domingo, 23 de outubro de 2011

O Idiota (Lituânia)

Foto: divulgação

Nekrosius

Talvez tenha havido um tempo em que o bem fazia bem e o mal fazia mal. Em que homens casavam com mulheres e só com ela tinham filhos. Em que o preço das coisas não mudava, em que as cartas chegavam e os antivírus eram confiáveis. Talvez tenha existido uma época em que virgindade era sinal de virtude, em que os padres não tinham sexo, em que as crianças eram puras e os comunistas eram maus. Esse, no entanto, não é o tempo do Porto Alegre em Cena. Nós vivemos a difícil tarefa da adversidade, da prazerosa situação de não saber ao certo com o quê lidamos, nem por quanto tempo lidaremos, com a certeza dialética de que o bem pode também fazer o mal. E, às vezes, ao mesmo tempo.

A bondade do Príncipe Míchkin, protagonista de “O Idiota”, por exemplo, destrói os seres humanos a sua volta, sejam ele bons ou maus. Ela faz aquele que se julga bom duvidar de sua própria bondade. E aquele que é mal desconfiar de si mesmo. Une, num só eixo de dúvida, um rol de personagens e constrói uma história sobre um pântano caudaloso e frio, cortante e, ao mesmo tempo, volúvel como o gelo. A bondade sufoca.

Fiódor Dostoiévski (1821-1881) ainda não tinha quarenta anos quando publicou “O Idiota”, um dos seus romances mais importantes. No entanto, convivia com epilepsia desde os dezessete, o que o coloca ao lado de nomes como Machado de Assis, Flaubert, Hemingway e Van Gogh. A relação entre a doença e o escritor fez nascer o Príncipe Lev Nikoláevitch Míchkin, protagonista do romance, idiota se entendermos a palavra não como um xingamento, mas como um termo que designa, de forma pejorativa, aquele que sofre de idiotia, aqui relacionada à epilepsia. O escritor, que é tido como o pai do existencialismo e, hoje, é um dos maiores nomes da literatura mundial, tendo escrito também “Crime e Castigo” e “Os Irmãos Karamazov”, entre outros, constrói uma atmosfera em que cada personagem é visto do ponto de vista de sua verticalidade, daí a exploração do universo psicológico de cada ser e sua relação paralela com os demais. Rogójin ama Nastássia que ama Míchkin que ama Aglaia ou ama Nastássia ou, talvez, sobretudo, ama Rogójin.

O Príncipe é bom e sofre as desventuras de sua bondade ao voltar para sua terra natal a fim de receber a herança de sua família já toda falecida. São mais de seiscentas páginas de muito diálogo em que, em cada um, ao leitor é oferecida a concretização máxima da possibilidade de ganchos narrativos. Uma fala puxa a outra e os membros do discurso se prendem mutuamente só menos do que presos estão a si próprios. O livro demorou apenas quatro meses para ser escrito e Dostoiévski se baseou em Dom Quixote, de Cervantes, para criá-lo. E, se prestarmos a atenção nisso, vamos entender a função do príncipe frente aos demais personagens: lutar contra a autodestruição, sendo, ele próprio, uma arma destrutiva.

Eimuntas Nekrósius (Lituânia, 1952), o mais célebre diretor báltico, completa trinta anos de teatro internacional com a atualização do romance russo “O Idiota” para o palco. Eis duas informações importantes: a) O diretor não completa três décadas de dedicação ao teatro, mas aniversaria o conhecimento que o mundo tem a respeito do seu trabalho, premiadíssimo desde “Pirosmani, Pirosmani”, em 1981. b) O romance que completa 150 anos é a primeira aventura de Nekrosius (Honorary Worker or Art of the Lithuanian em 1997) no universo de Dostoiévski.

Nekrosius, que já esteve em outras edições do Porto Alegre em Cena com “Hamlet” (2001), “Otelo” (2006) e “Fausto” (2008), faz parte do grupo de Lev Dodine, Kristian Lupa e Anatolij Vassiliev, menos conhecidos a nível mundial, que trabalham dentro de um regime de permanente experimentação teatral. Seus nomes participam do todo que inclui Peter Brook, Eugenio Barba, Peter Stein, Peter Zadek, Patrice Chéreau, Klaus-Michael Grüber, Ingmar Bergman, Luca Ronconi, Bob Wilson, Georgio Barberio Corsetti, Stéphanne Braunhweig, Richard Jones e Tadeusz Kantor, encenadores que marcam a “contemporaneidade no teatro”. Ou seja, estamos falando em um diretor cujo trabalho traz um imediatismo que, por dialogar tão fortemente com a atualidade das relações, talvez só poderemos refletir de forma consistente sobre ele no futuro. Para o hoje, fica o dever de prestarmos a atenção no que ele tem a dizer e diz.

O teatro da Companhia Meno Fortas (“Fortaleza da Arte”, em português), fundada em 1997, vale destaque entre seus pares por usar meios técnicos simples em detrimento da tecnologia. Não é um teatro com vídeos e luzes, mas um teatro de atores e histórias. Como em Kantor, os dispositivos cênicos escolhidos e a originalidade conceitual está na linguagem expressiva, no gesto minimalista. Por outro lado, sua ascendência em Bob Wilson, está na forma como música e adereços tem sua combinação concebida. É um teatro de metáforas, com fôlego épico e imagens expressionistas. E a capital gaúcha lembra muito fortemente do bloco de gelo derretendo sobre Hamlet sobre quem também pingava, ao mesmo tempo, cera quente de velas.

“O Idiota” teve 115 ensaios em 6 meses de preparação. Tem 5 horas e meia de duração e 3 intervalos. Para o próprio Nekrosius, “o teatro é um antídoto contra a pressa insensata dos nossos tempos”, justificando a longa duração do espetáculo. O ator principal (Daumantas Ciunis) é recém formado pela escola de interpretação, o que é outro ponto interessante dessa produção que tem circulado pelo mundo sendo ovacionada pela crítica especializada. No 16º Porto Alegre em Cena, estará em cartaz no Theatro São Pedro, durante três concorridíssimas sessões.

*Texto escrito em setembro de 2009 por ocasião do 16º Porto Alegre em Cena

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