quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

O sósia (RJ)

Daniel Archangelo e Ricardo Ventura em cena
Foto: divulgação

Desafios não vencidos

"O sósia", uma das oito peças radiofônicas do suíco Friedrich Dürrenmatt (1921-1990) escritas entre 1946 e 1956, esteve em cartaz no Teatro Sesc Café Pequeno. "Der Doppelgänger", o titulo original, foi a única peça do famoso autor que não foi levada sem modificações ao palco, porque o próprio autor sabia que seu eixo dependia do mistério do não visto que só o rádio poderia proporcionar. Encenada pelo grupo Tentáculos Espetáculos, dirigida por Guilherme Delegado, a produção consistiu em uma enfadonha tentativa museológica de participar do Ano da Alemanha no Brasil com um texto cuja importância nem seu próprio autor lhe conferiu. Felizmente já saiu de cartaz.

Um escritor procura um diretor de peças radiofônicas para mostrar-lhe o mote de um roteiro. Trata-se do seguinte: um homem culpado por um crime chega para outro, dizendo-lhe que ele está preso. O segundo é inocente, mas irá preso mesmo assim, inclusive sabendo que o primeiro é quem é o culpado. Um é sósia do outro e, na narrativa cênica, os personagens do escritor e do diretor se confundem com os personagens da história que a dupla desenvolve. A atmosfera, assim, da história contada pelo escritor para o autor vai se tornando cada vez mais densa, próxima do universo kafkiano de "O processo", ou de "Dr. Jekyll e Mr. Hyde", de Stevenson, por exemplo, cheia de marcas que fazem dessa uma narrativa boa de ser contada dentro do expressionismo. Infelizmente, Delgado não deu atenção a isso, isto é, não possibilitou marcas que fizessem essa intenção vir à tona. Ao contrário, no release, consta uma confusão conceitual constragedora. Eis um trecho:

""O Sósia faz parte de um conjunto de três espetáculos que o grupo está realizando para abordar a questão do duplo. Começamos em 2010 com "Nariz!", de Gogol. A ideia da cópia de alguém, que de alguma forma desafia e coloca em questão a própria pessoa, é um tema bastante frequente na literatura desde o século XIX. E sempre esteve profundamente associado ao gênero do fantástico. Além disso, a construção de um duplo em cena requer a criação de um jogo cênico bastante singular e inventivo, já que não é algo que possa ser representado de forma ‘realista’, pontua Guilherme Delgado, diretor do espetáculo."

Realismo e Fantástico não são gêneros conflitantes, mas o segundo é um subtipo do primeiro. Existem três tipos de realismo: o psicológico, o naturalismo e o fantástico. No terceiro, o real é construído, como nos demais, com fortes marcas de verossimilhança, mas essas articulações servem para amparar acontecimentos estranhos para o expectador/o leitor que frui a obra, pois os personagens já estão com eles, de certa forma, acostumados. Para ser didático, Dona Redonda (Dias Gomes) explode e o fato assusta os moradores de Saramandaia, mas o acontecimento não é investigado e logo dá lugar para outros fatos de mesma importância. Um grupo de 50 meninas vem passar as férias de verão no casarão dos Buendía (Gabriel Garcia Marquez) e, por isso, compra-se 50 penicos que, durante décadas, ficarão guardados num quarto de penicos. Ou seja, o aparecimento de um sósia, uma prisão sem julgamento, a vontade de um preso de provar sua inocência não tem muito para alimentar o (realismo) fantástico, mas poderia ter, sim, bastante material para construir o expressionismo. O cinema noir, de que em outro trecho também fala o release, também lida bem com o expressionismo, porque, dentro da sétima arte, consiste em histórias policiais contadas em locações internas, em preto e branco e com contrastes bem marcantes. A fotografia noir distorce as formas, fazendo no cinema o que Munch fez nas artes visuais: representando os personagens não a partir da forma como o mundo os vê, mas sugerindo ao fruente um ponto de vista emocional e intelectualmente corrompido de um dos personagens (o labirinto jurídico de Kafka, o monstro criado por Stevenson). No caso da peça "O sósia", o espectador vê a história através do diretor radiofônico que também vai interpretar o preso.


Dürrenmatt estava certo. Os dois atores precisariam ser gêmeos idênticos para o problema da semelhança entre os dois estar resolvido e darmos mais espaço para nos dedicar a outros elementos da estrutura. O ouvinte do rádio participa mais da narrativa porque preenche com formas tudo aquilo que é só som. O jogo é assim diferente, pois o importante é o como essa relação de voz e o que ela representa se estabelece. O teatro tem outros desafios, exige-se mais de uma história e muito mais da forma como ela é contada em cena. Ricardo Ventura (o escritor) e Daniel Archangelo (o diretor) variam pouco a apresentação dos seus personagens. Archangelo faz uma boa crítica, procurando a ironia na crítica à história que ele ouve, construindo os melhores momentos da encenação. No entanto, Ventura varia unicamente em altura do volume da voz, sem exploração de diferentes entonações, intenções, sem pausas inteligentes, sem manutenção da tensão. Os movimentos, os gestos, os acontecimentos, na encenação de Guilherme Delgado, é linear, sem vida, monótona. A aparição de Aline França nua, ela também assina a assistência de direção, não chega perto do que a imaginação de uma mulher nua por um ouvinte na Europa do pós-guerra, mesmo que seu corpo seja bonito. A questão é conceitual: o que se imagina é sempre muito mais belo que o que se vê.

Atualizar (no sentido de verter) para o teatro de hoje uma peça escrita para o rádio no pós-guerra exige desafios que modificam o eixo da narrativa. Esses desafios não foram vencidos pelo grupo Tentáculos Espetáculos.

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Ficha técnica
Texto: Friedrich Dürrenmatt
Tradução: Rogério Silva Assis
Direção e Concepção Visual: Guilherme Delgado
Assistente de direção: Aline França
Elenco: Aline França, Daniel Archangelo e Ricardo Ventura
Cenografia: Carlos Augusto Campos
Iluminação: Luiz Paulo Barreto
Programação visual: Not.a.pipe
Fotografias: Leo Coura
Direção de produção: Guilherme Delgado
Produção Executiva: Daniel Archangelo
Realização: Tentáculos Espetáculos

domingo, 15 de dezembro de 2013

Vampiras lésbicas de Sodoma (RJ)

Thiago Chagas apresenta uma versão sua do maravilhoso
tom de humor de Paulo Gustavo. Imperdível!
Foto: Arthur Seixas

Para gargalhar de si próprio

“Vampiras lésbicas de Sodoma” é mais uma montagem teatral carioca que tenta ressuscitar o saudoso teatro de besteirol enterrado no fim dos anos noventa infelizmente. (Para citar apenas duas outras montagens, “O médico e o monstro” e “Randevu do avesso” tiveram o mesmo objetivo.) Fincando-se mais solidamente nessa zona de desconforto entre o império do politicamente correto e a anarquia, temos aqui Marya Bravo e Thiago Chagas em excelentes trabalhos de interpretação. A primeira traz o peso da sua potente e afinada voz em números herméticos e nobremente frios. O segundo, com o humor bastante específico e muito meritoso de Paulo Gustavo, tem o timing perfeito e disponibiliza todo o carisma de que a peça precisa. Em cena, no palco do Teatro Municipal Café Pequeno, marcando a primeira direção de Jonas Klabin, temos aqui duas grandes forças opostas a se duelarem, gerando a gargalhada gostosa que uma boa comédia pode oferecer.

Prestes a fazer 30 anos, o texto de Charles Busch, como toda boa dramaturgia, é atemporal. Depende ele apenas do como é feito. Não há jeito certo e jeito errado de fazer teatro, mas há, sim, formas mais confortáveis de viabilizar um texto para a encenação teatral de jeito a possibilitar mais sucesso. No caso do besteirol, que os americanos chamam de “teatro do ridículo”, vale a tensão que o público sente diante da tosquice que o espetáculo apresenta. É uma contradição, pois, nesse tipo de espetáculo, o certo é justamente o errado e o errado é positivamente o certo. Quando os atores erram o texto, quando o cenário cai, quando o músico desafina, quando o bailarino erra o passo e quando tudo isso acontece deixando claro, em primeiro lugar, que é um erro e que isso não foi previsto, então, temos um enorme acerto. Como nos tempos do bom “Sai de Baixo” ou, mais antigo, de “Os Trapalhões”, os erros que acontecem em cena são os grandes momentos. Para acontecerem os erros, é vital termos um arranjo complicado, pesado, logarítmico para haver o contraponto. Nesse caso, até quando o acerto acontecer, será algo a se aplaudir. Diante disso, partamos para a análise de “Vampiras lésbicas de Sodoma”.

Milênios atrás, uma “monstra” chamada Sucubo (Marya Bravo) recolhia jovens virgens vencedoras de um concurso cujo prêmio era a morte. A peça começa quando uma Menina Virgem (Thiago Chagas) ganha essa sentença, mas consegue um outro destino. Ao ser mordida pela criatura, morde ela também e, por isso, não morre, mas torna-se uma igual, ganhando a eternidade. Com o passar dos séculos, assim, La Condessa Legerdemain (Bravo) e Madalaine Astarté (Chagas) atravessam a existência à cata de sangue novo, em vários momentos, duelando-se entre si por suas vítimas. E suas aventuras são a força que alimenta a narrativa bem dirigida por Jonas Klabin. Marya Bravo tem números musicais melodramáticos e, por isso, bastante cômicos. Thiago Chagas tem números cômicos e, por isso, bastante ácidos. A alternância, assim, é equilibrada e fluída. O espectador acompanha os quadros em busca de saber como tudo vai terminar e, enquanto isso, se diverte.

Nas interpretações, destacam-se o olhar arregalado com que Bravo viabiliza a sua personagem, deixando ver a imagem terrível que a personagem quer transmitir às suas vítimas e aos seus algozes. Também, o tom debochado com que Chagas “se diverte” com sua personagem, sobretudo quando se relaciona com o público. Também é ótima a participação pequena de Davi Guilherme como a “fofoqueira” Olga Fanhota, mas também como o pianista, que acompanha ao vivo todas as canções interpretadas durante a peça. Todas essas avaliações se justificam na forma coesa com que Klabin dá a ver essa estrutura cênica, onde um elemento bem se relaciona com o outro. 

A profusão imensa de detalhes na direção de arte de Marta Reis garante a atmosfera gótica, soturna, difícil que o espetáculo necessita para acontecer com sucesso. Dentro desse setor, estão a iluminação de Luiz Paulo Nenen, a direção musical de Davi Guilherme, o visagismo de Daniel Reggio, as coreografias de Alan Rezende, tudo isso supervisionado por César Augusto, que garante a bizarrice dos cachos dos cabelos loiros de Chagas na Antiguidade, as inserções nos diálogos de informações que tiram do eixo o tempo e as épocas, a sensualidade exposta dos corpos bem torneados de André Vieira e de Thadeu Matos, na articulação de tudo em tom positivamente grotesco.

O teatro besteirol tem o mérito de alargar a visão sobre a hipocrisia da sociedade burguesa (a classe média) a ponto de discuti-la, debochar dela, expor suas feridas. Ao rir, o público ri de si próprio, esse espectador da zona sul carioca e, portanto, parte da sociedade que a peça mesmo, em si, critica. Diferente da montagem original, essa produção tem ainda o mérito de agregar canções internacionais traduzidas para o português, como “A balada da dependência sexual”, de Brecht e de Weill; “Petronella tira já”, de Hollander e de Tiger; e “Masculino-Feminino”, de Spoliansky e Schiffer, cuja letra incluo abaixo. Maravilhoso!

Maskulino - Feminino Põe um masculino com um feminino E claro vão se apaixonar. Logo masculino diz ao feminino Que são um casal tão singular. Tu és feminino quase masculino E eu sou masculino quase feminino. Este masculino e este feminino O mundo irão modernizar. Você será masculino Se permites eu serei seu feminino. E todos vão estranhar E vão descriminar, mas vai passar. E o feminino sai de masculino Terno e calça de xadrez E o masculino sai de feminino Numa saia que ele mesmo fez E o feminino tem de masculino Que o masculino tem de feminino Mas o masculino e o feminino Não trepavam nem de vez em vez Os dois se achavam Muito masculino ou muito feminino Mas nada vai impedir Quem quer se unir E resistir Já que o feminino de um feminino Nem sempre pode se esconder Com o masculino de um masculino A coisa pode até endurecer E quando másculo do feminino Pega o afeminado masculino Nasceu um lindo de um mascu-feminino Hermafrodita, quer dizer O filho é assexuado Será abençoado ou será castrado E masculino e feminino Tem mais um menino prá niná.

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FICHA TÉCNICA
Texto: Charles Busch
Direção e Versão Brasileira: Jonas Klabin
Direção Musical e Piano: Davi Guilhermme
Supervisão Geral: Cesar Augusto
Protagonista: Marya Bravo
Ator Convidado: Thiago Chagas
Com: Davi Guilhermme, Thadeu Matos, Thuany Parente, Thiago Páschoa e André Vieira
Direção de arte: Marta Reis
Coreografia: Alan Rezende
Iluminação: Luiz Paulo Nenen
Design de Som e Sonoplastia: Gabriel D’Angelo
Visagismo: Daniel Reggio
Programação Visual: Tânia Grillo
Fotografia Artística: Arthur Seixas
Assistente de coreografia: Silas Campos
Alta Costura: Ana Amaro
Assessoria de Imprensa: Daniella Cavalcanti
Direção de Palco: Thiago Páschoa
Assistente de Produção: Natalie Kneit
Operador de Luz: Genilson Barbosa
Operador de Som: Guilherme Coelho Gomes
Coordenação Administrativa e Financeira: Cristiane Cavalcante
Contabilidade: Paulo Cezar Mendes
Assessoria Jurídica: Dionísio, Hollanda e Bodas Sociedade de Advogados

A versão para “A Balada da Dependência Sexual” foi realizada por Claudio Botelho

Produção: André Vieira e Jonas Klabin
Coprodução: Gávea Filmes
Realização: Treco Produções

sábado, 14 de dezembro de 2013

Elis, a musical (RJ)

Laila Garin é "Elis"
Foto: divulgação

Toda a responsabilidade e o mérito de Laila Garin

Duas coisas precisam ser ditas sobre “Elis, a musical”. A primeira delas é que Laila Garin merece todos os troféus de interpretação do ano, porque, de fato, ela está em trabalho mais do que excelente nessa produção. A segunda é que, apesar das boas participações de Ícaro Silva, de Peter Boos e de Claudio Lins, e da fluída narrativa de Nelson Motta e de Patrícia Andrade, pouco além da potência de Garin segura a atenção do público que tem lotado o Teatro Oi Casa Grande, no Leblon. O primeiro trabalho de Dennis Carvalho, que surge agora como diretor teatral, expressa um conhecimento nada mais que rudimentar sobre linguagem teatral nessa encenação. Dentro da direção de arte de Marcos Flaksman, os figurinos são apenas ilustrativos e o cenário é composto de andaimes, perdendo a oportunidade de dizer muito mais em termos de conteúdo e de beleza. O único bom momento na coreografia de Alonso Barros é em “Falso Brilhante”. Delia Fischer assina a direção musical com pouquíssimos desafios e consegue bom resultado, o que não chega a ser um valor. Em suma, ao sair do teatro, a impressão que se tem é que um show de Laila Garin faria exatamente o mesmo sucesso com bem menos pretensões. 

A maior marca do mérito de Garin está em evidenciar que o relevante de Elis Regina não são seus agudos, mas seus graves. São neles que a “Pimentinha” deixava escorregar suas emoções, sua presença nas palavras dos compositores das canções que ela interpretava. São os tons graves que mudaram ao longo de sua carreira desde os primeiros discos em Porto Alegre até o final. E, porque opera com força, grande resistência e muita intensidade nesse nível, a interpretação da maior cantora brasileira atinge um grau de profundidade que, até então, ninguém tinha alcançado. O movimento com os braços, o sorriso aberto, a mania enfrentativa de sentar sobre os pés em público, traços superficiais de sua personalidade, também estão presentes, mas aqui são apenas acessórios. No palco de “Elis, a musical”, está visto que a forma intensa como Elis se entregava às canções dos outros era justamente o que lhe dava a realeza: humildemente, ela emprestava o seu talento e a sua emoção a diversos compositores brasileiros novos e desconhecidos. E, nesse empréstimo, igualava-se aos demais artistas, acabando-se por ficar ainda maior que todos juntos. Essa nuance específica, minuciosa, sutilíssima paira sobre o trabalho de Laila Garin pela frequência com que os ombros aparecem largamente abertos, como o abrir da boca também significa fechar os olhos, como as palmas das mãos ficam abertas em direção à frente, ao público, e não de frente uma para a outra, isso para citar apenas três exemplos. Sem talvez notar esses traços tão pequenos, o público se emociona mesmo assim diante de uma estrutura interpretativa que é positivamente invisível, dada a concepção realista do espetáculo. Isso, claro, para não desenvolver o óbvio: a perfeita afinação, a voz sonora, o ritmo excelente de respiração, a disponibilidade cênica, o carisma, tudo isso já visto em sua participação no musical “Gonzagão – A lenda” no ano passado. Sem dúvidas, “Elis Regina” será o personagem definitivo da carreira de Laila Garin e “Laila Garin" será a intérprete definitiva da nossa principal cantora.

Todos os demais elementos, infelizmente, são ou superficiais ou ruins. São notáveis a presença cênica de Ícaro Silva na interpretação de Jair Rodrigues, os silêncios solenes na apresentação de César Camargo Mariano por Claudio Lins e é boa a dramaturgia de Nelson Motta e de Patrícia Andrade, que conta a história em ritmo de episódios, mas sem deixar de sugerir espaço para a complexidade. Se essa complexidade, no entanto, não chega visível ao público, a responsabilidade é da direção que não fez bom teatro a partir do texto literário (dramaturgia é literatura!). Dennis Carvalho exibe escolhas pobres, preguiçosas em um uso da linguagem teatral que é bastante ínfimo. De um modo geral, o espetáculo perde a oportunidade de dizer algo além do dizível em um mero documentário, pois tudo parece estar voltado à imitação do real, do como as coisas “realmente” aconteceram, o que é bastante humilhante para a arte, desde Hegel. Há a imitação de Miele, de Lenny Dale, de Dona Ercy e de Seu Romeu, de Ronaldo Bôscoli, de Paulo Francis e de outros em uma expressão do quão valorosa a simples aparência parece ser para o diretor infelizmente. Porque chega nas aparências ao invés de partir delas, “Elis, a musical” é uma grande e cara “casca” de teatro que deixa a desejar aqueles que se compadecem da responsabilidade de Laila Garin, que é a de sustentar quase sozinha a justificativa da presença dessa produção entre as melhores do ano. Há, no entanto, dois pequenos momentos de exceção que precisam ser valorizados. Em um deles, Elis (Garin) surge para cantar diante de uma multidão. Denis Carvalho, aí, foge do óbvio e coloca a intérprete de costas para o público, oferecendo ao público o raríssimo ponto de vista da coxia, até que, “dado o recado”, Elis se vira e então termina o número. Em outra cena, Elis e o cartunista Henfil (Peter Boos) se encontram e, pela forma como a narrativa se conta, sabemos que “O bêbado e o equilibrista” está prestes a aparecer no repertório. No entanto, na marcação, Elis sai de cena, vai embora, surpreendendo o público. A sua volta, o seu retorno, momentos depois, surge com muito mais força, essa que não teria se não tivesse havido essa quebra. É de “jogos” assim que a direção de Carvalho não dispôs a contento infelizmente ao longo da encenação.

Em “Elis, a musical”, falta espetacularidade, grandiosidade, pujança que apenas Garin e o pomposo palco do Oi Casa Grande não conseguem sozinhos dar, embora se esforcem para. Os painéis de janelas que descem e os sofás vermelhos que entram pelas laterais para compor o apartamento de Ronaldo Bôscoli são pouco para o esperado em mais uma grande produção da Aventura Entretenimento. Os andaimes são uma solução pobre, feia, muda para emoldurar a história de uma artista. Ainda dentro do trabalho de Marcos Flaksman, os figurinos (Marília Carneiro) parecem ter sido apenas recolhidos e não de fato concebidos, com exceção do vestido que Elis usa para cantar “Vou deitar e rolar”. Com exceção da poética coreografia de “Falso Brilhante”, também não há grandiosidade nas coreografias de Alonso Barros, cujo interesse parece mais apenas ter sido o de preencher o palco vazio pelos “buracos” cênicos abertos pela direção de Dennis Carvalho. A decisão de encerrar o espetáculo com personagens que estiveram presentes ao longo da história contada é colegial, no sentido negativo do termo. O repertório, que é bem escolhido, faz positivamente o óbvio, isto é, apresenta as canções tais quais elas foram gravadas por Elis, sem causar entraves. Pela ausência de desafios nisso, não, no entanto, há destaque na direção musical de Delia Fischer.

“Elis, a musical” não pode usar como desculpa para a ausência de grandiosidade nem o caráter biográfico e nem tampouco a falta de verbas. Infelizmente, é apenas de Laila Garin o grande mérito pela grande homenagem que ela faz. 

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O Elenco

Elis Regina – Laila Garin
Ronaldo Bôscoli – Felipe Camargo (Participação especial)
Cesar Camargo Mariano – Claudio Lins
Luiz Carlos Miele – Caike Luna
Marcos Lázaro/Vinicius de Moraes – Rafael de Castro
Jair Rodrigues – Ícaro Silva
Lennie Dale – Danilo Timm
Romeu – Ricardo Vieira
Tom Jobim – Leo Diniz
Henfil – Peter Boos
Ercy – Leticia Madella

Personagens Masculinos – Guilherme Logullo, Alessandro Brandão, Lincoln Tornado, Thiago Marinho

Personagens Femininos – Carla de Sá, Maíra Charken, Lilian Menezes

Ensemble – Leo Wagner

Link para o release: http://www.midiorama.com.br/works/news/17259/elis-a-musical/

The book of Mormon (RJ)

No centro, o coreógrafo Victor Maia interpreta Price.
À esquerda, com os cabelos ruivos, Vinícius Teixeira.
Foto: Alexandre Farias


A última e bem-vinda sensação do teatro carioca!


“The book of Mormon” é uma sensação no teatro carioca positivamente nesse mês de dezembro. Entre os motivos, está o fato de ser mais um espetáculo que se afasta do politicamente correto, seguindo a trilha do “Porta dos Fundos”, por exemplo, fazendo o público gargalhar de si próprio enquanto vê, no palco, expostos os seus próprios preconceitos. Também porque é o resultado de uma bela iniciativa do Prof. Rubens Lima Jr., da UNIRIO, coordenador do projeto Teatro Musicado, surgido no Centro de Letras e Artes em 1995 e que, com essa produção, chega ao sexto espetáculo. Por fim, tem o mérito de apresentar ao público carioca nomes como Vinícius Teixeira, Bruno Nunes, Nando Brandão e, principal e gloriosamente, Leo Bahia, de quem certamente ainda ouviremos muito falar desde já e para o futuro. E, ainda, consagrar dois excelentes profissionais que merecem a atenção: o diretor musical Marcelo Farias e o coreógrafo Victor Maia. O espetáculo está em cartaz na Sala Paschoal Carlos Magno, na Urca, zona sul do Rio de Janeiro e com entrada franca.

Com músicas, letras e roteiro de Trey Parker, Robert Lopez e de Matt Stone, os mesmos criadores de “South Park”, a peça estreou em Nova Iorque em março de 2011, obtendo nove Tony Awards, incluindo o de melhor espetáculo. A história é a seguinte: terminada a formação de missionários mórmons, um grupo de rapazes recebe do coordenador a informação do lugar no mundo para onde irão pregar e quem será o seu parceiro, pois os mórmons andam sempre em duplas. Um deles, Price (Victor Maia substituindo Hugo Kerth na sessão aqui analisada) alimenta desde a infância o sonho de mudar-se para Orlando, na Flórida, e reza fervorosamente para que o “Pai Celestial” tenha reservado pra ele esse destino ao fim do curso. Infelizmente, a prece não foi atendida. Price irá para Uganda, na África, ao lado de Cunningham (Leo Bahia), um garoto gordo, sem ambições claras e cheios de problemas de relacionamento. Ao chegar no continente africano, lidam com toda a espécie de comportamento assustador aos seus parâmetros: a AIDS por todo o lugar, a subnutrição, a crença aos deuses pagãos, o exercício do corte do clitóris como forma de obter sucesso diante do destino traçado por esses deuses, a prática do estupro de bebês na falta de mulheres virgens que, segundo a crença, poderia curar os homens do HIV, além da opressão por regime paramilitares, as péssimas condições de higiene, o calor, os mosquitos e o fato gritante de serem, enquanto rapazes brancos, minoria entre um número expressivo de pessoas negras. Mais disposto a ganhar aplausos do que propriamente pregar a palavra de Deus, Price é inserido em uma comunidade de outros jovens missionários mórmons que, há tempos, não conseguem converter alguém. Seu espírito de liderança anima o grupo, mas talvez sucumba aos inúmeros testes aos quais sua fé irá ser provada. É nesse caminho que a figura de Cunningham, uma espécie de Sancho Pança geek, desponta. Sem nunca ter lido “O livro dos mórmons” (Ou “O livro de Mórmon”), Cunningham, apaixonado pela nativa Nabulungi (Larissa Landim, que alterna o papel com Giulianna Farias), se vê diante do desafio de contar históris que ele próprio não conhece. A solução é um misto de “O Rei Leão”, “Harry Potter” e de “O senhor dos anéis” com os personagens da bíblia e do livro dos mórmons, casados em sua versão para converter novos fiéis, mas também para proteger o povo de práticas como o estupro e a tortura. Assim, um misto de assuntos/temas extremamente sérios e complexos é tratado ao lado de uma parafernália superficial e consumista: livros e personagens de ação, a homossexualidade visível dos rapazes mórmons, a Disney World. Atores brancos pintados grosseiramente de pretos, cabelos crespos levantados e muitas estampas em um cenário grotesco de papelão mal pintado: para nós, no Brasil, tudo remete à boa e velha tosquice do programa “TV Pirata” e às portas de isopor dos episódios de Chapolim. Nesse musical, a concepção está intimamente amarrada nos diálogos, nas letras, mas também nos cenários, no figurino, na iluminação, nas coreografias e na forma como os personagens dão suas construções a ver. Tudo é excelentemente tosco e agropecuário, sem tirar nem por, entretenimento da melhor qualidade, com ótima versão brasileira assinada por Alexandre Amorim, finalmente quebrando a hegemonia de Cláudio Botelho nos bons trabalhos disponíveis por aqui a partir de produções de lá.

Se, na narrativa dramática, Price e Cunningham vão desbravar a África, em termos actanciais, os dois personagens vão desbravar uma concepção que é estranha a eles. Fora Price e Cunningham, tudo é superficial como já se disse. Da AIDS ao Simba, do lurex cor de rosa nos figurinos às coreografias cheias movimentos apoteóticos a la Ziegfield Follies, das soluções de cenário resolvidas sem esforço na alimentação da magia como na velha Broadway ao texto cheio de palavrões, em tudo se vê uma casca farsesca de referência que garante o riso fácil, porque rápido. Nessa "sopa" de opções estéticas sem aprofundar nenhuma delas, os refrões melosos ao tipo Rodgers e Hammerstein nas canções que terminam em agudos altíssimos convivem ao lado de diálogos repletos de não-ditos, críticas ácidas e muito deboche. Esse lugar esteticamente controverso representa, pela força como está estruturado, forte oposição à complexidade de Price e de Cunningham. De fato, se um dos lutadores é expressivamente melhor que o outro, a briga tende a ser monótona. Porque esse não é o caso, temos aqui a excelência de uma boa encenação dirigida por Rubens Lima Jr. Desde sempre, Price e Cunningham são vistos em lugares limites: ambos querem provar para si e para os outros que podem mais do que aparentam. A falsa coragem de um lado e o falso medo do outro equilibram os dois personagens em uma só protagonização que se alterna em lugar de destaque e ganha o público que, com eles, se identifica (e por eles se apaixona). Profundidade versus superficialidade, tudo pronto para um bom embate artístico.

Composto por alunos de diversos cursos da UFRJ, da UFF e da UNIRIO, o elenco não apresenta excelentes trabalhos em todos os seus momentos, mas é mérito da direção apresentar uma excelente fluência entre os trabalhos bons e aqueles nem tanto de forma coesa e coerente. Porque está em papel quase protagonista, Larissa Landim é a única participação negativamente comprometedora. As canções são interpretadas sem marcas de verdade, as falas são ditas sempre da mesma forma e o corpo apresenta a bacia projetada para frente sem razões estéticas visíveis. Destacam-se positivamente os trabalhos de Vinícius Teixeira (McKinley), de Bruno Nunes (um dos Elders) e de Nando Brandão (o médico), sempre íntegros em suas construções, bem articulados e principalmente fortes. “The book of Mormon”, no entanto, parece ser de Leo Bahia (Cunningham): excelente expressão vocal e afinação, movimentos precisos na apresentação do personagem, tempos e intenções bem postas na sutil construção de uma ótima relação com o público. O olhar quase sempre em diagonais, principalmente no primeiro ato, expressa a busca do personagem por respostas que ele não tem. Ao longo da peça, o foco passa a ser horizontal, delicadamente sugerindo o desenlace da curva dramática do personagem. Nasce aqui uma estrela!

Nada menos que excelentes são as coreografias de Victor Maia para “The book of Mormon”, que também apresentou um excelente trabalho de interpretação na viabilização do protagonista Price. Conhecido por sua participação coadjuvante no musical “Quase Normal”, Maia apresenta agora, em definitivo, o seu primeiro grande trabalho como coreógrafo de marca maior. Os passos são ágeis e cheios de complexidade no sentido de providenciar níveis diferentes a preencher o palco. As evoluções são surpreendentes e as finalizações nas trocas de cena são um ganho ao trabalho da direção geral, essa já elogiada. No mesmo sentido, a direção musical de Marcelo Farias, com orquestrações de Guilherme Menezes evocam os velhos musicais, apresentando um novo aos ouvidos brasileiros, com um número bastante limitado de músicos. Cheio de desafios vencidos, o mérito é ainda maior.

Com cenários e figurinos de João de Freitas Henriques, visagismo e caracterização de Vitor Martinez e iluminação de Anderson Ratto, trabalhos esses já elogiados acima de forma indireta, “The book of Mormon” tem produção de Bruno Adnet, Marcelo Albuquerque e Bruno Torquatto, a quem deve-se agradecer pelo bonito resultado dessa parceria entre a UNIRIO e outras universidades, mas principalmente pelo patrocínio da Cesgranrio, fazendo a diferença essencial nesse projeto completamente sem fins comerciais.

O sucesso de “The book of Mormon” desde a sua estreia na Urca pontua para sempre o fato evidente de que o teatro estudantil tem tantas chances de ser bom quanto o teatro amador ou profissional, pois a avaliação é sempre da ordem da estética e nunca por sobre o modelo de produção. Aplausos efusivos e votos de vida longa à montagem e ao projeto Teatro Musicado do Prof. Rubens Lima Jr..

Ouça aqui a trilha sonora original.

segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

Quando a gente ama (RJ)

Cris Viana ao centro e Vilma Melo (de vestido azul) em
belo musical a partir de canções de Arlindo Cruz
Foto: Marcus Gullo

Antes de ser um bom musical, é um ótimo teatro!

É uma pena que nem todos os musicais em cartaz no Rio de Janeiro sejam tão bons quanto “Quando a gente ama”. A partir de músicas de Arlindo Cruz (1958), a qualidade da direção musical de Marcelo Alonso Neves, dos músicos e dos intérpretes é grande, mas é menor que a excelente dramaturgia de João Batista, que também assina a direção. A peça não é apenas para familiares e para fãs de Arlindo Cruz, tão pouco só para interessados em conhecer sua biografia. “Quando a gente ama” é sobre o amor em várias de suas facetas, pontos de vista, possibilidades, momentos e, por isso, é para o homem lembrar-se de que é homem, propondo, assim, arte da melhor qualidade. Em cartaz no Teatro Sesc Ginástico, no centro do Rio, a produção tem destaque para Édio Nunes, para Milton Filho e para Wladimir Pinheiro, mas principalmente para Cris Viana e sobretudo para Vilma Melo.

O espetáculo se passa em uma roda de samba, um “pagode”, em um lugar onde moradores de regiões menos favorecidas da cidade se encontram ao fim do dia para beber, encontrar-se com amigos, relaxar. Cada uma das 12 músicas de Arlindo Cruz interpretadas pelo elenco afinadíssimo é antecedida por um diálogo em que dois personagens começam ou terminam uma relação, declaram-se apaixonados ou chegam à conclusão de que o amor já terminou, conhecem-se ou afirmam querer esquecer-se, beijam-se, dançam e brigam. Em cada um desses quadros, cujos personagens nunca se repetem, o amor está exposto de um jeito diferente, mas sempre de forma bastante interessante, cheio de complexidade e de potência, isso graças ao excelente texto e à ótima direção de João Batista, mas também à qualidade dos intérpretes enquanto ótimos músicos, mas também enquanto bons atores. Se, no início, temos personagens mais caricatos, farsescos, cheios de expressividade (destaque para o sempre muito expressivo Milton Filho) e consequentemente dispostos ao riso e à superficialidade, na medida em que o espetáculo vai avançando, temos situações dramáticas mais densas com interpretações mais profundas e não menos, mas talvez mais valorosas. Ao lado de Filho, Cris Viana surge sólida, neutra, segura, firme em uma belíssima cena em que o casal avalia se uma nova chance vale a pena para o relacionamento entre os dois. Depois, Patrícia Costa e Édio Nunes deixam ver um imenso abismo entre os seus personagens que descobrem que o amor já terminou e que findou-se um casamento de mais de dez anos. Nessa cena, há que se notar o peso das palavras, mas também dos silêncios, a forma contida como cada emoção é representada nos diálogos. Próximos do fim, temos o ponto alto de tantos bons momentos da participação de Vilma Melo, então dando vida a uma mulher mais velha que fora abandonada em troca de uma menina por seu jovem amor. A delicada dosagem da emoção faz da personagem dessa cena uma vultuosa figura capaz de tirar o fôlego da plateia mais atenta.

Não só as cenas, mas o como elas se relacionam com as canções fazem de “Quando a gente ama” um grande espetáculo. Embora o esquema se repita doze vezes (um quadro = cena + música), é possível avaliar como bastante positivo o fato da multiplicidade de pontos de vista diferentes sobre o amor nutrir o espectador de interesse por mais e mais. O repertório, bem interpretado pelo grupo, mas sobretudo pelo excelente Wladimir Pinheiro, uma das vozes masculinas mais belas do país, serve de forma natural à expressão dos sentimentos dos personagens construtores das cenas. O resultado é uma galeria bem estruturada e bastante bem defendida.

Com méritos ainda aos detalhes estéticos (cenário de Doris Rollemberg, figurino de Mauro Leite, iluminação de Renato Machado, coreografias de Dani Cavanellas), o espetáculo faz, sim, bonita homenagem a Arlindo Cruz, apresentando-o a quem não o conhece e honrando quem é seu fã, mas merece aplausos da crítica teatral por ser apresentado de forma tão valorosa os signos teatrais bem usados. Parabéns!

*

Ficha Técnica
Texto e Direção: João Batista
Direção musical e arranjos: Marcelo Alonso Neves
Elenco: Cris Vianna, David Junior, Édio Nunes, Jéssica Moraes, Milton Filho, Patrícia Costa, Vilma Melo, Wladimir Pinheiro
Cenografia: Doris Rollemberg
Figurinos: Mauro Leite
Iluminação: Renato Machado
Produção: Sábios Projetos
Realização: Sábios Projetos e Cia Dramática de Comédia

O Pastor (RJ)

Kátia Camello, Alexandre Lino e
(no chão) Cesario Candhi em excelente
trabalhos de interpretação
Foto: divulgação

Mais do que ótimo, um espetáculo necessário!

O espetáculo “O Pastor” é uma das produções mais empolgantes do ano no teatro carioca, porque, ao sair do espetáculo, a vontade que se tem é de vê-lo apresentado Brasil a fora para públicos cada vez maiores. Isso sentido, porque: 1) o espetáculo é bom esteticamente; 2) é também bom socialmente. Ou seja, ao mesmo tempo em que a peça age em prol de uma reflexão estética, propondo uma discussão acerca de como o homem percebe a obra artística, também ela sugere um debate importantíssimo sobre como o neopentecostalismo age criminalmente nas mentes, nos corações e principalmente nos bolsos dos menos favorecidos. Com texto de Daniel Porto e direção de Carina Casuscelli, o espetáculo conta no elenco com Alexandre Lino (Pastor Antônio), Kátia Camelo (Irmã Janaína) e com Cesário Candhi (Paulo). Está em cartaz no Espaço 2 do Solar de Botafogo, zona sul do Rio de Janeiro.

Comecemos pelos valores estéticos. O maior ganho da peça é o esforço manifesto em apagar qualquer marca de teatralidade que seja da ordem do teatro propriamente visto. Bastante feliz, a decisão deve ter vindo da consciência de que o tema já é, por si só, saturado de teatralidade no sentido ritual-religioso da palavra. Ao abster-se de mostrar que está fazendo “teatro”, o espetáculo expõe “o teatro” que há no culto religioso neopentecostal, assim, “O Pastor” se aproxima tanto do seu referente que acaba por critica-lo de maneira ímpar e bastante positiva. É interessante observar igualmente o lugar do público nesse espetáculo. Embora tudo o que aconteça no palco seja igual ao que acontece nos púlpitos evangélico-neopentecostais, na plateia do teatro, os acordos seguem sendo diferentes: a) o público de “O Pastor” foi ao teatro ver uma peça e não à igreja orar para o seu deus; b) o público que vai ao teatro vai para se entreter, podendo esse entretenimento ser cômico, dramático ou reflexivo. O público que vai à igreja vai para pedir, para agradecer ou para cumprir uma obrigação assumida com o seu deus e sua comunidade religiosa; c) o ator interpreta um personagem diante de um público (teatro), enquanto, numa igreja, o pastor (ou padre) celebra um rito religioso (profissão/vocação), sem grandes marcas que distinguem o homem fora do ato profissional/religioso do homem no ato profissional/religioso (o ator interpreta um personagem; o professor, o motorista, o padre, o médico assim o são mesmo encerrado o expediente profissional). Essas três diferenças autorizam o público que está diante do personagem “Pastor Antônio” a criticá-lo, a não contribuir com o dízimo, a não dar as mãos para os demais, a não rezar, não cantar, enfim, a apenas assistir passivamente à peça. Essa autorização é vital para a manutenção do distanciamento, sentimento esse que assinará a evolução das distâncias e das proximidades entre a peça “O Pastor” e qualquer outra igreja evangélica neopentecostal que exista além da narrativa. Por construir essa situação estética de forma tão bem amarrada, com excelência magnânima nos trabalhos de interpretação de Lino, de Camello e de Candhi, mas também nos de cenário e figurino (Karlla de Luca), direção musical (Alexandre Elias) e de videografismo (Marcio Thess), a peça apaga qualquer dúvida sobre seu realismo e oferece terreno seguro e confortável para a pura e boa fruição.

Quanto ao valor social, “O Pastor”, porque evidencia as marcas de teatralidade do rito neopentecostal, deixa claro a sua artificialidade capciosa. A música que trilha a entrada do público é uma canção de penitência, reforçando a culpa como sentimento vital à oração (é preciso que o homem se diminua diante de deus). A oração do “Pai Nosso” com a letra projetada no telão inclui todos os presentes em uma só letra, construindo a imagem de igualdade. A citação, no cenário, da Arca da Aliança e da Menorá, ao lado da leitura dos Salmos de Davi, são sinais de uma suposta ligação direta entre o Deus de Israel e o povo presente. Esses símbolos de origem judaica ficam em paralelo às citações do Evangelho e das epístolas de Paulo e de Tiago, e também ao lado de ritos de desobsessão, de coreografias em que o pastor gira pelo palco como nos ritos afro-religiosos e também ao lado da interpretação de paródias de músicas laicas com letras cristãs. O sincretismo religioso, em definitivo, é marca do neopentecostalismo, esse suspostamente aberto e acolhedor para o homem de todas as origens. Por fim, a exortação ao dízimo, às ofertas financeiras, à compra de objetos religiosos, isso tudo aliado a um Pastor que usa relógio e anel de ouro, camisa da Lacoste e calça de boa alfaiataria define o vínculo dessas crenças à Teologia da Prosperidade. De posse da autorização à crítica em paralelo à realização do rito e sua fruição/participação, o espectador consegue evidenciar como, nesse ritual religioso-teatral, todos os elementos são articulados com fim ao estabelecimento de um acordo financeiro entre o fiel, seu deus e sua comunidade sem o qual o crente não ficará livre da culpa despertada desde o início. Por propiciar essa reflexão, “O Pastor” é um espetáculo necessário num tempo em que igrejas se multiplicam em garagens e em barracões, abertas por pastores ávidos por pessoas em busca de melhora em suas situações afetivas, financeiras e da ordem da saúde.

Simples, despretensioso, sutil, “O Pastor” fornece bases para a crítica sem tomar partido. O espetáculo começa tal qual começa um culto neopentencostal e termina como também ele termina. O teatro, como na sua etimologia, está no olho de quem vê. Excelente!

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Ficha técnica:
Texto: Daniel Porto
Direção: Carina Casuscelli
Elenco: Alexandre Lino, Kátia Camello e Cesario Candhi
Direção musical: Alexandre Elias
Direção de produção e Argumento: Alexandre Lino
Cenário e Figurinos: Karlla de Luca
Iluminação: Cristiano Gonçalves
Produção executiva: Daniel Porto e Mariana Martins
Programação visual: Guilherme Lopes Moura
Videografismo: Marcio Thess
Webdesigner: Mariana Martins
Operação de luz: Raisa Mousinho
Operação de som e de vídeo: Diogo Pivari
Assessoria de imprensa: Mais e Melhores
Idealização e Realização: Cineteatro Produções

Um natal para dois (RJ)

Gottsha (Eva) e Tadeu Aguiar (Téo) em cena
Foto: divulgação

Sem pretensões, um bom espetáculo

“Um natal para dois” cumpre o que promete e, por isso, é bom. Escrita por Arthur Xexéo e dirigida por Jacqueline Laurence, a peça é uma comédia romântica musical com canções clássicas do repertório natalino. Nada além – e isso não faz desse espetáculo nem um pouco menor. Em cartaz no Teatro Clara Nunes, no Shopping da Gávea, o público se diverte, cantando com os atores as músicas mais conhecidas e sai descobrindo novas canções. Bom divertimento.

Téo e Eva (Tadeu Aguiar e Gottsha) se conheceram em um dia de natal e viveram juntos durante dez anos. Numa outra noite de natal, Téo deixou uma carta para Eva, terminando a relação, condenando a ex-namorada a odiar a data para sempre. Ele é produtor musical e ela uma cantora famosa. Cinco anos após o fim, encontram-se pela primeira vez para ensaiar um espetáculo sobre natal, contrato esse que ela só assinou porque não sabia que ele seria o diretor. Os ensaios, então, são recheados de lembranças do passado, a parte boa e a parte ruim, da história vivida entre os dois, entrecortadas por canções que farão parte do show que ambos constroem, além de suas opiniões sobre essas músicas. Como qualquer comédia romântica, o final está decretado: todos nós sabemos que os dois ficarão juntos no final. O ponto positivo está visto no carisma da dupla de intérpretes. Graças a ele, vemos despertada a torcida na audiência, esse também um mérito da direção, para que os dois reatem no final. Esse é o desafio, aqui vencido, de toda a comédia romântica que quer ser boa.

Tudo é simples em “Um natal para dois”. Não há uma grande história, o cenário da Estamos Aqui é realista e com detalhes bem postos, os figurinos de Paulo Zyngier – LIX valorizam os personagens e seus intérpretes, a iluminação de Anderson Schinaider acompanha bem os quadros da narrativa e a direção musical de Liliane Secco situa as canções em um lugar que é qualificado sem parecer histriônico, o que nos convida a cantar junto. Em se tratando de natal, uma festa familiar, o gesto de “não dar trabalho para o público” é positivo. Nesse espetáculo, tudo está ao alcance do espectador sem entraves, sem complexidade, envolto em uma doce superficialidade.

De todos, o ponto mais positivo de “Um natal para dois” é o repertório. Quem for assistir esperando ouvir canções célebres dos corais religiosos, irá ouvir apenas “Adeste Fideles” ser tocada na troca de cenas. Uma vez que, na narrativa, temos dois artistas discutindo uma relação de dez anos findada há cinco, cair nos óbvios hinos natalinos seria fatal. Ao contrário, há um excelente investimento nas composições laicas, que agradam a todos independente do credo. “Tão bom que foi o natal”, de Chico Buarque, é um ótimo exemplo.

Sem pretensões, eis aí um espetáculo que agrada ao grande público. Parabéns!

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Ficha técnica:

Um musical de Artur Xexéo
Com Gottsha e Tadeu Aguiar
Direção: Jacqueline Laurence
Direção musical: Liliane Secco
Assistência de direção: Flávia Rinaldi
Músicos: Liliane Secco (teclado), Carlos Henrique (bateria) e Tássio Ramos (baixo).
Som: Fernando Fortes
Luz: Anderson Schinaider
Vídeos: Paulo Severo
Cenário: Estamos Aqui
Design gráfico: Cláudia Xavier
Assessoria de imprensa: Meise Halabi
Coordenação de produção: Norma Thiré
Produção: Eduardo Bakr e Tadeu Aguiar – Estamos Aqui Produções Artísticas

quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

Fluxorama (RJ)

A excelente Rita Clemente em cena
Foto: Ana Alexandrino

Um espetáculo refinadíssimo

Entre vários significados possíveis, “Fluxorama” pode ser uma peça que fala sobre o esforço que o homem pode fazer em permanecer vivo, existente, pulsante. Com texto de Jô Bilac, o espetáculo reúne três monólogos, cada um deles dirigido pelo ator de uma das cenas. Rita Clemente interpreta “Amanda”, dirigida por Inez Viana. Vinícius Arneiro interpreta “Luiz Guilherme”, dirigido por Rita Clemente. Inez Viana interpreta “Valquíria”, dirigida por Vinícius Arneiro. Em um deles, uma pessoa vai se descobrindo, aos poucos, sem os sentidos. Primeiro, a audição, depois o paladar, o olfato até chegar à visão. Noutro, em meio às ferragens do carro em que se acidentou, uma pessoa vai tentando equilibrar-se em busca da própria consciência para seguir vivo o máximo de tempo possível. Noutro ainda, no absurdo das pressões sociais, uma pessoa corre, desviando o pensamento do cansaço e focando no objetivo para resistir à tentação de parar e desistir. Com muita sutileza, e preciosa delicadeza, o espetáculo fala, na ordem do texto e da encenação, em um tom bastante elegante, assegurando o lugar da profundidade das questões sem parecer nenhum um pouco pedante. Está em cartaz no Teatro do OiFlamengo, zona sul do Rio de Janeiro.

A direção de Inez Viana, nesse espetáculo, ratifica o exercício visto nas produções da Cia. Omondé. O espectador de “Fluxorama” não deve perder a oportunidade de refletir, assim, sobre os lugares diferentes, mas colaborativos, criados para contar a história de forma teatral. De um lado, a interpretação e o texto dito por Rita Clemente. De outro, a pressão que um tecido branco-transparente elástico faz sobre a personagem (uma espécie de rede que empurra “Amanda” para baixo). Aparentemente divergentes, os dois lados podem oferecer aos olhos mais atentos pontos de vista diferentes sobre a mesma questão. Para nós, é enxergar através dessa barreira. Para a personagem é manter-se em pé. Unidos, esses desafios dizem algo pertinente ao tema, sem impor sentido, o que é inteligente, elegante e principalmente próprio da contemporaneidade. Rita Clemente, por sua vez, é sabido que divide o lugar das melhores atrizes de teatro do Brasil com Bibi Ferreira, Fernanda Montenegro, Débora Olivieri, Kelzy Ecard, Adriana Seiffert, Dani Barros, Sandra Dani, Georgette Fadel, Adassa Martins e outras, cada uma na sua idade e no seu contexto. Aqui, o uso da voz nas minúcias dos entre-fonemas e na evolução dos tons, o jeito como os signos expressos pelo rosto dão a ver uma imagem potente, complexa, positivamente porque nem sempre coesa e coerente, confirmam sua posição entre as grandes intérpretes aqui em excelente trabalho mais uma vez.

Em “Luiz Guilherme”, o espectador não deve deixar de perceber a importância da respiração como, basicamente, o único movimento realmente significativo a quem está preso, sentindo muita dor nas partes do corpo que ainda sente. A direção de Rita Clemente parece ter transformado os intervalos entre as palavras, e mesmo entre as sílabas delas, em música. O resultado é positivo e melhor contemplado se esquecermos, por um momento, o que realmente cada palavra significa. Estaremos diante de um “bailado”, um dançarino que procura preencher o espaço do salão e o tempo da melodia e, ainda por cima, divertir-se enquanto também procura não errar tanto a coreografia. Essa é também uma forma de fornecer um outro ponto de vista sobre o texto dito por Arneiro, de forma que os sentidos disponíveis, quando unidos, poderão gerar um significado mais complexo ao todo da cena. Normalmente na função de diretor, em “Fluxograma” é possível notar um bom trabalho de interpretação de Arneiro: clareza no texto dito, excelentes jogos de olhar, intenções precisas.

Das três histórias, a terceira é a mais frívola, mas não a menos interessante. O diferencial está no fato de que essa não tem um início e nem um fim marcado, mas é um intervalo. (Uma delas começa num dia quando o personagem sente que perdeu a audição e termina quando perde a visão. Outra começa com o despertar de um acidentado ainda no local do acontecido e termina com a sua morte.) “Valquíria” é um intervalo constante, pois, na direção de Arneiro, não há variação de ritmo na interpretação de Inez Viana que seja nem causadora, nem consequente. Em outras palavras, embora haja a diminuição e o aumento da velocidade, esses não são seguidos por mais diminuição ou aumento ainda maior, mas são apenas variações que dão cor para a narrativa. O resultado estético é a sensação de linearidade geral, isto é, a cena já estava assim antes de lha assistirmos e permanecerá assim depois que formos embora, o que é, principalmente porque é a última cena, um alento e uma mensagem: é preciso continuar. Com excelente ritmo no dizer o texto enquanto corre, subindo e descendo rampas, Viana está em um momento raro do seu trabalho como atriz. Nesse espetáculo, ela é vista em tom realista, sem partituras e com alguma liberdade dentro do quadrado que ela desenha. Mais uma vez, consegue um ótimo resultado. 

“Fluxorama”, com uma ficha técnica que reúne bons trabalhos de iluminaçãoo, cenário, figurino e de trilha sonora, é um trabalho artístico que é valoroso porque é também conceitual. Pode, claro, ser visto como mais uma peça, mas sugere uma excelente reflexão sobre as relações entre o que é feito e a forma como é feito, relação essa aqui expressa de forma sublimemente refinada.

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FICHA TÉCNICA
Texto - Jô Bilac

AMANDA / Atuação - Rita Clemente
Direção - Inez Viana

LUIZ GUILHERME / Atuação - Viniciús Arneiro
Direção - Rita Clemente

VALQUÍRIA / Atuação - Inez Viana
Direção - Viniciús Arneiro

Direção Geral: Rita Clemente, Inez Viana e Viniciús Arneiro
Dramaturgista: Diogo Liberano
Cenografia e Identidade Visual: Estúdio Radiográfico
Trilha Sonora: Tato Taborda
Iluminação: Tomás Ribas
Figurinos: Júlia Marini
Assessoria de Imprensa: Bianca Senna - Astrolábio Comunicação
Fotografia: Ana Alexandrino
Direção de Produção: Liliana Mont Serrat e Damiana Guimarães
Produção Executiva: Paula Valente
Assistente de Produção: Felipe Marcondes

Deixa que eu te ame (RJ)

Solange Badin e Paulo Giardini (à direita) em ótimos trabalhos
Foto: divulgação

Ruim

Apesar das boas interpretações, “Deixa que eu te ame” é um espetáculo ruim porque não parte nem de um bom texto de Alcione Araújo (1945-2012), nem de uma boa direção de Aderbal Freire-Filho. Quanto ao primeiro, é constrangedor notar que, passados sessenta minutos de peça, ainda estamos diante de duas mulheres superficialmente construídas brigando pelo mesmo homem com diálogos sofríveis. Quanto ao segundo, a insistência em uma concepção que articule a dança, o tango, à cena e a interposição de trechos em que os personagens se dirigem ao público, com o uso do microfone e falando em primeiro pessoa, arrasta ainda mais a narrativa cênica e, embora pareça querer “ajudar” o texto, acaba por prejudica-lo ainda mais. Em cartaz no super ultra congelante Teatro Eva Herz (sugere-se levar cobertores!), a montagem tem como ponto positivo o de sugerir uma reflexão acerca da importância da direção e da dramaturgia na construção de um espetáculo teatral, esse em que se vê apenas atores no palco, aqueles que conceitualmente são os realmente responsáveis pelo fazer teatral.

Depois de um coquetel político, Bernardo (Paulo Tiefenthaler), um economista de Brasília, segue com uma mulher (Solange Badin) para um antigo restaurante que já está quase de portas fechadas dada a hora tardia. O lugar faz com que as memórias do passado, quando ambos foram namorados, voltem. Começa um jogo de sedução que termina com a chegada de Thomaz (Paulo Giardini), o irmão de Bernardo e marido de Helena, e de Cecília (Isabel Lobo), esposa de Bernardo. No passado, Bernardo foi fazer um curso longe e, por isso, terminou o namoro com Helena. Quando retornou, ela já estava casada com seu irmão. No que diz respeito a ela, está claro que a “chama” ainda não apagou. Cecília, que é bastante ciumenta, percebe que há algo acontecendo e começa, furiosa, a inquirir o marido, o cunhado e sua esposa. Isso dura bastante tempo. Acontecimentos que vão surgindo nos momentos finais da narrativa vão dando margem para vir à tona o lado interior dos personagens: Helena não está satisfeita com o marido honesto e fiel, que não lhe “acende” na cama. Cecília é insegura como esposa como também o é enquanto mãe de uma mulher de dezesseis anos (Bella Camero), agora envolvida com Miojo (Oscar Saraiva), um traficante. Thomaz tem uma mágoa guardada em relação ao irmão por ele nunca ter ajudado na casa e na doença dos pais já falecidos. Bernardo sabe que precisa pagar pra ter uma fração da admiração que, de graça, o irmão desperta nas pessoas. Próprio do realismo psicológico, o universo interior de cada um é interessante quando consegue dar força para o desenrolar da trama. O problema é que falta trama em “Deixa que eu te ame”, pois, além da disputa de Helena e de Cecília por Bernardo, nada acontece durante dois terços do espetáculo. A história acaba sendo tola, despertando na plateia sentimentos superficiais próprios dos maus melodramas.

A direção de Aderbal Freire-Filho parece reconhecer que o texto está desequilibrado, ciente de que a dramaturgia investe demais na verticalidade (o interior dos personagens) sem a compensação de uma horizontalidade (o desenrolar dos fatos que levam ao fim). Talvez com a intenção de resolver o problema, colorindo a produção com passos de dança (sob uma só e repetitiva composição de Edu Lobo) e com uma certa teatralidade indesejada (óculos escuros, as aparições do Garçon (Cândido Damm), movimentos ilustrativos dos atores atrás da rotunda transparente, etc), a direção arrasta ainda mais a história, oferecendo uma comédia que, no fim, não tem graça alguma. As cenas em que os personagens se dirigem à plateia para falar de si são redundantes, porque não interessa ao público saber quem é aquele personagem se essa informação não mudará o que está por acontecer. As cenas finais são caóticas: tem-se a impressão de que tudo que não foi resolvido ao longo de oitenta minutos, o será feito em dez, o que torna ainda mais superficial o espetáculo como um todo. O tango remete a uma sedução que não existe no contexto afinal: Bernardo acaba sem Cecília e sem Helena, Helena acaba sem Bernardo e sem Thomaz, Cecília acaba sem Bernardo e sem a filha, Thomaz acaba sem a esposa e sem sua própria casa. Recheado de reflexões sobre ética, “Deixa que eu te ame” finda após ter dito muito pouco.

São boas, no entanto, as interpretações. Ainda que Isabel Lobo e que Oscar Saraiva pairem no senso comum em personagens sem exploração evidente, temos excelentes trabalhos sobretudo em Giardini, Badim e em Camero, esses responsáveis por emprestar uma certa humanidade complexa a essas figuras insólitas. O teatro é quando um ator interpreta um personagem diante do público, mas, quando esses atores são dirigidos por um diretor como Aderbal e estão em um espetáculo a partir de uma dramaturgia de Alcione Araujo, o que está por trás das cortinas acaba sendo inevitavelmente teatro também. E aqui isso é ruim. Para quem gosta de teatro, mais do que gosta desse ou daquele realizador, contemplar um momento negativo do trabalho de dois grandes homens de teatro, com o foi Alcione Araújo e ainda é Aderbal Freire-Filho, é, antes de qualquer outra coisa, um aprendizado.

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Ficha Técnica
Autor: Alcione Araújo
Direção: Aderbal Freire-Filho
Direção musical: Edu Lobo
Elenco: Solange Badim, Isabel Lobo, Bella Camero, Paulo Tiefenthaler, Paulo Giardini, Cândido Damm, Oscar Saraiva
Cenografia: Fernando Mello da Costa
Figurinos: Ticiana Passos
Iluminação: Luiz Paulo Nenen
Direção de movimento: Marcia Rubin
Produção: Alice Cavalcante e Dulce Lobo
Realização: Dulce Lobo Produções Artísticas e Sábios Projetos
Assessoria de Imprensa: Lu Nabuco Assessoria em Comunicação

segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

Eu, e o coração torturado de Jean-Nicolas (RJ)

Andy Gerker em cena
Foto: divulgação

Falta ação dramática

“Eu, e o coração torturado de Jean-Nicolas” não é bom, porque não tem ação dramática. A discussão que o espetáculo suscita sobre esse conceito é, no entanto, interessante. Ação dramática é o que há no intervalo entre o ponto inicial e o ponto final da estrutura cênico-narrativa. Como nos célebres “Diálogos de Platão”, apesar de haver personagens, diálogos, lugar e questão definida, o texto é monótono, pois o personagem não se move de um ponto a outro ou de um ponto ao mesmo, mas permanece no mesmo lugar durante toda a narrativa. No caso da peça em questão, cuja dramaturgia e direção são assinadas por Edú Reis, o personagem preenche o tempo com uma investigação filosófica sobre identidade, alteridade e sobre subjetividade (o eu, o eu no outro, o outro no eu, os vários outros no eu, os vários eus no outro, etc) que, embora seja interessante, não é interessante enquanto teatro. Em outras palavras, o teatro tem pouco a contribuir na literatura escrita por Reis, agora em cartaz no Solar de Botafogo, com interpretação de Andy Gerker.

Um dia, o personagem tem despertada a consciência sobre si próprio quando vê sua própria imagem refletida no vidro de uma janela. A partir daí, iniciam vários questionamentos que, ao longo da peça, não se respondem. Enquanto literatura (e sobretudo enquanto literatura filosófica) a abertura de perguntas é interessante, mas, se elas não movem quem as faz para um outro lugar (que bem pode ser o mesmo ponto inicial), o tempo do público passado diante de um ator interpretando um personagem parece ter sido em vão. Vale lembrar que a relação entre o espectador e o personagem não é a mesma que entre o leitor e o texto literário. Enquanto aqui a relação é íntima (cada um lê um livro por vez) e unilateral (o leitor lê o que o autor escreveu, sendo que esse autor não precisa estar presente no ato da leitura e nem mesmo precisa ser conhecido), lá a relação é comunitária (uma só peça é muito frequentemente assistida por mais de uma pessoa ao mesmo tempo) e bilateral (se o ator não está fisicamente diante do espectador, não é teatro). Nesse sentido, a relação tempo e espaço é diferente, pois, embora o leitor possa interromper a leitura, o espectador não pode interromper o espetáculo. E isso faz com que a ação não seja essencial entre a literatura e o leitor, mas seja importantíssima na relação entre público e plateia. “Eu, e o coração torturado de Jean-Nicolas” é, assim, teatro, mas esse visto através de um espetáculo que propõe desafios ao espectador que são altíssimos e não recompensados infelizmente.

No todo da estrutura teatral, depois de ter sido tratado da dramaturgia, é possível identificar pontos positivos. A discussão sobre identidade encontra eco a iluminação intimista, cheia de recortes bastante pequenos e bem pontuais. As paredes do Espaço 2 do Solar de Botafogo sugerem uma atmosfera soturna que também tem bom resultado. Os spikes fixados sobre a roupa negra e justa que o ator veste, em referência ao rock chic, remetem ao gótico e ao romantismo brasileiro de segunda fase, ambos dispostos a situar o homem diante de sua pequenez. No mesmo sentido, a trilha sonora com a famosa “Assim falou Zaratrusta”, do romântico Richard Strauss, também ratifica a disposição da peça em situar o homem em um lugar de importância diferenciado. Tudo isso, aliado à alta expressividade da interpretação de Andy Gerker (não há uma só palavra desvinculada de algum movimento corporal), de forma que é possível evidenciar coerência e coesão no espetáculo na sua capacidade de se auto-referenciar, fortificando o seu caráter filosófico-retórico-argumentativo.

Porque o texto permanece sendo um elemento deslocado dos demais elementos, e esse sem ação dramática, o espetáculo deixa a desejar infelizmente.

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Ficha técnica:
Dramaturgia e Direção: Edú Reis
Atuação e Criação Artística: Andy Gercker

Venus em visom (RJ)

Pierre Baitelli e Bárbara Paz em cena
Foto: divulgação

Primeira grandeza 


“Venus em Visom” apresenta dois excelentes trabalhos de interpretação e consequentemente um brilhante resultado de direção cênica. O texto de David Ives, que recebe elogios mundiais desde a sua estreia em 2012 em Nova Iorque, é ponto de partida para um investimento teatral de altíssima qualidade. Em uma noite chuvosa, uma atriz (Bárbara Paz) chega atrasada para um teste para um papel em uma nova produção teatral, sem nem mesmo estar devidamente inscrita na seleção. Já cansado, o dramaturgo (Pierre Baitelli) já não tem forças para negar-se em recebe-la. A partir daí, três seções narrativas diferentes se abrem: 1) da ordem do encontro entre a atriz e o autor; 2) da ordem do texto da peça que há de ser produzida e para a qual o teste se faz; e 3) da ordem do universo particular de cada um dos dois personagens. Em equilíbrio, os três setores se alternam, revelando significados que, aos poucos, vão modificando o ponto de vista uns sobre os outros e, juntos, sobre a peça inteira. A direção de Hector Babenco garante a tensão até o momento final, oferecendo motivos para a acomodação narrativa e, logo depois, para a desacomodação, pincelando delicadamente novas chaves que movem a história para o seu fim. Para quem gosta de bom teatro, é um prazer assistir a uma produção cujo jogo interpretativo é tão soberbo. A peça está em cartaz no Teatro Leblon, zona sul do Rio de Janeiro.

A impressão que se tem ao sair do teatro é a de que Bárbara Paz nasceu para fazer esse personagem. Talvez mais do que acontece com outras intérpretes, a forma como Paz atinge o reconhecimento ano após ano é acompanhado pelo país desde sua aparição nA Casa dos Artistas, anos atrás. Desde lá, sabe-se de seu empenho em ter apenas aquilo que merece: a dignidade em uma profissão nem sempre tão valorizada. Ao assistir-lhe, mesmo uma análise estruturalista como essa, que não costuma considerar nenhum elemento que esteja de fora da obra artística, não consegue não relacionar a atriz com a personagem que ela interpreta. Isso porque Wanda, a personagem, é como Paz, uma atriz, sendo que a principal diferença que divide ambas é o fato da primeira ainda não ter conseguido o que merece e a segunda, aparentemente, sim. Essas informações, dessa forma, pairam na distância entre o público e a performance de Bárbara Paz interpretando Wanda com ganhos positivos à obra: torce-se por Wanda talvez mais do que o seria fosse a personagem interpretada por outra pessoa. Nesse sentido, o personagem do dramaturgo (Baitelli) é ainda mais algoz.

Paz e Baitelli percorrem os diversos níveis de expressão várias vezes. Da irritação exagerada do telefonema inicial à aparição comedida da Venus em uma versão Marlene Dietrich, os dois personagens são vistos cada vez mais em sua totalidade significativa. A história individual da atriz e do dramaturgo, a situação do teste (em que um se esforça para provar para o outro o valor do seu trabalho) e a história que une os personagens da peça dentro da peça não tem limites claros, de forma que, em vários momentos, as quebras são sutis. O efeito é cinematográfico, pois é somente porque o 24 quadros por segundo dão a impressão de continuidade que a ação na tela grande existe há mais de cem anos. No teatro de Babenco, o espectador, que não tem a variação em planos mas vê tudo sempre em plano geral, demora um certo par de segundos para entender o fim de uma cena e o início de uma outra e é essa zona de indefinição que alavanca o jogo de tensões. A suscetibilidade da atriz que chega no fim de um dia de testes vai revelando uma mulher mais forte do que parece. Por outro lado, o jovem e pedante dramaturgo vai deixando transparecer insegurança exposta pela sua irritabilidade. O espectador de “Venus em visom”, assim, há de perder boa parte da peça se não fruir com cuidado os muitos detalhes que Babenco, Paz e Baitelli disponibilizam: o tom de voz variável, a flexibilidade corporal em expressar tonos diferentes ao mesmo tempo, a capacidade de expressar a crítica e o distanciamento.

Sobre o grupo de artistas que assina os elementos outros da encenação (cenário, iluminação, figurino e trilha sonora), vale dizer que “Venus em visom” garante quadros sonoro-visuais de rara beleza. Do couro às peles, do espartilho ao suspensório, do vermelho às meias xadrez, o espectador tem diante de si uma obra visual e sonora quase tão positiva quanto também o espetáculo é enquanto teatro e dramaturgia. Parte do projeto Vivo EnCena, uma preciosa iniciativa da Vivo para as artes cênicas, eis aí uma peça de primeira grandeza. 

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Ficha técnica
Texto: David Ives
Tradução: Daniele Ávila Small
Direção: Hector Babenco
Elenco: Bárbara Paz e Pierre Baitelli
Direção de Produção: Cinthya Graber e José Carlos Furtado Filho
Cenário: Bia Junqueira
Figurino: Antônio Medeiros
Iluminação: Paulo César Medeiros
Projeto de som: Andrea Zeni
Relações Públicas/ Convidados: Liège Monteiro e Luiz Fernando Coutinho
Assessoria de imprensa: Liège Monteiro e Luiz Fernando Coutinho
Uma produção: Cinthya Graber e José Carlos Furtado Filho

Fim de partida (RJ)

"Fim de Partida" é a nova produção do grupo
Alfândega88
Foto: Dalton Valerio

Obra prima

“Fim de partida”, o espetáculo, é como é o texto: uma obra prima na sua condição artística. Escrito em 1957, o texto do irlandês Samuel Beckett está entre “Esperando Godot” e “Dias Felizes”, compondo a tríade de seus maiores textos e seus mais conhecidos também. Em todos, a tragédia, uma vez antiga, depois elisabetana e ainda clássica, ganha ares contemporâneos. Em Godot, o sentido é o elemento aprisionante. Em “Dias Felizes”, é o tempo. Aqui é a existência que insiste em continuar. No contexto, Hamm (Fernando Lopes Lima), que é cego e já não pode mais andar, subjuga seu criado Clov (Rafael Mannheimer) a todo o tipo de ordens. Os dois estão abrigados em um lugar que o público não reconhece, talvez uma casa. Em dois tonéis próximos de Hamm, os pais desse: Nagg (Silvano Monteiro) e Nell (Adriana Seiffert), insistindo, como o filho, em continuar vivos, apesar do fim da comida, dos remédios, da paralisia dos movimentos, da desconexão com a realidade. No entorno, um rato aparece, depois uma criança, uma barata também: tudo isso representa o perigo atroz da humanidade poder voltar a existir. É preciso, portanto, extirpa-los. A vida, afinal, precisa morrer. Na montagem do Grupo Alfândega88, preservam-se os elementos mais sutis do texto, esse tão minuciosamente escrito por Beckett. Na articulação dos signos com vistas ao espetáculo, deve-se dizer que a musicalidade é o que melhor funciona. Os diálogos apenas ditos, se pararmos de pensar no que eles significam e apenas ouvi-los, vão parecer uma canção no ouvido do espectador, cheia de melodia, ritmo e de harmonia, mas sem instrumentos musicais além da própria fala. Nada menos que excelente.

A direção de Danielle Martins de Farias apresenta um ótimo resultado. Quem conhece bom teatro sabe que ir em busca do sentido nos textos de Beckett é um erro terrível, pois é ele, o significado, quem vem atrás do leitor. Assim, a estrutura do texto que se torna espetáculo se organiza não para significar, mas para preparar um “ninho” confortável para o sentido que há de vir. Cada ator diz as palavras, buscando a neutralidade máxima possível. Os ritmos são pautados pela frieza também. Os gestos mínimos, do jogo de olhares ao andar manco de Clov, são partiturarizados com vistas a uma esterilidade que é conceitual na literatura de Beckett, mas é concreta e hábil na encenação de Farias. É, pois, a ombridade da peça que fará com que lha acolhamos, dando sentido, significado e atenção. Atenção especial ao monólogo final de Clov, sem dúvida um dos momentos mais célebres do teatro ocidental contemporâneo.

O trabalho de interpretação do elenco é sublime porque respeitoso. Os atores se curvam à vontade de Beckett nas mãos de Farias e apresentam o resultado de sua pesquisa que agiu no intento de dar a ver nuances, sem nenhum traço de histrionicidade. Quanto mais aponta-se para o mérito de Beckett, mais vemos o mérito da Alfândega88, pois, em temos de síndrome de celebridade, a humildade é elegantérrima. Destaque para as tensões de Adriana Seiffert, para a beleza da dicção de Monteiro, para a regularidade da prosódia de Lima e para os olhares precisos de Mannheimer.

Talvez o cenário de Sérgio Marimba seja o único ponto que deixa a desejar, porque explora os espaços vazios não do ponto de vista da sua esterilidade, mas pela ausência. O espectador vê as cortinas, as bambolinas, o interior da caixa cênica e essa concepção ajuda menos na sensação de aprisionamento (ou de abrigo). Porque o espectador precisa traduzir essa proposta, o cenário exige uma atenção que aí deixa de estar em outros elementos infelizmente.

O Alfândega88 é um grupo que é célebre na comunidade teatral do Rio de Janeiro por vários motivos, mas um deles, da ordem da estética, seja a sua pesquisa valiosa em como dizer o texto. As últimas montagens a que se teve assistido valorizam bastante a palavra e seus diversos usos. O feito é bem vindo principalmente porque a direção artística de Moacir Chaves é minuciosa, garantindo um selo de qualidade que já, de antemão, sugere um espetáculo da melhor qualidade.

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FICHA TÉCNICA
TEXTO: Samuel Beckett
TRADUÇÃO: Fabio de Souza Andrade
DIREÇÃO: Danielle Martins de Farias

ELENCO:
Adriana Seiffert _______________________ Nell
Fernando Lopes Lima ________________ Ham
Rafael Mannheimer ___________________ Clov
Silvano Monteiro ______________________ Nagg

ILUMINAÇÃO: Aurélio de Simoni
CENÁRIO: Sergio Marimba
FIGURINOS: Raquel Theo
DIREÇÃO ARTÍSTICA ALFÂNDEGA 88: Moacir Chaves