quinta-feira, 19 de outubro de 2017

Círculo da transformação em espelho (RJ)

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Foto: Rodrigo Castro

Fabianna de Mello e Souza, Alexandre Dantas, Sávio Moll, Carol Garcia e Júlia Marini

Méritos na encenação de um texto tolo


Escrita durante uma oficina de escrita dramática em 2008, “Círculo da transformação em espelho” é a segunda peça escrita pela jovem dramaturga americana Annie Baker. Sem quase qualquer coisa de relevante no texto, a obra se apoia exclusivamente nos méritos da direção e dos intérpretes. No Brasil, é a primeira aparição da autora em nossos palcos, chegando a partir da idealização e tradução de Rafael Teixeira em montagem dirigida por César Augusto e com Alexandre Dantas, Carol Garcia, Fabianna de Mello e Souza, Júlia Marini e Sávio Moll no elenco. Graças aos talentos e esforços deles, o espetáculo talvez não sucumba aqui como sucumbiu nos Estados Unidos e em Londres. Fica em cartaz até 29 de outubro no Teatro de Arena do Espaço SESC de Copacabana.

Dramaturgia muito superficial
Pretensamente realista, a dramaturgia tem um único ponto positivo: criar condições para que se saia do teatro refletindo sobre o fato de que nossas visões de mundo estão coladas à experiência temporal. Quando o tempo passa, e a paisagem muda, os posicionamentos poderão também se alterar e, nesse sentido, as sensações da gente sobre o que nos ocorre também se modifica. Fora isso, há uma justaposição de cinco personagens com histórias particulares pouco desenvolvidas e que, de modo muito superficial, se cruzam talvez apenas motivados pelo encontro casual.

A adolescente Lauren (Carol Garcia), a atriz Thereza (Júlia Marini) e o carpinteiro Shultz (Sávio Moll), esses dois últimos de meia idade, fazem um curso de iniciação teatral com Marty (Fabianna de Mello e Souza), tendo como colega o quase idoso James (Alexandre Dantas), marido da professora. Esses encontros, que se dão em uma pequena cidade fictícia do estado de Vermont, no noroeste dos Estados Unidos, se estendem durante seis semanas. Nas aulas, Marty conduz séries diversas de jogos teatrais por meio das quais o público tem a oportunidade de conhecer um pouco de cada participante. Lá pelas tantas, há um envolvimento amoroso entre dois personagens e fica mais clara uma discórdia entre outros dois. As aulas preparam o espectador para a cena final, que acontece anos depois do último encontro, que é quando a “mensagem final” (a expressão é péssima!) poderá ser absorvida.

Para além de não ter nada de sólido, o contexto geral da dramaturgia esbarra em três problemas. O primeiro deles é que o russo Anton Tchekhov já pautou a monotonia no teatro de modo ainda muito difícil de superar. E a própria Annie Baker sabe disso, tanto que seu primeiro prêmio como dramaturga se deu em 2012 por uma releitura dela de “Tio Vânia”. Além disso, o teatro realista americano ainda se serve de Edward Albee, de David Mamet, de Sam Shepard, Tennessee Williams, de Arthur Miller e de tantos outros excelentes escritores que exigem da análise muito cuidado antes de incensar jovens talentos. Isso nos leva ao segundo problema: “Circle Mirror Transformation” ficou apenas dois meses e meio em cartaz na Off-Broadway (em montagem dirigida pelo orientador de Baker na oficina de dramaturgia) e um mês em cartaz em Londres, o que nos mostra que nem em seu próprio idioma a peça foi bem aceita pelo público (ainda que a montagem americana tenha ganhado alguns prêmios pelos méritos da encenação). A última questão é: considerando a profusão de novos autores brasileiros e também de oficinas em que novas dramaturgias são escritas, sem falar nos escritores já com carreira consolidada por aqui e nos nossos países vizinhos, “Círculo da transformação em espelho” parece ter versão brasileira unicamente sustentada por um colonizado apego ao que é estrangeiro. Em outras palavras, se o tédio e a monotonia não sustentam o texto, se a proposta estética dele também não é relevante, se tampouco a obra dramatúrgica se destacou no seu país de origem, por que um produtor brasileiro vai investir nisso?

Os méritos da encenação
Aparte os problemas da dramaturgia, valem reconhecer alguns méritos da encenação. A direção de César Augusto, assistido por Pedro Uchoa, visivelmente parece ter percebido que do nada não poderia sair muito e optou por uma estrutura espetacular bastante simples. Não há grandes entradas e saídas, as marcações são bem simples, quase não há cenário e os investimentos estéticos em luz e em figurino são poucos também. Ao concordar com o texto, a montagem não pesa, mas positivamente permanece leve, modesta, sem pretender grande saltos que não poderia dar.

Os figurinos de Ticiana Passos e o cenário de Mina Quental, em mesma direção, colaboram na constituição de um quadro simples, mas digno e muito honesto em suas limitações. A luz de Adriana Ortiz praticamente se mantém aberta durante toda a encenação, respeitando o contexto de “Sala de Ensaio”, onde noventa porcento da narrativa acontece. Sendo Augusto, Passos, Quental e Ortiz profissionais já muitas vezes elogiados no mercado por seus recursos criativos, há que se destacar positivamente o modo como se limitaram aqui para não atrapalhar.

No geral, dentro da proposta e considerando o material que tinham em mãos, todas as interpretações são positivas, embora se reconheçam maior e menor mérito, observando os desafios irregulares dos personagens. Carol Garcia (Lauren) e Fabianna de Mello e Souza (Marty) tiveram mais dificuldades de vencer porque seus personagens são mais isolados que os demais. Tanto uma como a outra, com raras exceções, só tiveram oportunidades de boas contracenas (aquelas com conflitos minimamente definidos) quando juntas do grupo inteiro, problema que pulveriza as ofertas e acaba por valorizar seus empenhos como atrizes. Já Alexandre Dantas (James), Júlia Marini (Thereza) e Sávio Moll (Shultz) tiveram mais chances de mostrar trabalho, aproveitando todas elas e ganhando destaques propiciados desde a dramaturgia. Suas figuras, com contornos mais definidos, ficaram mais claras para o público. Justifica-se, assim, o equilíbrio do grupo.

Boa
“Círculo da transformação em espelho”, em geral, é uma boa peça que fica bem melhor se considerada a tolice da dramaturgia.


*

Ficha técnica

Texto: Annie Baker

Idealização e tradução: Rafael Teixeira

Direção: Cesar Augusto

Elenco / Personagem:

Alexandre Dantas / James

Carol Garcia / Lauren

Fabianna de Mello e Souza / Marty

Júlia Marini / Theresa

Sávio Moll / Schultz

Direção de movimento: Dani Cavanellas

Assistente de direção: Pedro Uchoa

Cenário: Mina Quental

Iluminação: Adriana Ortiz

Figurinos: Ticiana Passos

Programação visual: Daniel de Jesus

Fotos: Rodrigo Castro

Vídeos: tocavideos – Fernando Neumayer e Luís Martino

Direção de produção: Luísa Barros

Produção executiva: Ana Studart

Administração financeira: Amanda Cezarina

Assessoria de imprensa: JSPontes Comunicação – João Pontes e Stella Stephany

Realização: Sesc Rio



Tom na fazenda (RJ)

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Foto: divulgação

Gustavo Vaz e Armando Babaioff


Uma das melhores peças de 2017

Tom na fazenda” é uma das melhores peças de 2017 no teatro carioca, tendo já ganhado as principais indicações aos Prêmios Shell e Cesgranrio do ano e recebido inteiramente críticas bastante positivas tanto no Rio de Janeiro como em São Paulo. Escrito pelo franco-canadense Michel Marc Bouchard em 2010, o texto é o primeiro do dramaturgo montado no Brasil. Rodrigo Portella assina um excelente trabalho de direção em que o uso do espaço e o modo como estabelece a tensão se articulam em uma proposta estética que une a dramaturgia original e a versão fílmica que a peça recebeu em 2013 pelas mãos de Xavier Dolan. No elenco, Armando Babaioff, que interpreta o personagem título, está em seu melhor trabalho. Ele divide o palco com Gustavo Vaz, Kelzy Ecard e Camila Nhary, todos também em performances muito meritosas. O espetáculo, em que se veem brilhantes contribuições do cenário, do figurino, da luz e da trilha sonora, está atualmente em cartaz no Teatro Poerinha, em Botafogo, na zona sul da capital fluminense.

Um texto brilhante!
A história começa com a chegada do publicitário Tom (Armando Babaioff) à casa da família de seu namorado logo após o falecimento desse como vítima de um acidente automobilístico. É aí que, conhecendo Ágatha (Kelzy Ecard), a mãe do falecido, o protagonista descobre que a orientação sexual do morto era um tabu em sua pequena cidade de origem. Tom conhece também Francis (Gustavo Vaz), filho mais velho de Ágatha, que, desde o início, deixa clara a sua antipatia pelo visitante desconhecido bem como por qualquer motivo que possa tê-lo trazido ali. De modos diversos, a mãe e o irmão de seu namorado acabam convencendo Tom a permanecer entre eles alguns dias na fazenda.

O texto reaviva uma história que compõe a coletânea “Les Limbes”, que Bouchard escreveu em 1995 e que nunca foi encenada. Em 2010, “Tom à la ferme” foi levado às mãos do diretor Claude Poissant, que encenou a primeira versão da peça em janeiro de 2011 em Montreal, no Canadá. A montagem brasileira, cuja tradução é assinada por Armando Babaioff, parte da adaptação para cinema dirigida por Xavier Dolan, mas com roteiro desse e do próprio Bouchard. De uma para outra e chegando à terceira, houve um aprofundamento vertiginoso do psicologismo da situação com ênfase na complexidade dos signos que dão a ver a narrativa.

No passado, o namorado de Tom abandonou o interior e partiu para a grande metrópole. Agora é Tom quem faz o caminho de volta. Ele vem para enterrar o falecido, mas, de algum modo, acaba ele próprio enterrado em um buraco do qual é difícil de sair. Como publicitário, o visitante trabalha com imagem, com identidade, mas, no recorte da narrativa, ele tem acesso a outras perspectivas dessas questões. Há duas mortes e um parto; há uma família cerceada pelo olhar alheio, mas com membros extremamente solitários. Tom manda mensagens de áudio para o WhatsApp de seu namorado ausente que nunca serão ouvidas por ele. No entanto, conhece segredos do outro aos quais nunca até então teve acesso. Essas e outras ambivalências que organizam a estrutura dramática são pontos-limite cujos elos de ligação expõem a complexidade a partir da qual Bouchard, Dolan e Babaioff parecem ter preferido na sua visão do homem. Em uma frase célebre de uma de suas entrevistas, o dramaturgo diz que “os homossexuais aprendem a mentir antes mesmo de aprender a amar”. Longe de um juízo de caráter, a fala trata de uma dimensão de teatralidade. Envolvida em processos discursivos de construção, defesa e de expressão da identidade, ela tem tudo a ver com uma narrativa em que quatro personagens têm pontos de vista muito diferentes sobre um quinto que já morreu. Eis aqui um texto brilhante!

Excelente direção de Rodrigo Portella
A direção de Rodrigo Portella em “Tom na fazenda” é o seu melhor trabalho em um universo de outros já bem elogiados. A articulação de todos os elementos estéticos da obra evidencia uma concepção rica em possibilidades e que se expressa por meio de quadros muito profundos. Em primeiro lugar, há que se prestar a atenção no uso do espaço. O palco aberto, sem cortinas nem móveis tira dos personagens qualquer moldura na qual eles poderiam se apegar. A opção traz à superfície a solidão e o sentimento de perda e os obriga a se conectar entre si na falta de qualquer coisa ou pessoa melhor. A tensão desenvolvida nesse aspecto se mantém nos modos como as falas aparecem na dramaturgia cênica. Há uma série de silêncios maiores ou menores em meio aos quais as relações entre os pontos se cruzam. Nesses intervalos, a perspectiva impressionista se impõe, garantindo que a paisagem vista por Tom possa chegar ao espectador corrompida por seus filtros, o que é muito interessante.

Outro destaque da encenação é a maneira como o barro se torna um signo forte. Tanto na tradição judaico-cristã como na africana, o homem veio do barro e a ele volta. Durante as quase duas horas de espetáculo, os personagens vão se enlameando na “sujeira” que domina o chão sob seus pés de modo que suas características particulares vão gradualmente sumindo. É como se a peça estabelecesse uma curva em direção à materialidade mais profunda do homem, ao lugar onde todos se encontram. Além de belo, é um feito inteligentíssimo.

Por fim, Portella usa bem todos os níveis que tem em mãos: os atores se deitam, andam e são alçados a voos em uma rica exploração do panorama que permanece no olhar por sobre os outros elementos do texto espetacular como o cenário de Aurora dos Campos, o desenho de luz de Tomás Ribas e o figurino de Bruno Perlatto. Esses últimos colaboram com o espetáculo na medida em que ocupam seus espaços, elevando as possibilidades visuais da obra. Já elogiado, a jeito como o chão invade os personagens e os enterra exige a participação da luz e do figurino: a primeira estabelecendo o choque e o segundo se neutralizando.

É, no entanto, na concepção sonora e na direção musical de Marcello H. que “Tom na fazenda” atinge seus patamares mais elevados entre os elementos externos às interpretações. Mais uma vez, H. incluiu a banda sonora em uma produção cênica de modo a inventar um novo personagem. Graças ao som, o público tem chances de fruir, em primeiro lugar, um certo isolamento da propriedade onde quase toda a peça acontece e o resto do mundo. Em segundo lugar, na medida em que as cenas vão acontecendo, a música revela variações na intimidade entre as figuras. Por fim, H. realça o silêncio dos diálogos, escrevendo falas musicais nos intervalos de Bouchard, colaborando com a manutenção da tensão provavelmente sonhada por ele, por Dolan e por Babaioff.

Os destaques de Armando Babaioff e de Gustavo Vaz
Kelzy Ecard e Gustavo Vaz
Todo o elenco apresenta valorosos trabalho de interpretação. Camila Nhary, que interpreta Sara, a amiga de Tom e de seu namorado falecido, tem uma participação relativamente pequena na dramaturgia, mas marcante também no espetáculo. Sua personagem entra na narrativa para salvar um amigo, mas, de algum modo, acaba salvando outro, enquanto reestabelece o contato entre o mundo externo e a situação interna. E a atriz meritosamente pauta esse estranhamento, se utilizando dos bons recursos expressivos de que dispõe. Kelzy Ecard, que já foi a Mãe em outra história também filmada por Xavier Dolan (“Apenas o fim do mundo”, filme de 2016), traz sua melhor força para a personagem Ágatha, contribuindo com a montagem sem aparentemente grandes desafios.

Gustavo Vaz e Armando Babaioff repetem a dupla formada em 2009 em “Na solidão dos campos de algodão”, de Bernard-Marie Koltès, com direção de Caco Ciocler, mas agora em trabalhos muito melhores. Os dois, protagonista e antagonista, são a força que sustenta todos os demais aspectos da encenação que gravitam em seu redor. Se os outros elementos caracterizam o conflito, esse surge através de seus personagens Francis e Tom. E o resultado é muito positivo. Ambos os intérpretes apresentam excelentes trabalhos de corpo e de voz por meio dos quais se ouvem diálogos precisos e figuras interessantes em universos, a princípio opostos, mas que depois talvez nem sejam tanto. Há uma masculinidade vibrante que mantém a narrativa vinculada à questão LGBT, mas sem estar presa a ela, permitindo que se invista em voos mais altos, como a própria humanidade, por exemplo. Eis dois trabalhos excelentes que elevam os méritos dos atores na programação carioca desse ano.

Para ver, rever e aplaudir!
“Tom na fazenda” também estreou esse ano na Ucrânia, na Alemanha e na Venezuela depois de já ter sido montado em muitas outras cidades do mundo nesses apenas sete anos desde sua escritura. Em uma montagem sem patrocínio e que depende inteiramente do público, a produção tem colhido o calor das audiências em retribuição ao excelente espetáculo que apresentam. Vale a pena ver, rever e aplaudir!

*

Ficha técnica:

Texto: Michel Marc Bouchard

Tradução: Armando Babaioff

Direção: Rodrigo Portella


Elenco:

Armando Babaioff - TOM

Kelzy Ecard - ÁGATHA

Gustavo Vaz - FRANCIS

Camila Nhary - SARA



Cenografia: Aurora dos Campos

Iluminação: Tomás Ribas

Figurino: Bruno Perlatto

Concepção Sonora e Direção Musical: Marcello H.

Guitarra e Violões: JR Tostoi

Preparação Corporal: Lu Brites

Coreografia: Toni Rodrigues

Hair Stylist: Ezequiel Blanc

Fotografia: José Limongi, Renato Mangolin e Ricardo Brajtman

Assessoria de Imprensa: Bianca Senna e Paula Catunda

Direção de Produção: Sérgio Saboya

Produção Executiva: Milena Monteiro

Assistente de Produção: Pri Helena

Produção: Galharufa Produções

Idealização: ABGV Produções Artísticas

domingo, 1 de outubro de 2017

Omi – do leito ao mar (RJ)

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Foto: divulgação

Kadú Monteiro, Ivan de Oliveira, Michael Alves, Erika Ferreira e Nívea Santana


Belíssimo musical para toda a família valoriza as lendas africanas

O belíssimo musical “Omi – do leito ao mar” termina hoje sua temporada no Teatro Glaucio Gill, em Copacabana, zona sul do Rio de Janeiro. Produzido pela Cia. Ávida, de São Gonçalo, ele tem seu texto escrito por Gabriel Mendes, que também assina a direção. No elenco em ótimas interpretações, Nívea Santana, Kadú Monteiro, Michael Alves, Erika Ferreira e Ivan de Oliveira, esses dois últimos em preciosos destaques, apresentam em torno de cinco lendas da mitologia africana. Todas elas têm a ver com a água (“omi” em ioruba), mas a narrativa trata também de muitos outros temas além desse. Os figurinos de Valério Bandeira e a música original de Kadú Monteiro são dois entre os melhores elementos de toda a encenação. Vale a pena torcer para que o espetáculo volte a cartaz novamente.

Dramaturgia a partir de lendas africanas
A peça começa com a entrada de cinco lavadeiras, trazendo seu trabalho para as margens de um rio. Enquanto executam sua lida, lhes vêm histórias antigas à cabeça que umas contam para as outras. A primeira delas é de Oxalá (Nívea Santana) que, com a ajuda de Nanã Burucu (Ivan de Oliveira), conseguiu criar o primeiro homem da terra com a condição de que, ao morrer, o homem devolvesse todo o material com o qual tinha sido criado. A perenidade da vida humana, como marca indelével de sua natureza, é um dos primeiros temas da lenda que abre a peça.

A narrativa continua com a lenda de Euá (Michael Alves), que precisou transformar-se em rio para salvar da morte seus dois filhos; de Oloú (Alves também), que foi castigado por Oxum (Erika Ferreira) pelos maus tratos a sua esposa Prenda Bela (Ivan de Oliveira); e do Rei dos Nupes (ou Oxaguiã) (Kadú Monteiro), que, com a ajuda de Iansã (ou de Odô-Oiá) (Nívea Santana), salva seu povo.

A última história é uma lenda de Iemanjá (Kadú Monteiro), que se casou com Oquerê, o Rei de Xaci (Ivan de Oliveira), sob a condição de que esse nunca comentasse a respeito de seus seios fartos. Um dia, porém, embriagado, Oquerê quebrou o pacto e, por causa disso, Iemanjá fugiu com a ajuda de um presente de sua mãe Olocum, transformando-se em rio. Oquerê, para impedir a fuga da esposa, transformou-se em montanha, mas Xangô, filho de Iemanjá, com um raio, partiu o monte em dois, criando um vale. O rio, assim, pode seguir livremente seu curso até o mar. Fidelidade, família, carinho e liberdade são os temas dessa última lenda.

Direção de Gabriel Mendes com belíssima trilha sonora e excelente figurino
“Omi – do leito ao mar” teve sua origem a partir de uma esquete que participou do 7o Niterói em Cena, em 2014. Depois de lá, participou de outros festivais, obtendo bastantes elogios até se tornar um espetáculo longo. Nessa versão, ele tem aproximadamente oitenta minutos em um belíssimo uso do tempo. Esse aspecto, mérito fundamental da direção de Gabriel Mendes, que também assina a dramaturgia, se dá a ver pela maneira como os signos teatrais estão articulados. O espetáculo começa com um palco praticamente vazio e, ao longo de sua realização, as cenas vão encontrando seu lugar e se transformando em um ritmo equilibrado e saboroso. Nisso também se veem a colaboração, principalmente, da trilha sonora e do figurino.

A trilha sonora original de Kadú Monteiro é belíssima e faz lembrar, com muita honra, do trabalho que a Barca dos Corações Partidos vêm desenvolvendo a partir de espetáculos como “Auê” e como “Ariano Suasssuna – O auto do Reino do Sol”. As músicas surgem encantadoras, ganhando o tempo e o espaço da narrativa, mas, ao mesmo tempo, impondo suas particularidades, o que eleva as qualidades da obra. Por si só, são um espetáculo a parte. A direção musical é assinada por Monteiro, mas também por Raquel Terra. Nelson Gaia, Silvano Marciano, Walace Dantas e Raquel Terra são os músicos que executam todos os sons ao vivo durante o espetáculo.

O mesmo que se disse das canções, pode-se dizer do figurino – que é também o cenário – de Valério Bandeira. Das próprias roupas que os personagens usam, com o auxílio das trouxas que as lavadeiras trazem para lavar, saem belíssimas imagens que compõem quadros visualmente bastante potentes. Dessa forma, a variedade das histórias encontra eco nas possibilidades imagéticas de sua realização em cena, alimentando o interesse e colaborando positivamente para o excelente ritmo da narrativa.

A valorização da cultura africana
Sobre os trabalhos de interpretação, vale destacar o uso do corpo por Michael Alves e as excelentes vozes de Erika Ferreira e de Ivan de Oliveira. No todo, os cinco intérpretes apresentam bom repertório expressivo na viabilização do enorme número de personagens, se servindo do, mas também colaborando para o enorme carisma do espetáculo. Em conjunto, o grupo canta lindamente (Kadú Monteiro e Erika Ferreira em especial) e, com perceptível integração, defende de maneira unânime a obra que disponibilizam.

“Omi – do leito ao mar”, em tempos em que se descobre a cultura africana, e se apaixona por ela, colabora lindamente com a extinção do preconceito cultural. Trata-se de um belíssimo espetáculo que cumpre com habilidade, além da função de existir como obra de arte, a tarefa de integrar diferenças, fazer conhecer e ajudar a respeitar. Aplausos!

*

Ficha técnica
Adaptação e Texto: Gabriel Mendes
Cenário: Ronald Lima
Figurino e Maquiagem: Valério Bandeira
Direção Musical: Kadú Monteiro e Raquel Terra
Músicas: Kadú Monteiro
Direção de Movimento e Preparação Corporal: Anderson Hanzen
Preparação para Canto: Marília Serrapio
Iluminação: Raphael Grampola
Direção Geral: Gabriel Mendes
Stand-in: Anderson Hanzen
Produção: Erika Ferreira, Kadú Monteiro, Nívea Santana e Gabriel Mendes
Assistente de Produção: Fernanda Fernandes
Apoio de produção: Luciano Barbosa
Ilustrações: Rogério Nery
Programação Visual: Tiago Torres
Fotos: Bernardo Marques
Teaser e Vídeo: Tom Marinho
Assessoria de Imprensa: Márcia Demézio
Costureiras: Denise Chagas (figurino) e Norma Sueli Farias (adereços)
Elenco: Erika Ferreira, Ivan de Oliveira, Kadú Monteiro, Michael Alves e Nívea Santana
Músicos: Nelson Gaia, Silvano Marciano e Walace Dantas