociais: RAFAEL MEDEIROS
produção executiva: JAMES HANSON
direção de produção: CARLOS GRUN
produção: BEM LEGAL PRODUÇÕES ARTÍSTICAS e AO PÉ DA LETRA PRODUÇÕES ARTÍSTICAS
realização: TEATRO CLUBE PARADOXO
assessoria de imprensa: JSPONTES COMUNICAÇÃO – JOÃO PONTES e STELLA STEPHANY

sábado, 18 de outubro de 2014

O que você vai ver (RJ)

Foto: divulgação
O palco da peça dirigida por Inez Viana


Quando o teatro experimental alcança o coração do grande público

“O que você vai ver” é o melhor espetáculo com texto assinado por Rodrigo Nogueira, o grande nome do teatro experimental carioca mais recente. Dirigida por Inez Viana, a peça é livremente inspirada no texto “Todos os que caem”, do irlandês Samuel Beckett (1906-1989). No destaque dessa produção, que conta com César Augusto, Fabrício Augusto, Fabricio Belzoff, Nanda Félix, Joana Lerner, Marcelo Valle, Michel Blois e com o próprio Nogueira no elenco, está o fato de que os atores não aparecem em cena, mas apenas se ouvem suas vozes. Em todos os sentidos, é excelente!

A peça radiofônica “All that fall”, escrita em 1956 sob encomenda da BBC, é a primeira incursão do dramaturgo direto em língua inglesa. No Brasil, a última montagem do texto no teatro foi uma belíssima produção assinada pelo gaúcho radicado em Paris Biño Sauitzvy em 2002. A raridade de sua montagem é por causa das dificuldades que o próprio autor criava (e seus descendentes criam) para a adaptação de uma peça sua de rádio para teatro. Segundo Beckett, esses personagens só fazem sentido “emergindo da escuridão”. Ao convidar o público carioca para assistir a teatro, mas apresentar apenas as vozes dos atores, Rodrigo Nogueira deixa esses personagens na escuridão, apesar de, mesmo assim, dar-lhes luz.

O aspecto experimental da produção está no modo como a discussão sobre o teatro se articula plenamente com a narrativa. O texto assinado por Rodrigo Nogueira, assim como o de Beckett, experimenta as possibilidades do conceito identitário da arte cênica segundo o qual só há teatro quando há A interpretando B diante de C. “O que você vai ver” se torna teatro, dentro dessa tese, em uma cena de sua primeira parte em que as vozes ouvidas se referem ao público em particular. Nesse momento, o espectador toma consciência de que não está ouvindo uma gravação, mas que, de fato, os intérpretes estão ali o observando ainda que escondidos. Porém, o melhor da produção não é esse aspecto formal de sua narrativa, mas o seu profícuo entrosamento com o tema. Ao quê se assiste tem tudo a ver com o sobre ao quê assiste.

“O que você vai ouvir” fala sobre a importância da vida a partir da ausência. Na história, um grupo de pessoas está em uma estação esperando pelo trem que demora para vir. Então, descobre-se que o atraso é porque alguém caiu nos trilhos e morreu. A relação entre o atraso do transporte coletivo e as consequências na rotina de cada um atropela o fato da morte de um semelhante. Uma vez que quem gosta de ver teatro gosta, antes de tudo, de ver gente, e está aí a sua maior beleza, a opção formal de não colocar atores no palco é deixar o público sozinho. No conteúdo, por outro lado, tratar da  morte de alguém como, no máximo, uma questão de agenda é fazer um convite claro à discussão acerca da vida.

A direção de Inez Viana, mais uma vez, vai para além do trabalho de dramaturgia, elevando o trabalho individual do elenco. Cada personagem atua em dois níveis: no primeiro, há a história contada por Beckett. No segundo, a manifesta interrogação sobre a situação da ausência dos atores em cena proposta pelos diálogos originalmente escritos por Nogueira. Nesse sentido, os ritmos e as variadas tonalidades de cada voz ao compor e ao manifestar os personagens narram excelentemente bem, vencendo o desafio de construir bases sólidas o suficiente para a trama e a proposta serem compreendidas. Por outro lado, o movimento de entrada e de saída das cadeiras, o preenchimento do palco pelas coxias e pela rotunda e o colorido narrativo da iluminação resultam em um todo quase tão palpável quanto o melhor teatro convencional pode oferecer.

“O que você vai ver” é um símbolo do quanto o elemento sonoro tem recebido vital investimento nas produções teatrais contemporâneas. No caso dessa produção, Marcelo Alonso Neves, ao assinar o desenho de som e a trilha sonora, pontua sua importância definitiva como responsável junto da dramaturgia e da direção pelos muitos méritos desse trabalho em cada um dos seus muitos detalhes bem cuidados.

Ressaltados seus valores enquanto investigador teatral, Rodrigo Nogueira deve receber, junto aos demais responsáveis por “O que você vai ver”, os aplausos justos. Obrigado!

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FICHA TÉCNICA
Companhia Provisória: Cia dos Atores e Pequena Orquestra
Texto: Rodrigo Nogueira
Criação Dramatúrgica: Pequena Orquestra e Inez Viana livremente inspirado na obra All that fall, de Samuel Beckett (“Todos que caem”, tradução de Fátima Saadi)
Direção: Inez Viana
Elenco: Cesar Augusto, Fabricio Belsoff, Nanda Félix, Joana Lerner, Marcelo Valle, Michel Blois e Rodrigo Nogueira
Cenografia: Rebecca Belsoff
Sound Designer: Marcelo Alonso Neves
Assessoria de Imprensa: Daniella Cavalcanti
Arte Gráfica: Rafael Medeiros
Mídias Sociais: Marina Murta
Fotos: Carlos Cabéra
Produção: Ordinárias Produções Artísticas Ltda e Nome da Firma Produção e Comunicação Ltda
Coordenação de Projeto e Direção de Produção: Fabricio Belsoff e Michel Blois
Produção Executiva: Natasha Corbelino
Idealização: Fabricio Belsoff, Michel Blois e Rodrigo Nogueira
Parceria: Copiadora Ipanema
Agradecimentos: Isabel Sangirardi, Equipe do Teatro Ipanema, Equipe da Residência Artística No Lugar, Fátima Saadi, Rubens Rusche, Léa Viveiros, Diana Herzog, Patrick Sampaio, Rossini Viana Jr, Ana Paula Monteiro, Pedro Henrique Monteiro, Adriano Guimarães, Fernando Guimarães, Marcelo Olinto, Bel Garcia e Gabriela Dottori
Apoio: Ministério da Cultura e da Fundação Nacional de Artes

O último Godot (RJ)

Foto: Conrado Krivochein
Phellipe Azevedo e Ricardo Rocha em cena


Problemas de concepção e sua importância

“O último Godot”, da Cia em Branco e Preto, participou da programação da segunda edição da [ mostra hífen de pesquisa cênica ], evento coordenado pelo grupo Teatro Inominável, que acontece em parceria com o quinto Tempo_festival, esse dirigido por Bia Junqueira, César Augusto e por Márcia Dias. O espetáculo, que foi apresentado no Galpão Gamboa, foi produzido a partir de texto do autor romeno Matéi Visnec e tem direção de Maíra Kestenberg com Phellipe Azevedo e Ricardo Rocha no elenco. A produção reflete problemas na ordem da concepção.

Muitas são as pesquisas que relacionam os personagens do irlandês Samuel Beckett (1906-1989) à construção do clown sobretudo em função da ausência do tempo e da relação de causa e de efeito que une em e outro. O problema maior dessa montagem de “O último Godot” é que os dois personagens em cena procuram driblar o tempo, buscam uma lógica para o que não tem lógica, decepcionam-se ao invés de ser apenas a representação da decepção.

A história de Visniec, autor censurado pelo governo socialista, não é uma biografia, embora estejam claras as referências a “Esperando Godot”, e a Beckett. Há um homem à porta do teatro quando o Autor da peça em cartaz é expulso. O primeiro se identifica como sendo o personagem Godot e reclama ao segundo acerca de sua ausência na história escrita por ele. No diálogo, ambos refletem sobre a falta de público no teatro, sobre o esvaziamento das ruas, sobre a alienação em uma clara crítica ao consumo capitalista. A crítica, no entanto, é mérito do público que reflete sobre o quadro e não do quadro, ratificando o ideário desses autores de que há que se ser sujeito da própria história e não o objeto dela. Não é isso que se vê no trabalho dirigido por Maíra Kestenberg infelizmente.

A cena inicial, em que Azevedo enfileira bitucas de cigarro, por exemplo, faz claríssima oposição com a macieira de “Esperando Godot” que floresce sem lógica, representando a ausência do tempo. Contrariamente ao mundo de Beckett e de Visniec, os personagens de Kestenberg lutam contra suas desgraças, estão insatisfeitos, têm opiniões e sofrem enquanto os dos autores originais nem mesmo sentem, sendo conformados às situações que não podem (e nem querem) compreender. Nesse sentido, esse “O último Godot” parte de um princípio equívoco e que acaba por não conseguir justificar todos os pontos de sua representação.

Prejudicados pela concepção, Phellipe Azevedo (Godot) e Ricardo Rocha (o Autor), preenchendo o tempo com um roll contínuo de ações, permitem ver referências a Buster Keaton e a Charlie Chaplin em termos da produção constante de gags cômicos. O feito ratifica o mal relacionamento entre o clown e o trágico contemporâneo, pois as interpretações, coerentes com a proposta, forçam ações narrativas onde elas, de fato, não existem. O cenário de Paula Cruz, o figurino de Aline Besouro e a caracterização de Lucimar Ferreira e de Manoella Moura sugerem um expressionismo, também coerente com Kestenberg, pois os cortes diagonais e a desproporção dos elementos expressam um mundo que é lido através dos sentimentos. O desenho de iluminação de Pedro Struchiner atua no mesmo sentido, criando ritmo, jogo e evolução de acordo com a tese da diretora em sua obra.

Incluir Godot no fim da peça, como sugere o personagem no diálogo, traria sentido para “Esperando Godot”, dando lógica à história e sentimentos para os personagens, apelo emocional à narrativa e público para o teatro falido do contexto ficcional de Matéi Visniec. “O último Godot” não é teatro realista, nem boa base para o expressionismo, justamente porque celebra a ausência do sentido e todo o teatro que faz dessa uma metáfora para o mundo contemporâneo. No entanto, essa montagem é um bom motivo para analisar o quão presente uma concepção é nos elementos que compõem a estrutura de um espetáculo teatral.

O Tempo_festival termina em 19 de outubro e a [ mostra hífen de pesquisa cênica ] segue até 2 de novembro. Confira a programação!

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Equipe de Criação:
Cia em Branco e Preto (Rio de Janeiro/RJ)
Texto: Matéi Visniec
Direção: Maíra Kestenberg
Elenco: Phellipe Azevedo e Ricardo Rocha
Cenografia: Paula Cruz
Figurino: Aline Besouro e Manoella Moura
Caracterização: Lucimar Ferreira
Desenho de luz: Pedro Struchiner
Treinamento de Comicidade: Lucas Castelo Branco

A midsummer night’s dream (EUA) - 21o Porto Alegre em Cena

Foto: Dianna Oliva-Day
Botton e sua cabeça de burro (Bob Turton) e o elenco em cena


A primeira vez do The Actor`s Gang no Brasil

“A midsummer night’s dream” (“Sonho de uma noite de verão”), do grupo americano The Actor’s Gang encerrou a 21a edição festival Porto Alegre em Cena, um dos mais importantes festivais internacionais de teatro do Brasil. Dirigido por Tim Robbins, o espetáculo integra a programação dos 450 anos do nascimento do dramaturgo inglês William Shakespeare. A excelência da produção embelezou a primeira visita desse que é um dos grupos mais respeitados dos Estados Unidos, encantando e divertindo o público que lotou o Theatro São Pedro, na capital gaúcha, nos últimos dias do setembro.

Escrito provavelmente em 1594, “Sonho de uma noite de verão” é uma comédia, mas esse termo precisa de atenção. No período elisabetano, comédia não era, como hoje, aquela história que faz rir, mas delimitava um tipo de narrativa que não era nem tragédia, nem auto religioso ou hagiografia (vida dos santos). Trata-se de uma justaposição de fatos com algum contorno narrativo e que, mesmo divertindo, preserva uma certa moral. Dividido essencialmente em duas partes distintas, o texto não é um dos melhores do bardo, mas, sem dúvida, um exemplar de sua genialidade enquanto contador de histórias para o palco.

Na primeira parte, temos a história de Hérmia, filha de Egeu, que ama Lisandro e por ele é amada. Decidido a fazer sua filha se casar com Demétrio, Egeu leva sua filha para o Príncipe Teseu, que ainda comemora o seu recente casamento com a Princesa Hipólita. Se Hérmia não cumprir a vontade do pai, deverá enterrar-se em um convento. O príncipe dá, então, um dia para os jovens reflitirem. Nessa noite, Lisandro e Hérmia resolvem fugir, atravessando a floresta de Atenas, para longe das leis vigentes. O problema é que Hérmia conta o plano de fuga para sua melhor amiga Helena, que revela o segredo ao seu amado Demétrio, esse o admirador de Hérmia. Demétrio vai atrás de Hérmia e é seguido por Helena. Na floresta, seres mágicos povoam a noite. O Rei Oberon e a Rainha Titânia brigam pela posse de um pajem. Para vingar-se, Oberon encanta Titânia, derramando sobre seus olhos, enquanto ela dorme, um extrato da flor do Amor Perfeito, fazendo com que ela se apaixone perdidamente por um ator errante de um grupo que almeja tomar parte na festa do casamento do Príncipe Teseu. Comovido com Helena, que é desprezada por Demétrio, Oberon manda seu elfo Puck enfeitiçar também Demétrio, mas Puck primeiro o confunde com Lisandro e só então acerta. O resultado é que, no meio da noite, Helena se vê idolatrada por Demétrio e por Lisandro enquanto Hérmia é odiada por ambos. Essa parte da história termina ao amanhecer quando Oberon desfaz o encantamento de Lisandro e o de Titânia, com quem se reconcilia. Os jovens são encontrados na floresta por Teseu e por Egeu e Demétrio retira o pedido de casamento à Hérmia, terminando todos “felizes para sempre”.

Uma peça dentro da peça, a segunda parte da história envolve o teatro apresentado pelo grupo de atores no casamento de Teseu com Hipólita. Dirigidos pelo carpinteiro Peter Quince, a trupe apresenta o triste episódio de Píramo (interpretado pelo personagem Nick Botton) e de Tisbe (pelo personagem Francis Flute) tirados de “Metaforses”, do poeta romano Ovídio. Proibidos de se casarem por causa da rivalidade dos seus pais (considerar aqui a história de Hérmia e de Lisandro, mas também a de “Romeu e Julieta”), eles trocam juras de amor através do buraco de um muro que divide as duas casas. Em uma noite de luar, resolvem se encontrar no túmulo de Nino. Tendo chegado antes, Tisbe vê um leão se aproximar com a boca suja de sangue e se esconde, deixando cair seu véu. Ao ver o tecido sujo e as pegadas do leão, Píramo pensa que sua amada foi assassinada e se mata. Ao ver seu amor morto, Tisbe mata-se também. Os monólogos da Lua (Robin Starveling), do Leão (Snug), do Muro (Tom Snout), de Píramo e de Tisbe, exagerando na poética, são engraçadíssimos principalmente porque ditos por péssimos atores (os personagens-atores) que divertem os personagens da primeira história, esses convidados da festa de casamento de Teseu e de Hipólita. “Sonho de uma noite de verão” termina com a festa dos elfos da floresta, entre eles, Puck, o “bom robin”.

“A midsummer night’s dream” é um ótimo espetáculo por muitos motivos. O primeiro deles é porque Tim Robbins, assistido por Cynthia Ettinger, conseguiu articular bem as duas histórias, sem economizar uma das duas como é comum, mas mantendo viva a atenção do público. Dois são os combustíveis dessa boa articulação: de um lado, temos uma encenação que se renova em cada quadro, oferecendo elementos novos que preenchem o palco vazio e a visão do público. Os cenários compostos essencialmente de elementos que os atores seguram com a próprias mãos se movimentam naturalmente ao sabor das cenas, ocupando vários níveis belissimamente. Os figurinos (Olivia Courtin, Mary Eileen O’Donnell e o elenco), em sua simplicidade, entram e saem dos espaços de luz como os seres da floresta que a história representa. O desenho de luz de Bosco Flanagan colore sem tirar os vestígios da noite e ilumina a encenação da peça dentro da peça sem ser incoerente com a boa hierarquia de momentos de Robbins. A direção musical de Dave Robbins pontua o ritmo dos passos ágeis dos intérpretes que dão a ver os quadros de forma amplamente coberta de detalhes, mas com precioso rigor. Por outro lado, o elenco é composto por excelentes trabalhos de interpretação.

O jogo de interpretações, que permite que um mesmo ator interprete mais de um personagem, deixa ver um afinado baile. As trocas de roupa são velozes, o entra e sai é frequente, os giros garantem o ritmo sempre ascendente. Sabra Williams (que também faz Puck e Titânia) e Pierre Adeli (que também faz Oberon) disputam um ótimo jogo de poder, dando nova vida para o casal geralmente apagado de personagens Hipólita e Teseu no texto original. Algo positivamente parecido acontece aqui com os personagens secundários que acompanham Titânia em relação a Botton-com-cabeça-de-burro, que a Rainha enfeitiçada idolatra: é visível uma “queda de braço entre eles”. Mary Eilleen O’Donnell apresenta um carismático Peter Quince. Lee Margaret Hanson (Hérmia), Hannah Chodos (Helena), Will Thomas McFadden (Lisandro) e Adam J. Jefferis (Demétrio) interpretam os jovens apaixonados com agilidade que movimenta a narrativa para além de um romantismo equivocado felizmente. No entanto, Bob Turton, como Botton, se sobressai entre todos os excelentes resultados, protagonizando um dos melhores momentos de toda a encenação de 160minutos. Seu monólogo texto-gestual expõe um trabalho de atuação magnífico e merecedor dos muitos aplausos recebidos.

Na versão do grupo californiano The Actor`s Gang, “Sonho de uma noite de verão” acontece em uma época não definida e em um lugar que, embora cite Atenas, não se resolve exatamente. Os elementos cômicos, dispostos a enfatizar o que há de pior no comportamento humano, não escondem a violência do pai sobre a filha, do marido sobre a mulher, da amiga pela outra amiga, dos financiadores pelos grupos de teatro e os pobres atores mambembes, dos reis e de seus vassalos. Ainda que tudo seja contato de um jeito leve e engraçado, lembremos que Demétrio só fica com Helena porque ainda está enfeitiçado, o que claramente nos permite pensar que o feitiço proporcionado pelo teatro nunca acaba. Nesse caso, ainda bem!

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Ficha técnica:
Texto: William Shakespeare
Direção:Tim Robbins
Assistente de direção: Cynthia Ettinger
Direção musi cal: Dave Robbins
Iluminação: Bosco Flanagan
Máscaras: Erhard Steifel
Figurinos: Olivia Courtin, Mary Eileen O'Donnell e o elenco

Elenco:
Adam Ferguson
Adam J. Jefferis
Cihan Sahin
Hannah Chodos
Lee Margaret Hanson
Mary Eileen O’Donnell
Molly O’Neill
Monica Quinn
Pedro Shanahan
Bob Turton,
Pierre Adeli
Sabra Williams
Jillian Yim
William Thomas McFadden

Músicos: Dave Robbins e Mikala Schmitz
Produção executiva: Simon Hanna

sábado, 11 de outubro de 2014

Timon de Atenas (RJ)

Foto: divulgação
Vera Holtz é Timon de Atenas


Vera Holtz no aniversário de Shakespeare

“Timon de Atenas” não é uma das peças mais conhecidas de William Shakespeare, mas é muito interessante sob vários pontos de vista. A montagem, no entanto, que estrou ontem no Teatro Maison de France, assinada por Bruce Gomlevsky, nem de longe é um dos seus melhores trabalhos como diretor infelizmente. Traduzido por Bárbara Heliodora, a partir de adaptação de Nicholas Hytner e de Ben Power, do National Theatre de Londres, o espetáculo vale a pena pela magistral interpretação de Vera Holtz no papel título, com ótima participação de Alice Borges. A produção integra os 450 anos do nascimento do mais importante dramaturgo inglês, um dos maiores da literatura universal.

A princípio escrita por Shakespeare (1564-1616) aproximadamente em 1607, a história aparece em “Vida de Marco Antônio”, do historiador grego Plutarco (46-120 d.C.), e em “Palácio do Prazer”, escrito, em 1566, pelo contista inglês William Paynter (1540-1595). Entre as obras de Luciano de Samósata (125-180 a. C.), consta o diálogo “Timon ou o misantropo”, citando o personagem que já havia aparecido na peça "Lisístrata", de Aristófanes, lançada em 411 a. C., que teria vivido realmente entre 431 e 404 a.C. Quanto à versão do bardo, ao ouvir a história de Timon de Atenas, a plateia tem, diante de si, o retrato de uma sociedade corrosiva (e corrompida) da qual todos fazemos parte e pela qual somos responsáveis. Extremamente generoso e com grande bondade, Timon (Vera Holtz) é um cidadão respeitável de Atenas que não mede esforços em agradar seus amigos, dissipando sua fortuna em presentes, agrados e em ajudas. O elemento trágico está no fato de que todos sabemos o que acontecerá, o destino irrevogável do protagonista: sua fortuna findará, ele procurará os amigos, mas não receberá nem mesmo parte da ajuda que, quando pode, ofereceu gratuitamente. “Timon de Atenas”, um “Avarento” ao contrário, expõe o egoísmo como uma face terrível da corrupção humana. Além disso, como se não bastasse, o brilhantismo do narrativa vai além. De um lado, Shakespeare expõe a proximidade entre pobres e ricos, separados não pelos valores, mas pelo tamanho da fortuna. De outro, no diálogo com o filósofo Apemantus (Tonico Pereira), se tematizam os pontos de referência para sentir e para se reagir ao mundo: porque sempre conviveu com a fartura, a pobreza derruba Timon com força brutal.

A montagem produzida por Susan Mace, da Cultural Embassy Brasil, infelizmente estreia com um ritmo lento na direção de Bruce Gomlevsky e com trabalhos de interpretação pouco relevantes. Tonico Pereira repete (bem) o mesmo personagem de quase sempre, enquanto Iano Salomão (Alcebíades), Jaime Leibovitch (Isidoro) e Paulo Giardini (Lucullus) pouco oferecem aos seus personagens. Por outro lado, é vibrante encontrar Alice Borges completamente afastada da comédia que orgulhosamente preenche o seu currículo, mas também presente, viva e inteligente nas cenas dramáticas de que participam sua criada Flávia, talvez uma das personagens mais próximas do protagonista Timon.

Vera Holtz, ao lado do texto, é o que há de melhor nessa montagem em cartaz. Sua interpretação tem a graça, a jovialidade e a leveza nos quadros iniciais prontas para contrastar com a amargura, a decepção e com a loucura das cenas finais. Além disso, a intérprete fala as palavras com muita clareza, com intenções precisas, pausas justas e colorido enriquecedor. O personagem de Timon, nessa versão, tem ainda, para Holtz, outros dois desafios plenamente vencidos. O primeiro é que Timon é um homem e, no texto, há certa confusão com o uso das palavras no masculino e no feminino. Felizmente, nada disso parece atrapalhar Holtz que dribla fluentemente esses entraves aparentes. Depois, Gomlevsky definiu com mais força do que na adaptação de Hynter e de Power o local das cenas finais: o lixão de Atenas. O feito imediatamente remete Vera Holtz ao personagem de Mãe Lucinda, recentemente interpretado pela atriz na novela “Avenida Brasil”. De novo, o desafio é ultrapassado com coragem, elegância e com presteza. Excelente!

Sobre os demais elementos, há mérito na trilha sonora original vigorosa de Marcelo Alonso Neves (com preparação vocal de Letícia Carvalho) e na iluminação de Elisa Tandeta que celebra parte do estilo do século de ouro. Hélio Eichbauer acerta em manter as versões de El Greco de “A expulsão dos vendilhões do templo”, assim como o primeiro figurino de Rito Murtinho para Timon de Holtz tenha marcas de coerência com a proposta da adaptação.

Entre as reflexões mais célebres acerca de “Timon de Atenas”, está aquela que discute sobre a importância de aprender com os erros, porque, enquanto estava falido, o destino providenciou, na peça, uma nova chance para o protagonista se reerguer. Uma das conclusões possíveis é a de que Timon preferiu permanecer fiel aos seus princípios apesar de todas as adversidades. Ao leitor, fica o convite para a continuação desse debate. Ele é rico!


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FICHA TÉCNICA
Concepção e Adaptação: Nicholas Hytner e Ben Power
Tradução do Original de William Shakespeare e Revisão: Barbara Heliodora
Adaptação da Tradução: Susan Mace e Izabel dos Reis Velloso
Direção: Bruce Gomlevsky

ELENCO: 20 atores fazem 27 personagens
Timon de Atenas: Vera Holtz
Apemantus (filósofo cínico): Tonico Pereira
Flávia (assistente de Timon): Alice Borges
Alcebíades (líder da revolta) /Ator: Iano Salomão
Poeta: Marcelo Morato
Sempronia (senadora): Lorena da Silva
Lucullus (senador): Paulo Giardini
Isidoro (senador): Jaime Leibovitch
Caphis (cobrador / ladrão): Braulio Giordano
Pintora: Giovanna de Toni
Flaminia / Timandra: Alice Steinbruck
Joalheira / Phyrnia: Juliana Bebé
Ventidius (jovem senador): Tatsu Carvalho
Varro (senador): Lourinelson Vladmir
Lepidus (senador): Charles Asevedo
Philotus (criado): Junior Prata
Titus (cobrador / ladrão): Betto Marque
Hortencius (cobrador / ladrão): Luiz Felipe Lucas
Servilius (criado / coro): André Rosa
Hostilius (cobrador / coro): Henrique Gotardo

Coro: André Rosa (também Servilius), Henrique Gottardo (também Hostilius), Isabella Mariotti, Joanna Marins, Joana Poppe (também dançarina), Lorena Sá Ribeiro, Mariah Viamonte, (também dançarina), Paola Castilho (também fotógrafa).


Cenografia: Helio Eichbauer
Assistente de Cenografia: Joana Passi de Moraes
Figurinista: Rita Murtinho
Assistente de Figurino: Tatiana Rodrigues
Iluminação e Assistência de Direção: Elisa Tandeta
Direção Musical e Música Original: Marcelo Alonso Neves
Direção de Movimento: Marina Salomon
Preparação Vocal: Letícia Carvalho
Vídeo Designer: Laís Rodrigues
Vídeo Editor: Ana Paula Carvalho
Fotos: Dalton Valerio
Design Gráfico e Comunicação Digital: Guilherme Mace Altmayer
Direção de Produção: Studio Ziss e Susan Mace
Produção Executiva e Coordenação de Produção: Elisa Padilha e Renata Gebara
Produção Executiva – Coordenação de Parceria Cultural: Rafael Fleury
Assistente de Produção: Ana Cristina Simon Rosa e Cammila Rodrigues
Realização: Cultural Embassy Brasil Editora e Produtora Ltda
Assessoria de Imprensa: JSPontes Comunicação – João Pontes e Stella Stephany