terça-feira, 19 de dezembro de 2017

Se meu apartamento falasse (RJ)

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Foto: divulgação


Marcos Pasquim, Malu Rodrigues e Marcelo Medici

Musical para dormir

O musical “Se meu apartamento falasse” é a primeira bomba da dupla Charles Moeller e Cláudio Botelho desde muito tempo. A peça, baseada em um premiado filme de Billy Wilder, por vários motivos, não se conecta com a contemporaneidade e depende demais do carisma do elenco sobretudo no Brasil, que praticamente desconhece as canções e a obra original. Ainda que a produção se esmere – como sempre – em oferecer um resultado estético de alta qualidade, a dificuldade do alcance dos objetivos parece cada vez mais inviável ao longo da sessão. Com música de Burt Bacharah, a montagem é protagonizada por Marcelo Medici, Malu Rodrigues e por Marcos Pasquim. No entanto, é Maria Clara Gueiros, em pequeníssima aparição, a única a realmente apresentar bom trabalho. Tendo estreado no último final de semana no Teatro Bradesco, na Barra da Tijuca, o espetáculo deverá ficar em cartaz ao longo de todo o verão.

O mofo da dramaturgia
O filme “The apartment”, em que o musical “Se meu apartamento falasse” se baseia, foi a produção de maior sucesso do ano de 1960-1961, concorrendo unicamente com os épicos religiosos “Ben-Hur” e “Spartacus” e com o suspense “Psicose”. Trata-se de uma comédia romântica dirigida por Billy Wilder, que no ano anterior havia lançado “Quanto mais quente melhor”, e protagonizada por Jack Lemon e por Shirley MacLaine. Todo o sucesso da história se pautava em uma tese de liberdade sexual que, na época, ganhava coro: jovens executivos (casados) de uma seguradora e garçonetes da cafeteria da mesma empresa tinham encontros íntimos no apartamento de um funcionário menor. Eis, porém, que Chuck Baxter se vê apaixonado pela amante do diretor e precisa escolher entre o sucesso na vida profissional ou na vida afetiva. Tendo estreado em 15 de junho de 1960, o filme concorreu ao Oscar do ano seguinte e recebeu nada menos que dez indicações e cinco estatuetas, incluindo Melhor direção, Melhor roteiro e Melhor filme.

A versão para musical chamada “Promises, promises” estreou em dezembro de 1968. Com roteiro de Neil Simon (que tinha assinado “Sweet Charity”) e músicas de Burt Bacharah, ela ficou mais de três anos em cartaz na Broadway e conseguiu sete indicações ao Tony e as estatuetas de Melhor ator a Jerry Orbach, que interpretava Chuck Baxter; e a de Melhor atriz coadjuvante a Mariah Murcer, que dava vida à Marge Macdougall (o papel que Maria Clara Gueiros agora tem no teatro). Em 2010, uma nova produção foi lançada com Sean Hayes e Kristin Chenoweth nos papeis principais. A temporada dela foi de sete meses e ganhou quatro indicações ao Tony, incluindo as estátuas de Melhor ator para Hayes e a de Melhor atriz coadjuvante para Katie Finneran, essa no papel de Marge. Com coreografias exultantes de Rob Ashford, a montagem acrescentava às músicas conhecidas do repertório americano um frescor juvenil que auxiliava a esconder o mofo da dramaturgia. Infelizmente, não se pode dizer que aconteceu o mesmo com a versão brasileira do texto.

Considerando os sucessos obtidos nas versões fílmica e da Broadway, talvez seja injusto responsabilizar unicamente a dramaturgia pelo insucesso da versão brasileira que aqui se analisa. No entanto, ao assistir ao espetáculo mantendo os olhos na pauta pública das discussões contemporâneas, facilmente se identificará a desconexão entre “Se meu apartamento falasse” e o hoje em nossa cidade. O tema de um grupo de altos executivos de uma seguradora – homens brancos e bem-sucedidos – felizes (e depois indignados) por causa de um apartamento de um contador aonde podem levar suas amantes já prenuncia que se trata de uma história de época. Isso não seria um problema se não resultasse na alegria de que esse tempo já passou. Mulheres em posições inferiores, enganadas orgulhosamente por seus machos (que não abandonam suas esposas) até uma protagonista que tenta o suicídio por causa disso podem ter sido um ótimo mote para uma comédia sobre as loucuras e o esplendor da juventude, mas hoje em dia é, na melhor das hipóteses, esquisita. Por mais que se torça pela vitória do personagem principal, essa posição não impede um ponto de vista sobre o todo ao qual ele está vinculado. E aí seria preciso que todos os outros signos que acompanham o texto na viabilização do espetáculo tivessem outra importância na defesa da obra. Aqui eles ajudam a prejudicá-la.

Problemas da encenação
Em termos da encenação assinada por Charles Möeller e por Claudio Botelho, “Se meu apartamento” se escreve em cena sem contrabalancear os problemas da dramaturgia. A montagem brasileira parte de escolhas de elenco pouco contributivas, apresenta uma concepção de cenário difícil e não traz nenhuma coreografia relevante. Em resumo, é um musical para dormir quando não para se irritar.

Se os oito atores que participam da produção são considerados bons comediantes, nenhum deles carrega midiaticamente o estigma de símbolo sexual, o que poderia auxiliar na construção do sentido do todo como uma comédia juvenil (Pasquim sustentou o título nos anos 90). O exato oposto, porém, se pode dizer do elenco feminino, o que desequilibra o discurso cênico vertiginosamente. Se as letras são a materialidade da literatura, o teatro se imprime na aparência dos atores. E, longe de aqui fazer considerações sobre a beleza dos intérpretes (o que é realmente muito relativo e, por isso, nada importante), quer-se analisar o modo como suas figuras participam da construção do todo. Há em geral um esforço na piada que, se ocorre, não deixa de revelar uma gama enorme de preconceitos.

O modo como a orquestra aparece ao longo de toda a encenação, fazendo parte de um cenário de época de Rogério Falcão, ajuda a pesar a peça, fazendo-a parecer muito clássica e quase nada coerente com as aventuras sexuais da dramaturgia. Vale lembrar que, nos anos 60, o público do filme de Billy Wilder e da primeira montagem de “Promises, promises” vestia essencialmente o mesmo guarda-roupa dos personagens e tinha em suas casas um mobiliário com a mesma estética da do palco. Toda a produção é tão elegante e bem cuidada como sempre é. E valem os elogios ao figurino de Marcelo Marques e à iluminação de Paulo Cesar Medeiros pela valorização visual de todo o contexto. A falta de sujeira, porém, nem leva para a magia, nem debocha da realidade.

Ainda observando a encenação, “Se meu apartamento falasse” muito bem poderia ser comparado a “Como vencer na vida sem fazer força”, que a dupla Möeller e Botelho dirigiu em 2013 e que, na Broadway, sucedeu “Promises, promises” no currículo do coreógrafo Rob Ashford. O que distancia ambos é o sexo: todo o calor de “Como vencer” era lucro para aquela narrativa fria, mas aqui, tem-se a exata contrapartida. Às coreografias de Alonso Barros e à direção musical de Marcelo Castro falta um ritmo que, sendo metáfora para o desejo dos personagens, substituiria a monotonia que sobre nessa cena.

Maria Clara Gueiros
Méritos do elenco coadjuvante, desméritos dos protagonistas
Sobre o trabalho do elenco, não há muitos aspectos positivos para serem mencionados, embora negativos tampouco. Maria Clara Gueiros (Marge Macdougall) e André Dias (Dr. Dreyfuss) exploram seus pequenos personagens em um visível esforço para torná-los marcantes através de construções bem farsescas e têm sucesso nesse intento. Patrick Amstalden (Karl Kubelik) e Julie (Enfermeira Kreplinski), com oportunidades ainda menores, também têm sucesso dentro das possibilidades que lhe a princípio lhe apareceram. Antônio Fragoso, Fernando Caruso, Renato Rabelo e Ruben Gabira apresentam uma abordagem cômica para a qual aparentemente foram escalados com resultados até surpreendentes dentro dos desafios da proposta e Marcos Pasquim, na figura de vilão, atinge mérito similar. No entanto, todos esses têm aparições pouco influentes na dramaturgia e suas contribuições, assim, mudam o quadro muito sutilmente.

São nos protagonistas Malu Rodrigues (Fran Kubelick) e Marcelo Medici (Chuck Baxter) que se encontram os maiores problemas. Não há drama em qualquer um deles, mas, ao contrário, uma linha reta sobre a qual nada além das palavras se vê. Comendo os fins das frases musicais e inexplicavelmente substituindo, apesar de sua belíssima voz, o canto pela prosódia na defesa das canções, em Rodrigues nesse espetáculo, não se vê curva dramática, mas as mesmas reações na dor e na alegria, na excitação e na sonolência. Pior do que isso, em Medici, não se encontra a única questão realmente relevante na dramaturgia: ou investir no sucesso profissional ajudando seu chefe ou no sucesso afetivo na conquista pela amada. Em lugar disso, desde sempre, o público já sabe qual é a decisão de seu Baxter, o que previne o espetáculo de algum maior interesse da audiência. A interpretação da canção final, que dá título para o todo, surge na estreia com desafinos brutais.

Burt Bacharah
Burt Bacharah, compositor americano de grande renome, já foi tema de espetáculo de Charles Möeller e de Claudio Botelho, há quinze anos, em produção chamada “Cristal Bacharah”. A obra do músico, da qual fazem parte canções como “I say a little prayer”, “A house is not a home”, “Raindrops keep fallin’ on my head”, merece ser revisitada. Aqui vale rir com Maria Clara Gueiros em sua cena mais aparentemente minúscula do que de fato seja.

*

Ficha técnica:

‘SE MEU APARTAMENTO FALASSE ...’

Um espetáculo de CHARLES MÖELLER & CLAUDIO BOTELHO

Texto de NEIL SIMON
Baseado no roteiro do filme THE APARTMENT de BILLY WILDER e I.A.L. DIAMOND - vencedor do oscar de melhor filme de 1961

Musica de BURT BACHARACH

Letras de HAL DAVID
Produzido originalmente da Broadway por DAVID MERRICK

Com MARCELO MEDICI, MALU RODRIGUES, MARCOS PASQUIM, MARIA CLARA GUEIROS, FERNANDO CARUSO, ANDRÉ DIAS, ANTONIO FRAGOSO, RENATO RABELO, RUBEN GABIRA, PATRICK AMSTALDEN, KAREN JUNQUEIRA, JULLIE, CARU TRUZZI, LOLA FANUCCHI,PATRICIA ATHAYDE, DUDA RAMOS, MARIANNA ALEXANDRE, MAYRA VERAS e YASMIN LIMA.

CHARLES MÖELLER
Direção

CLAUDIO BOTELHO
Versão Brasileira

MARCELO CASTRO
Direção Musical, Arranjos Adicionais e Regência

ALONSO BARROS
Coreografia

CHARLES MÖELLER
Direção de Movimento

ROGÉRIO FALCÃO
Cenário

MARCELO MARQUES
Figurinos

ADEMIR MORAES JR.
Design de Som

PAULO CESAR MEDEIROS
Iluminação

BETO CARRAMANHOS
Visagismo

TINA SALLES
Coordenação Artística

CARLA REIS
Produção Executiva

Patrocinio: Elevadores Atlas Schindler

Apoio Cultural: Hilton Barra Rio de Janeiro

Realização: M&B e OPUS PROMOÇÕES

O Jornal – The Rolling Stone (RJ)

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Foto: divulgação


Marcos Guian e Danilo Ferreira

Uma peça essencial

A excelente “O Jornal – The Rolling Stone” é a mais nova peça com a assinatura Lázaro Ramos e Kiko Mascarenhas em cartaz no Rio de Janeiro. Com texto do jovem inglês Chris Urch, ela narra uma dolorosa história de amor entre dois jovens condenados por serem homossexuais em uma sociedade conservadora. O drama, que de modo brilhante oferece pauta para discussões sobre preconceito racial, fundamentalismo religioso, colonialismo e machismo, está situado na contemporaneidade e tem seu lugar em Uganda, no centro leste africano. Trata-se de uma abordagem comovente que, para além dos seus méritos sociais, vale a pena de ser vista pelo brilhantismo da direção, das interpretações e do modo como se articulam todos os seus outros aspectos. É uma dos melhores espetáculos teatrais de 2017 na capital fluminense, ficando em cartaz até o fim do próximo mês de fevereiro no Teatro Poeira, em Botafogo.

Uma história que precisa ser contada
Em uma pequena comunidade religiosa anglicana, os irmãos Joe, Dembe e Wummie começam a reorganizar suas vidas depois do recente falecimento de seu pai, que lhes deixou uma vida financeira apertada. O quadro tem chances de melhorar a partir da influência política de Mama, uma vizinha do trio, que é tida como uma das pessoas mais respeitadas na congregação local. É graças a ela que Joe, o mais velho, ascende ao posto de Pastor. Ela acredita que a juventude de Joe, em meio a experiência de líderes religiosos de idade muito avançada, poderá representar arma eficaz contra as transgressões morais das novas gerações. Nessa luta ultraconservadora de valores considerados “santos”, um pequeno jornal comunitário passa a publicar nomes e fotos de pessoas que devem ser castigadas por seus atos "antibíblicos". Entre os condenados, está um amigo de infância de Dembe, que acaba sendo morto por seus vizinhos pelo exercício de sua homossexualidade.

Se assusta Dembe, a morte horrível de um amigo de infância não o impede de, em segredo, manter encontros íntimos com Sam, um jovem médico nascido na Irlanda do Norte, mas cuja mãe é ugandesa como o namorado. A princípio, nem um nem outro percebem a seriedade do contexto, mas pouco a pouco os atos cada vez mais violentos em prol de uma “limpeza religiosa” parecem se tornar gradativamente mais aceitos na comunidade e, por isso, mais perigosos para o casal. A Sam e principalmente a Dembe, caberão enfrentar os desafios juntos ou separados.

A dramaturgia ficcional de “O Jornal – The Rolling Stone” (“The Rolling Stone”) se refere a um pequeno jornal de uma localidade de Kampala, a capital de Uganda, que funcionou entre agosto e novembro de 2010. A publicação, assinada por três jovens universitários da Universidade Federal de Makerere, publicou nomes e fotos de centenas de homossexuais, exortando para que fossem linchados em uma ode ao preconceito. No país, onde praticamente nem luz elétrica tem, a prática da homossexualidade é considerada criminosa, estando o homossexual sujeito à prisão perpétua se for pego em flagrante a partir de lei federal de 2014. (Antes, estava-se sujeito à pena de morte.) O ativista David Kato (1964-2011) foi uma das cem pessoas listadas em outubro de 2010 pelo “The Rolling Stone”. Não há exatamente ligação direta entre a denúncia e o assassinato, e explora-se o fato de que o assassino Sidney Nsubuga Enoch, hoje condenado a trabalhos forçados, era um garoto de programa que não foi pago pela prestação de serviços sexuais. No entanto, desde o ponto de vista do Brasil, sabemos que homofobia e fundamentalismo religioso são males que andam de mão dadas, sim.

A bíblia, uma coleção de livros milenares que reúne quase a maior parte da humanidade em torno de um conjunto de valores culturais, foi durante muito tempo e ainda é em alguns países o único padrão legal para as normas civis. Uganda é um exemplo desses países. No livro, em toda a sua enorme extensão, há apenas três versículos diretamente relacionados à prática da homossexualidade. No Antigo Testamento (seguido por judeus, muçulmanos e cristãos), em Levítico (Lv 18,22), consta que é abominável um homem deitar-se com outro como se fosse mulher. No Novo Testamento (seguido somente pelos cristãos), na carta de São Paulo aos Romanos (Rm 1, 26-27), em uma lista de sinais de que o homem mergulhou na escuridão contra Deus, o autor cita entre eles o abandono do homem “do uso natural” da mulher, apaixonando-se por outro homem e fazendo entre si “coisas vergonhosas”. E, na primeira carta do mesmo São Paulo aos Coríntios (1Cor 6, 9-10), entre uma lista de pessoas que não herdarão o Reino de Deus, consta os efeminados. Deixando de lado todas as inúmeras questões da ordem da tradução de um livro que se arrastou copiado a mão por entre quatorze e dezessete séculos até ser impresso pela primeira vez, e, a partir daí, traduzido novamente outras incontáveis vezes para idiomas muito diferentes ao redor do mundo; e, deixando de lado também que apenas três versículos, em um universo de aproximadamente trinta e cinco mil, significa nada, pode-se dizer que a relação entre fundamentalismo religioso e homofobia é, pelo menos, ignorância. Nada aparece sobre o tema em nenhum dos quatro livros do Evangelho e, de maneira muito mais contundente, aparecem prescrições contra o adultério, o assassinato, a avareza ou a falta de fé, por exemplo. Certo, pois, é o fato de que o estímulo ao regramento sexual, na valorização do comportamento heteronormativo, antes de estar baseado em uma defesa da moral bíblica, tem a ver com jogo político. Menos numerosamente voltados à constituição de família, não-heterossexuais fazem da liberdade uma poderosa arma em benefício do próprio sucesso intelectual e financeiro. E é desse sucesso que todos os homofóbicos têm medo: não tem nada a ver com a salvação.

O elenco em cena

“O Jornal – The Rolling Stone”, belíssima tradução de Diego Teza para a nona obra dramatúrgica do jovem Chris Urch, é uma das primeiras montagens internacionais do texto. Os aspectos estéticos da dramaturgia revelam excelente ritmo e elogiável cuidado com as palavras além de uma destacável construção de personagens e desenho da narrativa. Comparado no mundo ao clássico “As bruxas de Salém”, do americano Arthur Miller (1915-2005), mas também fácil de ser associado a “O santo inquérito”, do brasileiro Dias Gomes (1922-1999), eis aqui uma história que precisa ser contada.

No todo e em cada parte, grandes trabalhos de direção e de interpretação
A direção compartilhada de Kiko Mascarenhas e de Lázaro Ramos, com assistência de Ana Luiza Folly, tem o mérito de instaurar na abordagem um quê de artístico que nutre o drama positivamente. A musicalidade das palavras, o movimento dos atores no espaço, o modo como as cenas estão articuladas, o figurino e a trilha sonora, entre outros elementos em conjunto, inauguram uma atmosfera mítica. O Brasil pouco conhece da África como um todo e sabe menos ainda de Uganda em específico. E Mascarenhas e Lázaro não fazem desse desconhecimento um entrave para a fruição da peça, mas parecem associar na encenação o particular e o universal, fazendo das questões locais metáfora para uma triste narrativa que poderia acontecer (e acontece) em qualquer lugar do mundo. De modo positivo, eles aproveitam para tematizar o preconceito não como uma característica de um terminado tempo ou grupo social, mas como uma mazela que precisa ser erradicada esteja onde estiver.

A história, porém, não é ainda marcada em cena apenas por esse tipo de investimento estético. “O Jornal – The Rolling Stone” permanece fazendo conexão com a verdade além da cena pelo modo como os atores se relacionam com o público. Há olhares diretos, há aproximações físicas e todo um conjunto de silêncios por meio dos quais as catarses conseguem se realizar. Todos os intérpretes mobilizam um conjunto de qualidades artísticas que aproximam seus corpos discursivos da realidade: não se trata de uma tragédia (força contra o qual não poderá o homem lutar), mas de um drama (realidade que precisa ser alterada).

Todo o elenco apresenta excelente trabalho mesmo individualmente. Danilo Ferreira (Dembe), Indira Nascimento (Wummie) e André Luiz Miranda (Joe) dão vida a um trio de irmãos tão próximos no discurso, como também nas expressões, nos movimentos dos corpos, nas intensidades das emoções. Heloisa Jorge (Mama) no falar é tão sonora quanto silenciosa é Marcela Gobatti (Naome), sua filha, ambas explodindo nos medos que as atemoriza nos quadros onde aparecem suas personagens. Marcos Guian (Sam), trazendo uma dose de leveza inicial, é a única figura estrangeira do coletivo, essa que acaba submersa no desenrolar da trama, o que é justamente a parte mais importante da história. Os seis intérpretes têm pouca experiência em teatro, mas isso só se descobre lendo sobre eles além da narrativa. Quem os vê no palco alcança apenas felizes méritos aos quais se deve aplaudir.

Uma peça que precisa ser vista
“O Jornal – The Rolling Stone” é, além de tudo, uma peça que vale a pena ser vista pelo preciosismo na contribuição dos demais elementos estéticos. O desenho de luz de Paulo Cesar Medeiros recorta os personagens no espaço, criando quadros de íntima beleza no oferecimento de pontos de vista tocantes. Os figurinos de Tereza Nabuco colaboram com essa composição, explorando desde os níveis mais superficiais da África Mítica até elementos de uma cultura mais urbana e globalizada. A trilha sonora de Wladimir Pinheiro age no mesmo sentido, começando pelo hino nacional da África do Sul, que é também uma canção-tema para o continente em geral, até ir a melodias mais originais e igualmente belas.

Por causa do tema, mas sobretudo pelo modo como o debate se estabelece no campo estético, “O Jornal – The Rolling Stone” merece lugar de destaque na programação teatral desde fim de primavera e início de verão. Aplausos!

*

Ficha Técnica
Texto de Chris Urch
Tradução de Diego Teza
Direção de Kiko Mascarenhas
Codireção de Lázaro Ramos
Com André Luiz Miranda (Joe), Danilo Ferreira (Dembe), Heloísa Jorge (Mama), Indira Nascimento (Wummie), Marcella Gobatti (Naome) e Marcos Guian (Sam)
Assistência de Direção de Ana Luiza Folly
Direção de Movimento de José Carlos Arandiba (Zebrinha)
Preparação Vocal de Edi Montecci
Realização e Produtores Associados Lázaro Ramos e Kiko Mascarenhas
Produção KM ProCult e BR Produtora
Direção de Produção Viviane Procópio e Radamés Bruno
Produção Executiva e Administração Viviane Procópio
Assistência de Administração Jandy Vieira
Equipe de Produção Igor Dib, Milena Garcia e Diego Teza
Iluminação Paulo César Medeiros
Assistência de Iluminação Júlio Medeiros | Montagem de Luz Boy Jorge, Luíza Ventura, Fabiano Gomes, Vilmar Ollos eRodrigo Emanuel
Operação de Luz Walace Furtado
Trilha Sonora Original Wladimir Pinheiro
Operação de Som Marcito Vianna
Estúdio de Gravação "DRS" e "FD"
Cantores Flavia Santana, Lu Vieira, Renato Ribone, Wladimir Pinheiro
Cenografia Mauro Vicente Ferreira
Assistência de Cenografia Rogério Chieza
Construção de Cenário Em Família Cenografia e Eventos
Adereços Mauro Vicente Ferreira
Figurinos Tereza Nabuco
Assistência de Figurinos Júlia Custódio
Costureiras Adélia Andrade e Severina da Silva Viana (Mainha)
Calçados Jailson Marcos
Assessoria de Imprensa de Antonio Trigo
Comunicação Web Urgh
Arte e Lay Out do Projeto Léo Dória / BR Produtora
Projeto Gráfico Novo Traço
Fotos de Estúdio Jorge Bispo

sábado, 9 de dezembro de 2017

[nome do espetáculo] (RJ)

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Foto: divulgação


Carol Berres, Junio Duarte, Caio Scot e Ingrid Klug

Lindas vozes em um dos melhores musicais do ano no Rio

O excelente musical “[nome do espetáculo]”, com direção de Tauã Delmiro e com direção musical de Gustavo Tibi, é a primeira versão brasileira do norte-americano “[title of show]”, de Jeff Bowen e de Hunter Bell, que foi uma sensação em Nova Iorque em 2008. O elenco dessa montagem, formado por Caio Scot, Junio Duarte, Ingrid Klug e por Carol Berres, com destaque mais significativo para essa última, apresenta, entre outros méritos, um belíssimo trabalho vocal. Sozinhos ou em conjunto, eles cantam tão lindamente que se sai do teatro com as músicas desconhecidas no ouvido além do coração cheio e de uma forte crença na humanidade. São para essas coisas, afinal, que um musical serve, não? Tendo cumprido uma primeira temporada no Solar de Botafogo, na zona sul do Rio de Janeiro, entre 4 de novembro e 4 de dezembro, espera-se que a produção retorne em cartaz e viaje pelo país com sua enorme beleza.

Dramaturgia brilhante
O texto, que foi indicado ao Tony Award de 2008, é nada menos que brilhante. Isso porque ele catalisa, na sua estrutura fundamental enquanto literatura, as marcas que vinculam a sua dramaturgia à sua própria tradução para o palco. Sabemos que uma das diferenças mais brutais entre a arte literária e o teatro é o seu vínculo com o presente. Enquanto um texto dramático, um romance, um poema duram milênios após a sua escritura e as relações da obra com o seu autor são muito pueris, o texto cênico só dura o tempo da apresentação e, a menos que se disfarce muito, a forma do ator é a base para a forma do personagem. “[nome do espetáculo]”, já no título, deixa claro o espaço para o agora. Mais do que o nome da peça, é um buraco onde se pode encaixar qualquer nome. É uma espécie de presença-ausência, sendo presente porque existe, sendo ausência porque não descredibiliza a interação.

Na narrativa, a iminência de um Festival de Teatro mobiliza um jovem compositor chamado Jeff (uma óbvia referência ao compositor Jeff Hunter) e um jovem dramaturgo chamado Hunter (alusão a Hunter Bell) a escreverem uma peça original para participar do evento. Como uma medida de proteção contra o bloqueio criativo, a dupla investe no registro de tudo o que lhes vem à mente, de tudo lhes acontece. Sendo os dois personagens figuras discursivas, existentes apenas como parte do acontecimento teatral e por motivação das ações dos atores em consideração ao público que lhes assiste no ato do espetáculo, de repente, o texto que Jeff e Hunter criam passa a ser, ao mesmo tempo, a dramaturgia que eles elaboram, a peça que eles apresentam, mas também o elo que os une aos atores que lhe dão aparência e ao público que lhes frui. Nos anos 70, a grande pesquisadora francesa Anne Übersfeld (1918-2010) concluiu que o signo teatral era triádico porque, em um só momento, fazia referência a si mesmo, ao contexto onde ele surge e ao além do palco aonde ele dirige. Aqui, desde o ponto de vista da dramaturgia, há um quarto nível: em “[nome do espetáculo]”, o signo teatral se refere à natureza da sua constituição.

Existe uma clara ligação entre “[nome do espetáculo]” e “Seis personagens à procura de um autor”, do italiano Luigi Pirandello (1867-1936), pois em ambos o texto teatral em específico fala sobre a materialidade do texto teatral em geral, sendo os dois exemplos de metateatro. Os autores Jeff Bowen e Hunter Bell, no entanto, vão além. Nesse musical, eles não só tornam o teatro um dos principais assuntos de sua dramaturgia, como cavam buracos para a encenação entre as palavras escritas no papel. Nesses gaps, será onde o espetáculo vai se enfiar e tornar as palavras em cenas. “[title of show]” foi desenvolvido para a primeira edição do New York Musical Theater Festival, que aconteceu em setembro de 2004. Além de Bowen e de Hunter, as atrizes Heidi Blickensataff e Susan Blackwell, e o pianista Larry Pressgrove, estavam em cena e consequentemente viraram personagens. Dois anos depois, quando  a produção ganhou uma pauta na Off-Broadway, a dramaturgia mudou para incluir os acontecimentos do Festival. Em 2008, na Broadway, houve novas mudanças. Mudar, nesse sentido, não é um mero efeito de aproximação entre o palco e a plateia. É a própria ideologia dessa dramaturgia que, aparentemente, se reconhece como somente válida no aqui e no agora da sua viabilização em cena seja em qual país ou em qual época for.

A versão brasileira, assinada por Luisa Viana, pelos atores Caio Scot, Carol Berres e Junio Duarte e pelo diretor Tauã Delmiro, mantém os nomes dos personagens de cena como Jeff, Hunter, Heidi e Susan, mas modificam quase todas as inúmeras referências. Surgem, apenas para dar alguns exemplos, a Lapa, o Aterro do Flamengo, o Theatro Net Rio. Aparecem Mirna Rubim, Charles Möeller e Cláudio Botelho. São citados vários musicais produzidos no Brasil recentemente, desde “Barbaridade” até “60! Década de Arromba – Doc. Musical”, passando por “Rent” e “Wicked”. Toda a estrutura, apoiada sobre o universo das produções de teatro musical no Brasil, a princípio, se se afastam de quem não está inserido nesse mundo, logo em seguida, cedem seu lugar de importância para algo muito mais nobre: o desejo humano natural de ser reconhecido.

Embora constituído de um só ato de cerca de noventa minutos, “[nome do espetáculo]” pode ser dividido em duas partes para fins de análise. A primeira diz respeito à caminhada dos quatro personagens até uma primeira temporada de sucesso em um grande teatro de sua cidade, ou seja, a conquista do topo. Na segunda, trata-se da manutenção do lugar conquistado. A partir dessa observação, nota-se que, de início, o problema do drama é a realização de um sonho. Mas esse problema se transforma: o sonho muda de lugar, o limite fica mais longe. E é aí que os personagens realmente aparecem. Nesse momento, vem à superfície o humano – a ambição, a frustração, o medo, a ira, a responsabilidade para com a memória da infância. E, apesar de todas as marcas do aqui e do agora, “[nome do espetáculo]” se torna tão atemporal quanto qualquer outro clássico. Um texto brilhante.

Excelente direção de Gustavo Tibi
Quanto à montagem brasileira, “[nome do espetáculo]” mantém o mesmo ideário estético do seu original “[title of show]”. Estão nessa versão o clima de “ação entre amigos”, capaz de aproximar o espetáculo do público; um excelente trabalho musical, que dá conta de lindas partituras difíceis; e uma estética interpretativa carismática porque oposta a construções de personagem muito complexas. Com mão firme, a direção de Tauã Delmiro não revela a sua inexperiência na função, mas, ao contrário, exorta um enorme talento em criar quadros cheios de ironia, graça e com excelente uso do tempo. Vale considerar ainda a materialização do conceito: uma crítica bem humorada à lógica das produções de musical aliada a um tom tão realista quanto o gênero, em sua melhor potencialidade, permite.

Em mais alto destaque na produção, está a direção musical de Gustavo Tibi, essa contemplável pela indescritível beleza das vozes dos quatro intérpretes em conjunto, mas também em cada parte. O espetáculo, inteiramente desconhecido no Brasil (e também não muito famoso nem mesmo em seu país de origem), por isso, consegue sugerir suas melodias à prisão dos ouvidos mais desavisados. Aplausos à direção vocal de Rafael Villar e ao designer de som Gabriel D’angelo.

O cenário de Cris de Lamare, atendendo ao texto, é composto por quatro cadeiras, cada uma de forma e cor diferente, talvez se manifestando em favor ao modo como seres diferentes constituem uma harmonia na vida e nos musicais. Os objetos sustentam o clima simples e intimista de um musical que nasce e sobrevive em paralelo às grandes produções com ambientes que sobem e descem das coxias. O figurino assinado pelo diretor age no mesmo sentido positivamente. A iluminação de Paulo César Medeiros aumentou o espaço do palco do Solar de Botafogo, aproveitando-o em sua máxima potencialidade de maneira muito meritosa.


A potência e a beleza da voz de Carol Berres
O conjunto das interpretações é bastante positivo. Caio Scot (Hunter) e Junio Duarte (Jeff) protagonizam uma dupla de amigos muito carismática. Em torno de seus personagens, giram oposições e similaridades que, ora os aproximam, ora os diferenciam, mas sempre os mantêm próximos das pessoas que conhecemos no além da narrativa. Os intérpretes parecem fugir de estereótipos, investindo nas chances que suas figuras terão ao longo da peça de ganhar cores mais intensas. Scot é mais privilegiado do que Duarte, porque o personagem do primeiro é o único da narrativa que tem uma curva dramática relativamente acentuada. No entanto, vale dizer que ambos aproveitam bastante bem as oportunidade que têm. O elenco é composto também por Ingrid Klug, que interpreta Susan, a figura cômica do grupo. Com excelente timing de comédia, a atriz garante os momentos mais engraçados da sessão além de oferecer números musicais bastante meritosos. Carol Berres, com uma voz potentíssima e um excelente trabalho de corpo, é quem melhor se destaca. Trata-se de um fenômeno no cenário do teatro musical brasileiro sob a qual devem-se recair as mais criteriosas atenções. No todo, eis um excelente conjunto.

“[nome do espetáculo]”, argumentando em torno de si e sobre si enquanto existe e se apresenta, é uma gratíssima surpresa entre as oportunidades teatrais de 2017. Há de ser em 2018 também a partir dos enormes talento e técnica que seus realizadores trazem à programação, mas principalmente pela interessada resposta de curadores e, por fim e mais importante, do público afeito a bons musicais. 

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Ficha Técnica:
TEXTO ORIGINAL: Hunter Bell
LETRAS E MÚSICAS ORIGINAIS: Jeff Bowen
VERSÃO BRASILEIRA (TEXTO E MÚSICAS): Caio Scot, Carol Berres, Junio Duarte, Luisa Vianna e Tauã Delmiro
DIREÇÃO ARTÍSTICA: Tauã Delmiro
ELENCO: Caio Scot, Carol Berres, Gustavo Tibi, Ingrid Klug e Junio Duarte
STAND-IN: Catherine Henriques
CENÁRIO: Cris de Lamare
ASSISTENTES DE CENOGRAFIA E ADEREÇOS: Fernanda Correia e Silas Pinto
FIGURINO: Tauã Delmiro
ILUMINAÇÃO: Paulo César Medeiros
DIREÇÃO MUSICAL: Gustavo Tibi
DIREÇÃO VOCAL: Rafael Villar
DESIGNER DE SOM: Gabriel D’Angelo
OPERADOR DE SOM: Cidinho Rodrigues e Erick Lima
OPERADOR DE LUZ: Dans Souza
MICROFONISTA: Manuela Hashimoto
DESIGNER GRÁFICO: Thiago Fontin
FOTOS DE DIVULGAÇÃO: Bárbara Lopes
ASSISTENTE DE PRODUÇÃO: Manuela Hashimoto
DIREÇÃO DE PRODUÇÃO: Fernanda Alencar
ASSESSORIA DE IMPRENSA: Julyana Caldas – JC Assessoria de Imprensa
IDEALIZAÇÃO: Caio Scot e Junio Duarte
REALIZAÇÃO: Caju Produções