domingo, 28 de setembro de 2014

BlackBird (RJ)

Foto: divulgação
Viviani Rayes e Yashar Zambuzzi em cena


Ótima peça sobre o amor, os instintos sexuais e os padrões éticos e morais


O melhor da encenação de “BlackBird” é o caráter humano com que o diretor Bruce Gomlevsky narra a história escrita pelo escocês David Harrower. Lançado em 2005, o texto premiado parte de um romance real vivido, em 2003, por um ex-fuzileiro naval de trinta e um anos e uma menina quase vinte anos mais jovem. Primeira montagem do texto no Brasil, esse espetáculo está em cartaz no Teatro Glaucio Gill com Yashar Zambuzzi e Viviani Rayes no s papeis principais.

Atualmente Toby Studebaker cumpre pena em prisão americana, mas, no início dos anos 2000, ele lutou pelo seu país, os Estados Unidos, contra os talibãs que derrubaram as Torres Gêmeas e foram seus inimigos na guerra do Afeganistão. Depois de um ano conversando pela internet, o oficial licenciado se encontrou, no norte da Inglaterra, com Shevaun Pennigton que, embora dissesse ter 19 anos, tinha, na verdade, apenas 12 naquela ocasião. Com a desculpa de que sairia para compras, a garota fugiu com Studebaker para Londres e para Paris em julho de 2003. Preso em Frankfurt, Studebaker foi considerado culpado e sentenciado a um total de 15 anos de prisão, os quais deverão encerrar por volta de 2018. Baseado nessa história, David Harrower escreveu “BlackBird”, título que se deve à canção jazz “Bye, Bye Blackbird”, de Ray Henderson, em cuja letra (Mort Dixon) consta que “Ninguém aqui pode me amar, nem me entender”.

Na peça, aos 27 anos, a jovem Una (Viviani Rayes) reencontra Ray (Yashar Zambuzzi), de 55 anos, depois de ter visto uma foto dele no jornal. Quinze anos antes, Una era uma criança de 12 anos quando encontrou o já quarentão Ray, amigo de seu pai. Os dois se apaixonaram e fugiram juntos, mas a “aventura” terminou em um quarto de hotel de estacionamento, quando ele foi preso e sentenciado a onze anos de prisão. Na primeira cena do espetáculo, Ray está em seu trabalho, já casado e tentando reconstruir sua vida.  Diante da visita inesperada de Una, ele precisará voltar e rever o passado. O que um terá a dizer para o outro?

O autor David Harrower e o diretor Bruce Gomlevsky têm o mérito de deixar para o público julgar a situação, embora a culpa de Ray (uma referência a Toby Studebaker) seja preservada. “... todos sabemos que esse tipo de relacionamento não deve acontecer,” declara o dramaturgo. À parte, no entanto, do que diz a legislação internacional e do bom senso, como descrever o tipo de sentimento que, no passado e talvez no presente, uniu e une esses dois personagens? No caso real, o fato deles terem se conhecido através da internet gerou discussões vitais sobre os perigos da exposição virtual. Em “BlackBird”, com dois personagens conversando pela primeira vez depois de tantos acontecimentos, em um só ato, com um só cenário e figurino, ficam as interrogações contínuas que surgem a partir de cada nova revelação.

Rayes e Zambuzzi apresentam bons trabalhos de interpretação, considerando a dificuldade do texto, o caráter ético e moral que paira sobre ele e o ritmo arrastado que a situação prevê. O realismo de que a montagem está adequadamente investido foca todas atenções nos diálogos. A peça se passa (cenário de Pati Faedo) em uma sala abandonada de trabalho, com muito lixo, pé direito baixo e atmosfera claustrofóbica. A luz (Elisa Tandeta) é quente, os figurinos (Ticiana Passos) corretamente não chamam a atenção e a trilha (Marcelo Alonso Neves) apenas pontua sensivelmente o ritmo e o clima. Tudo converge para a oposição entre o ponto de vista de Ray e o de Una por sobre a mesma história e o que poderá acontecer a partir dali. Do elenco, participa ainda Lorena Comparato, interpretando bem a filha da atual esposa de Ray.

Em “BlackBird”, de um lado, há o preciosismo da dramaturgia que cria vários pontos de mudança a partir dos quais a trama apresenta boas reviravoltas. De outro, a montagem como um todo pauta um tema celebrizado por “Lolita”, de Vladimir Nobokov, e por vários outros autores antes e depois, mas que é sempre atual: o amor entre pessoas de idades diferentes, os instintos sexuais versus os padrões éticos e morais que hora temos em nossa sociedade. Ótimo! Parabéns!

*

Ficha técnica:

Elenco:
Viviani Rayes
Yashar Zambuzzi
Lorena Comparato

Texto: David Harrower
Tradução: Alexandre J. Negreiros
Direção: Bruce Gomlevsky
Direção de produção: Viviani Rayes
Produção executiva: Yashar Zambuzzi
Coordenação de produção: Rafael Fleury
Cenário: Pati Faedo
Figurinos: Ticiana Passos
Iluminação: Elisa Tandeta
Trilha original: Marcelo Alonso Neves
Assistência de direção: Francisco Hashiguchi
Assistente de produção: Antônio Barboza

sábado, 27 de setembro de 2014

Dona Encrenca só muda o endereço (RJ)

Foto: divulgação 
Bemvindo Sequeira em cena

O mérito da alegria


“Dona Encrenca só muda o endereço” é o stand-up comedy de Bemvindo Sequeira, um dos maiores comediantes vivos desse país. Restreando em cartaz, desde o início de setembro, no Teatro Oi Casa Grande, no Leblon, a produção garante mais de 1h30min de gargalhadas. O texto é baseado em anedotas sobre o universo dos casais já próximos da velhice: as diferenças entre homens e mulheres, o enfrentamento dos desafios da velhice, a comparação entre velhos e jovens, os valores no mundo de hoje e os de outrora. 

Sem a criação de tipos, mas com visível esforço na sustentação de um personagem cheio de nuances, Bemvindo Sequeira usa o ritmo da comédia e seu carisma em prol da estruturação de um monólogo muito engraçado. Tudo o que tem de conservadora, a peça também tem de politicamente incorreta. Tudo o que, na dramaturgia desse espetáculo, pode ser chamado de ingênuo também pode ser visto como irônico. Machista, sexista, elitista, preconceituoso, o personagem-narrador, aristotelicamente trazendo à superfície o que há de pior no ser humano, passa diariamente por agruras de vários tipos, fazendo com que qualquer espectador rapidamente se identifique, mas também se distancie.

Ao longo da peça, a relação com a plateia é conduzida excelentemente: o público ri de si mesmo, talvez de nervoso e de decepcionado de si próprio, para, em seguida, refletir. Com fortes marcas de ingenuidade, a performance do comediante diverte, mas deixa claro que expõe todas as mazelas sociais que são reproduzidas diariamente ou com as quais se concorda infelizmente de forma que, dadas as contradições, fica-se diante de uma sociedade complexa que é , ao mesmo tempo, humana e fria. Por tudo isso, “Dona Encrenca só muda o endereço”, embora pareça boba e despretensiosa, é, na verdade, um excelente retrato que a boa comédia pode devolver ao homem por trás do ingresso. Longe de produzir alienação, o humor negro de Bemvindo merece os mesmos elogios pelos menos motivos que atualmente se costuma dar ao norte-americano Nicky Silver, por exemplo.

O maior mérito, e segurar a atenção da plateia por mais de noventa minutos é algo dificílimo, é o de fazer o personagem rir de si mesmo. Disso pode advir o carisma que esse stand-up comedy apresenta enquanto gênero. Localizado no proscênio, o ator fala com o público sobre si mesmo, variando o tom na medida que as repostas vão sendo recebidas. Com quase 50 anos de carreira, Bemvindo Sequeira ganha aplausos renovados por oferecer, de jeito simples e valoroso, a alegria necessária tanto quanto e com igual mérito de todos os outros sentimentos e sensações. Aplausos!

Tríptico Samuel Beckett (SP)

Foto: divulgação
Aos 84 anos, Nathalia Timberg interpreta seu primeiro Beckett

A peça é que não é boa

“Tríptico Samuel Beckett” é uma peça mais difícil do que poderia ser. O escritor irlandês, cujo nome consta no título da produção dirigida por Roberto Alvim, é famoso por vários motivos, entre eles o de não ser um autor de textos fáceis de ler, de se montar e de se lhes assistir. Por causa disso, há mérito em todo e qualquer esforço em sugerir o contrário, considerando que se trata de um do maiores autores do teatro universal. Essa montagem infelizmente não tem esse mérito. Com Nathalia Timberg, Juliana Galdino e Paula Spinelli no elenco, “Tríptico” cumpriu temporada no Espaço Sesc Mezanino, em Copacabana, zona sul do Rio de Janeiro, deixando um gosto amargo no aplauso dado.

Publicadas em 1989 no livro “Nohow on”, as três últimas novelas curtas de Samuel Beckett (1906-1989) são fiéis às suas obras iniciais. “Companhia” (1980), “Mal visto mal dito” (1982) e “Para o pior avante” (1984) revelam um ponto de vista chamado de absurdo por Martin Esslin, porque parte de um lugar alternativo à toda lógica (ou falta de) do mundo expresso pelo teatro realista. A “dificuldade” dos textos de Beckett, de um modo geral, está no fato de que não são seus personagens que criticam essa “lógica”, pois eles são vítimas desse sistema, arrasados por ele, submersos. Por outro lado, o leitor tem diante de si a visão geral que os personagens não têm e pode, por isso, reconhecer as falhas do mundo e defender uma nova ideia.

Em “Tríptico Samuel Beckett”, Paula Spinelli, Juliana Galdino e Nathalia Timberg interpretam personagens que têm consciência o suficiente para serem protagonistas e sujeitos de suas condições negativamente. Talvez por isso, a montagem dirigida por Roberto Alvim seja tão chata. O jogo da peça com o público é manifestadamente o de esconde-esconde, em que o leitor vai “pescando”, na medida do possível, as partes do quebra-cabeça com o objetivo de ter, ao final, o mesmo retrato do mundo que as personagens desde o início têm. Ou seja, ao invés de defender as figuras, se emocionar com elas e sustentar uma posição privilegiada, à plateia cabe apenas um certo tipo de admiração tal como no (mal) teatro realista tão odiado pelo dramaturgo.

A alta carga imagética das palavras do texto, os diversos sons na entonação das falas e a não-linearidade do discurso deixam de ser chagas dos personagens em uma situação desoladora (a mesma possível de ser encontrada em um mundo em que trabalhadores passam fome, vagabundos tomam sucos de laranja por R$20, políticos corruptos vencem eleições e pessoas honestas não se interessam por política) e se tornam, nessa encenação, uma mera galeria de possibilidades em bons intérpretes. Em outras palavras, “Tríptico Samuel Beckett” oferece a certeza de que Galdino, Spinelli e Timberg são boas atrizes e podem construir bons trabalhos, mas não conta bem uma história e nem disserta bem sobre um tema. A exposição das três fases da vida, a menina de saia plissada, a mulher madura de abrigo e a senhora de cabelos brancos, conta uma historinha linear com início, meio e fim pobremente. No original, a justaposição dos três momentos diferentes evidencia que o absurdo do mundo, na opinião de Beckett, não é um fato isolado, mas uma conclusão mais ampla e terrível.

“Tríptico Samuel Beckett” tem gosto amargo porque parece nos chamar de burros uma vez que é muito difícil manter a atenção na cena, apesar de Samuel Beckett, de Roberto Alvim e de Nathalia Timberg. Nós não somos burros, tampouco Beckett, Alvim ou Timberg são mal intencionados. O espetáculo é que não é bom. 

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Ficha técnica
Texto: Samuel Beckett
Direção, Tradução e Adaptação: Roberto Alvim
Elenco: Nathalia Timberg, Juliana Galdino e Paula Spinelli
Trilha Sonora Original: L.P. Daniel
Cenografia e Iluminação: Roberto Alvim
Figurinos: Juliana Galdino
Visagismo: Alex (Salão Pierà)
Assistente de Direção: Ricardo Grasson
Cenotécnica: Juliana Fernandes
Técnico de Palco: José Renato Forner
Operador de Luz: Jota Michilis
Operador de Som: Don Correa
Direção de Produção: Maria Betania Oliveira e Ricardo Grasson
Produção Executiva: Martina Gallarza

quinta-feira, 25 de setembro de 2014

Lampião e Lancelote (RJ)

Foto: divulgação
Marcos Damigo e Fabio Lago

 Belíssimo!


                “Lampião e Lancelote” é um dos melhores espetáculos brasileiros de 2013, com vários prêmios, incluindo o troféu Bibi Ferreira de Melhor Musical Brasileiro. Escrito a partir do premiadíssimo livro homônimo de Fernando Vilela, a peça dirigida por Debora Dubois narra o fictício encontro entre o lendário cavaleiro Lancelote, da Europa Medieval, e o cangaceiro Lampião do sertão nordestino. Qual dos dois é mais valente? O Narrador, interpretado por Cássio Scapin, conduz a história adaptada por Braulio Tavares e protagonizada por Fabio Lago e por Marcos Damigo. Zeca Baleiro assina a trilha original e a direção musical dessa excelente produção que fez uma pequena temporada no mês de agosto no teatro do shopping Fashion Mall, mas merece maiores.

                A composição dos diálogos em verso espalha a musicalidade por todos os cantos dessa aventura cheia de significados. Parte das lendas medievais da Europa, o cavaleiro Lancelote (Damigo) precisava encontrar um inimigo que fosse tão bravo quanto ele. Foi a feiticeira Morgana (Vanessa Prieto) que, por amor ao herói, deu vida a essa possibilidade fantástica. Assim, um representante da Távola Redonda do Rei Arthur se vê diante do cangaceiro Virgulino Ferreira da Silva, vulgo Lampião (Lago), e do seu bando composto por Maria Bonita (Luciana Carnieli). Líder de vários rebeldes do sertão nordestino, Lampião é acusado de vários crimes, mas também celebrado como alguém que ajudou para diminuir as injustiças sofridas pelos mais pobres de sua região. A civilidade da corte de Camelot versus a simplicidade e a dureza da caatinga são as bases que movimentam a história pela oposição dos elementos e pela equivalência das forças. Quem será o vencedor? Do livro de Vilela, à adaptação de Tavares, passando pela direção de Dubois e pela trilha sonora de Baleiro, chegando às interpretações e às demais contribuições estéticas da equipe envolvida, a produção se apresenta em potência imagética, cênica e musical, de altíssimo nível.

                O cenário de Duda Arruk aproveita várias possibilidades do palco, oferecendo cenas nos diversos níveis: os ao fundo e os mais próximos do público. Há cenas que surgem do chão e elementos dispostos no alto, entradas que estabelecem quadros diferentes bem articulados pela direção e bastante belos também. O figurino de Marcio Vinicius é rico em detalhes, variando nos tons prata e cobre para sustentar a oposição entre Lancelote e Lampião, mas também oferecendo novas possibilidades para o olhar nas cenas individuais. Nesse sentido, o ritmo não fica apenas sob responsabilidade, e mérito, das canções originais, mas positivamente surge como conceito da ótima direção e da iluminação de Debora Dubois.

                Não bastasse o sucesso de todos os elementos, a interpretação dos atores é excelente no conjunto e nas partes. Marcos Damigo dá a ver um Lancelote másculo, mas não menos ingênuo e gracioso, emprestando ao personagem a pele e os olhos claros. Fabio Lago viabiliza um Lampião decidido e vigoroso com a aspereza e a bravura do homem do sertão. Cássio Scapin dá vida para as cenas em que a história se apresenta, se narra e se finaliza com agilidade, envolvendo o público, oferecendo à figura o seu carisma conhecido pelos seus trabalhos na TV. A cena do diálogo entre os dois personagens-título emociona também pela forma como todos os personagens se envolvem, ocupando bem seus lugares na construção da história.

                A temporada de “Lampião e Lancelote” foi mais curta que os aplausos recebidos. Eis aqui uma produção a que se deve assistir.


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FICHA TÉCNICA
Livre adaptação de Braulio Tavares do livro “Lampião & Lancelote”, de Fernando Vilela
Direção e Concepção: Debora Dubois
Música Original e Direção Musical: Zeca Baleiro
Assistente de Direção: Márcio Macena

Elenco - Personagem
 Cássio Scapin - Narrador
Fabio Lago - Lampião
Marcos Damigo - Lancelote
Luciana Carnieli – Maria Bonita
Vanessa Prieto - Morgana
Ale Pessôa – Stand In Lancelote e Bando de Lampião

Músicos: Ana Rodrigues e Bruno Menegatti
Cenário: Duda Arruk
Figurinos: Márcio Vinicius
Pesquisa e Arte Gráfica: Fernando Vilela
Iluminação: Debora Dubois
Fotografia: João Caldas
Preparação vocal: Tarita de Souza
Preparação corporal e coreografias: Roberto Alencar
Vídeo: Filmes Para Bailar
Direção Musical: Zeca Baleiro
Produção Musical: Fernando Nunes
Administração: Vanessa Campanari
Assistente de Produção: Nicole Marangoni e Vanessa Campanari
Produtores Associados: Debora Dubois, Edinho Rodrigues, Elza Costa, Vanessa Prieto
Direção de Produção: Brancalyone Produções Artísticas (Edinho Rodrigues e Elza Costa)
Realização: Brancalyone Produções
Assessoria de Imprensa: JSPontes Comunicação – João Pontes e Stella Stephany

sábado, 6 de setembro de 2014

Dona Saudade (RJ)

Jaderson Fialho e Ivone Hoffman em cena
Foto: divulgação

Ivone Hoffman

“Dona Saudade”, dirigido por Camila Amado, é o espetáculo que tem Ivone Hoffman no papel título. O texto de Bernardo Florim conta a história de Luisa, filha de Saudade, cujo túmulo à beira-mar é procurado por seu filho adolescente Vicente. Com uma dramaturgia dividida em quadros, a peça, apesar do título, não celebra o passado, mas aponta para a necessidade de viver o presente em sua plenitude. Ao lado da interpretação de Hoffman, o cenário de Doris Rollemberg e a iluminação de Luiz Paulo Nenen são os pontos altos da produção que cumpriu temporada no Teatro 3 do CCBB.

A casa abandonada em frente ao mar se manteve esquecida há muitos anos. No passado, Saudade (Hoffman) e Luisa (Brigida Menegatti) moravam ali, a mãe assistindo à filha descobrir a juventude. Agora essas histórias motivam Carlos (Jaderson Fialho) a escrever sobre como ele próprio conheceu o amor com Luisa. Enquanto isso, do lado de fora da casa, Vicente (Fábio Cardoso) e Maria Isabel (Isabella Dionísio) procuram o lugar onde dizem ter sido enterrada a mãe dele enquanto ensaiam seus primeiros contatos sexuais. A dramaturgia de “Dona Saudade”, assim, estrutura um retrato recortado do desabrochar da vida sem fazer crítica, mas também sem se apresentar ingenuamente. O texto de Bernardo Florim tem o mérito de bem narrar, mas também de deixar que o público faça a sua leitura da narrativa.

Um dos aspectos mais positivos, a direção de Camila Amado, assistida por Anderson Aragón, conduziu com excelência o trabalho da personagem título. As voltas ao passado (Luisa) e os diálogos com o presente (Carlos) não manifestam alguma diferença na forma como Saudade se expressa. Ela parece sempre ter sido a mesma pessoa, alguém que foi também jovem, que sofre pela perda da filha, que tem recordações tristes e que se sente sozinha, mas cuja alegria parece não desaparecer. Dessa forma, Saudade funciona como uma base de abordagem por sobre os outros personagens, todos eles em bons trabalhos de interpretação. O ritmo, que permanece inalterado, posiciona um certo tipo de moldura que oferece a obra sem fechá-la. O resultado é positivo.

O cenário de Doris Rolemberg, dispondo o público em meia arena, coloca a narrativa em um lugar oxigenado, amplo, livre que contribui muito para a história que se passa em uma casa em frente ao mar. Não vemos a contrução, mas os blocos de diferentes tamanhos justapostos apontam simbolicamente para ela, para suas madeiras, para o seu abandono. Os vídeos (Gultavo Gelmini) são projetados em quadrados brancos próximos uns dos outros, mas não situados em mesmo nível, de forma que o todo da tela também não é plano. A iluminação de Luiz Paulo Nenén banha os personagens e, ao lado do cenário e dos vídeos, mas também junto do figurino em cortes simples e sem estampas de Luciana Cardoso e da trilha sonora simbolista de Marcelo Alonso Neves, parecem sustentar as cenas em planos acima do chão.

“Dona Saudade” faz da lembrança algo mais do que positivo, mas algo vital, que é parte da existência humana e que é ponto crucial de sua identidade. Com estrutura nada pretensiosa e cheia de méritos, a peça merece novas temporadas e aplausos. 

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Ficha técnica:
Texto de Bernardo Florim
Com Ivone Hoffman, Jaderson Fialho, Brigida Menegatti, Fábio Cardoso e Isabella Dionísio
Direção: Camila Amado

Meu Deus (SP)

Dan Stulbach e Irene Ravache em cena
Foto: divulgação

Boa comédia

Estreou no Rio de Janeiro, “Meu Deus”, espetáculo dirigido por Elias Andreato com Irene Ravache e Dan Stulbach no elenco. A partir de texto da dramaturga israelense Anat Gov (1953-2012), a peça é ótima, mas não excelente. Em vários pontos, percebe-se que há um direcionamento interessante para as ações, mas que essas se rendem ao superficial ao invés de investir na complexidade infelizmente. Depois de quatro meses lotando plateias em São Paulo, o esplêndido sucesso se repete no Rio de Janeiro com vivas à Irene Ravache. Ela merece.

A protagonista Ana (palavra que pode ser lida igualmente da esquerda para direita e vice-versa) é uma psicóloga de meia-idade que mora com o filho adolescente com necessidades psicológicas especiais. Ela não acredita na existência de deus, mas, como qualquer pessoa, reza para a chuva vir molhar as plantas e alimenta a esperança de que um dia seu filho consiga falar. A peça se passa em um dia comum, quando Ana (Irene Ravache) recebe uma ligação estranha de uma pessoa não identificada insistindo para marcar uma consulta em caráter de emergência. Na sessão, ela (ou melhor, ele) revela ser Deus e desse encontro entre a terapeuta e o “Todo Poderoso” resulta toda a narrativa do espetáculo. O que faz Deus precisar ir a uma analista? O que Ana dirá ao seu paciente extraordinário? O que cada um de nós diria? O que cada um de nós ouviria? Não há dúvidas de que Anat Gov parte de um lugar dramático riquíssimo que suscita interesse, possibilita reflexões e gera emoção. A discussão a partir de trechos bíblicos, como o dilúvio e as chagas de Jó, aproximam a personagem terapeuta do público que também pode se interrogar sobre os fatos sagrados. O mais brilhante é que, separadamente, os dois personagens farão suas curvas dramáticas, pois o encontro representado na peça modificará ambos. O final tem, entre vários méritos, o de ser tocante.

No que diz respeito à encenação, porém, o resultado não é tão excelente. Dan Stulbach não constrói o mesmo personagem Deus com quem Ana (Ravache) fala. É como se fossem duas peças diferentes, duas concepções opostas. Irene Ravache deixa para a situação a responsabilidade da comédia, exibindo excelente resultado ao transformar o texto em diálogos críveis apesar da hipótese fantástica. Stulbach investe no caminho oposto. O tom de voz arrastado tenta dar a ver um pastor senhorial, uma figura caricata em que as crueldades apontadas por Ana são meros atos infantis. O olhar parado e as pausas longas deixam o texto continuar parecendo texto no palco infelizmente. Pedro Carvalho interpreta Paulo, o filho de Ana, vencendo o desafio de viabilizar com sensibilidade e discrição um personagem cuja única função é humanizar o de Ravache e o de Stulbach. A Andreato, assistido por Andréa Bassitt, cabe o mérito de ter apagado a maioria das marcas da direção, oferecendo um espetáculo que parece se contar sozinho, o que é positivo para o gênero comédia-dramática.

Todos os demais elementos se apresentam de forma positiva. Antônio Ferreira Júnior e Fause Haten apresentam cenário e figurino com discrição e toques sensíveis de elegância. A sala de Ana atende bem ao realismo, sem ser opulenta, mas com momentos de extremo bom gosto, com positivo destaque para os desenhos de Paulo na parede. A saia azul com linhas vermelhas horizontais da terapeuta dá a ela a casualidade da ambiência “casa” com a formalidade de uma sessão profissional que a elegância traz na medida certa. A iluminação e a trilha sonora (Wagner Freire e Jonatan Harold) envolvem a história com boas participações porque sutis.

Sem realmente emocionar, tampouco gargalhar, “Meu Deus” perde a oportunidade de ser uma das melhores produções da temporada. Seu sucesso, no entanto, ratifica os muitos valores que essa peça felizmente apresenta, os quais valem a pena ser conferidos. Viva Irene Ravache!

*

Ficha Técnica:
Texto: Anat Gov
Adaptação: Jorge Schussheim
Tradução: Eloísa Canton
Versão: Célia Regina Forte
Direção: Elias Andreato

Elenco:
Irene Ravache – Ana
Dan Stulbach – Deus
Pedro Carvalho – Paulo

Cenário: Antonio Junior
Figurino: Fause Haten
Iluminação: Wagner Freire
Trilha Sonora: Jonatan Harold
Assessoria de imprensa RJ: Barata Comunicação
Assessoria de Imprensa SP: Daniela Bustos e Beth Gallo - Morente Forte Comunicações
Programação Visual: Vicka Suarez
Fotos: João Caldas
Assistente de Direção: Andréa Bassitt
Assistente de Iluminação: Alessandra Marques
Assistente de Figurino: Gabriela Marumoto
Assistente de Fotografia: Andréia Machado
Assessoria Contábil: Marina Morente
Assistente de Produção: Celso Dornellas e Thaís Peres
Administração: Magali Morente
Produção Executiva: Kátia Placiano
Coordenação de Projetos: Egberto Simões
Produtoras: Selma Morente e Célia Forte
Realização: Morente Forte Produções Teatrais