terça-feira, 25 de outubro de 2011

Policarpo Quaresma (RJ)

Foto: divulgação

23 peças e um espetáculo

“Policarpo Quaresma” faz parte da “Trilogia Carioca Antunes Filho” também composta por “Foi Carmen” e por “Lamartine Babo”, todos produzidos pelo Grupo Macunaíma e pelo Centro de Pesquisa Teatral (CPT – SESC/SP) e apresentados no Teatro Nelson Rodrigues – Caixa Federal no Rio de Janeiro, durante o mês de outubro de 2011. Dirigido por Antunes Filho (1929), o espetáculo é uma atualização para o teatro do romance pré-modernista “Triste fim de Policarpo Quaresma”, de Lima Barreto (1881-1922), lançado em 1911. Em cena, 23 atores encenam dezenas de personagens liderados por Lee Taylor, que valorosamente interpreta o título.

Os mais de cento e vinte minutos de fruição resultam em uma verdadeira e qualificada aula de ritmo teatral. O experiente e célebre encenador paulista oferece, junto de seus assistentes e produtores, um grande espetáculo construído com muito pouco. Não há cenários, os movimentos de luz são escassos e o figurino, no todo de suas escolhas, não exibem nenhum luxo. A riqueza de “Policarpo Quaresma”, assim, não está visível no dinheiro gasto com objetos de cena ou com efeitos concretamente plásticos, mas no excelente uso da teatralização dos signos mais essenciais e, sobretudo, na articulação de seu conjunto. A história é contada a partir de um encadeamento de cenas que, conferindo um ritmo vibrante à história original, essa narrada em capítulos, tornando vivas as diversas possibilidades de significação existentes em sua estrutura.

A narrativa pode ser divida em quatro partes maiores. Na primeira, conhecemos Policarpo Quaresma: funcionário do Ministério do Exército, interessado em descobrir sobre o folclore nacional – histórias antigas, canções, velhos costumes perdidos com o tempo. Sua pesquisa faz com ele descubra que todos esses hábitos são, na verdade, importados das culturas europeias e, por isso, não originariamente brasileiras. Na segunda parte, a cultura indígena surge como fonte do brasileirismo essencial. Quaresma ensina seus amigos o que aprende com os índios, chegando a escrever uma carta para o Congresso Nacional, sugerindo a substituição da língua portuguesa pelo tupi-guarani, segundo ele, o verdadeiro idioma nacional. Ao escrever um documento na língua indígena, irrita seus superiores, o que o leva a ser internado em um manicômio. A convivência com os loucos e o distanciamento da cidade o faz pensar na sugestão de sua afilhada quanto à sua próxima moradia. A terceira parte começa quando Quaresma, tão logo tenha alta, adquire um sítio no interior, onde passa a se dedicar à agricultura e à botânica, preservando, de forma discreta, seus velhos ideais ufanistas. Seu recolhimento é atrapalhado por duas situações: o aparecimento devastador de milhares de formigas e, ironicamente, a perseguição de políticos da localidade que exigem do novo morador que ele tome uma posição. A quarta parte começa com a eclosão da Revolta da Armada, em que oficiais da Marinha se rebelam contra a presidência da república, o que faz de Quaresma um oficial militar à serviço da unidade nacional contra os rebeldes e, ainda, um fervoroso patriota. O fim, que é triste, surge como um desfecho após a sucessão de capítulos que, de modo geral, funcionam quase que independentes. Enquanto literatura, “Triste fim de Policarpo Quaresma” só é considerado pré-modernista porque a Semana de Arte Moderna aconteceu onze anos após a sua publicação. Quaresma é um anti-herói moderno uma vez que suas ações não encontram respaldo em nenhum de seus pares, que o vêem com irônico descrédito. No todo, a narrativa é uma importante obra artística cujo caráter crítico à política nacional é o seu principal mote, fazendo da história tão atual no início do século XX, como no do século XXI.

A atualização para o teatro se esforça no apagamento da divisão em partes. Uma cena está acontecendo e, de repente, uma procissão de atores surge e cruza o palco, saindo em seguida. O gesto prova que nenhuma avaliação de uso de instrumento teatral deve ser feita realizada fora de seu contexto. A ilustração, criticada negativamente em muitas peças, nas mãos de Antunes Filho, neste espetáculo, vale ouro. A ordem das cenas, o modo como a próxima inicia sem que a anterior tenha terminado, a inserção de quadros e a movimentação irregular de grupos de personagens não só não deixa o ritmo perder o fôlego como, do ponto de vista estético, enche os olhos e enriquece a produção. Antunes Filho faz ver vários níveis, constrói jogos e propõe a leveza como convite à deliciosa fruição.

Poucos recursos são usados na viabilização dos personagens, de forma que, por estarem próximos da realidade além da narrativa, oferecem um ponto de leitura da peça como atualização do gênero “comédia de costumes”. Uma vez que as peças lidas a partir dessa esfera geralmente têm poucos personagens e sustentam uma trama bem amarrada, o que não é o caso aqui, observa-se que a encenação bebe, e muito, na fonte da alegoria carnavalesca. A união de uma história com forte apelo crítico à política brasileira a um grande e afinado elenco, adicionando aí pouco, mas qualificado investimento em recursos concretamente plásticos (os figurinos de Rosângela Ribeiro são simples, práticos e potentes), o resultado é a leveza já citada, essa tão cara a quem pretende fazer mais de duas horas voarem diante de nossos olhos numa boa peça de entretenimento.

Algumas interpretações merecem destaque. Angélica Colombo (uma das loucas), Geraldo Mário (Anastácio) e Marcos de Andrade (Floriano Peixoto) aproveitam os poucos momentos que seus personagens têm para mostrar um grande trabalho, fincando na narrativa suas contribuições que se tornam, assim, dificilmente esquecíveis. Diferente da maior parte das figuras, aquelas que ganham vida na pele de Priscila Gontijo (Olga) e de Natalie Pascal (Ismênia) têm a responsabilidade de trazer toda a história para um clima menos carnavalesco e mais reflexivo, sofrendo, por isso, o risco de promover um “banho de água fria” na explosão de ações proposta pelo tom geral da peça. No entanto, isso não acontece e seu mérito se converte em força para o multiplicar de ações que acontecem após suas entradas. É o apoio, a preocupação e o conselho de Olga que fazem Policarpo ser visto pela audiência não como um louco, mas como um herói. Por outro lado, é a loucura final de Ismênia que torna humanos todos os personagens em cena.

Sem dúvida, Lee Taylor está brilhante em sua interpretação do personagem protagonista. A fragilidade criada pelo aspecto franzino do intérprete está em oposição à força de seu papel na narração: o sujeito em volta de quem toda a história gira. O resultado é a sua humanidade: somos, afinal, mais fracos que as pedras e as árvores, mas as criaturas mais inteligentes da natureza. O olhar delicado (nada efeminado) no emprego de sua construção é um apelo para que torçamos por ele na realização de seu heróico intento. A cena em que, magistralmente, ele sapateia o Hino Nacional enquanto mata as formigas que lhe atacam, um dos momentos mais vibrantes de toda a encenação, pode ser lida como uma metáfora de um povo que está cansado daqueles que, corruptos, surrupiam as riquezas que deveriam ser de todos. O falar bem articulado enche sua retórica de confiabilidade e consequente liderança. A precisão e a calma dos movimentos permitem a adequada fruição. Em tudo, o trabalho desse ator, nessa peça, está de parabéns.

Considerando que a raiz do teatro é uma obra de expressão de arte em que um ator interpreta um personagem diante de alguém, “Policarpo Quaresma”, enquanto espetáculo cênico, merece o aplauso por construir, no mínimo 23 peças, todas elas unidas numa grande e bastante meritosa produção.

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Ficha técnica:


Texto: Lima Barreto
Adaptação e Encenação: Antunes Filho
Assistente de Encenação: Michelle Boesche
Cenografia e Figurinos: Rosângela Ribeiro
Desenho de Luz: Edson FM e Ederson Duarte
Músicas ao vivo: André de Araújo
Produção executiva: Emerson Danesi
Interpretação: Adriano Bolshi, André Bubman, André de Araújo, Angélica Colombo, Carlos Morelli, Felipe Hofstatter, Fernando Aveiro, Flávia Strongolli, Freed Mesquita, Geraldo Mário, Ivo Leme, João Gyongy, Juliana Calderón, Lee Taylor, Marcos de Andrade, Marília Moreira, Michelle Boesche, Natalie Pascoal, Priscila Gontijo, Rafaela Cassol, Ruber Gonçalves, Ygor Fiori e Walter Granieri.

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