A crítica desautorizada?
No
jornal, o Bonequinho que vai ao cinema aplaude sentado ou em pé. O Bonequinho também
pode pular ou dormir dependendo do filme. E tem também a polêmica figura do
Bonequinho indo embora da sala de exibição. O leitor vê e sabe, assim, se o
filme foi considerado bom ou ruim. Se, na opinião do jornal, vale a pena
assisti-lo ou não. Mas, quando quer explicações sobre o motivo do aplauso, da
cochilada, dos pulos ou do abandono da obra, ou mesmo das quatro, cinco, três
ou nenhuma estrelinha, a análise crítica se faz necessária. A crítica torna-se
um grande passo além da mera nota.
Analisar
uma obra, descrevê-la a partir do seu ponto de vista, identificar marcas, fazer
ver problemas, méritos, dificuldades vencidas e tentativas fracassadas só não
são desafios maiores do que reunir todas essas informações em um só texto e
publicá-lo. Se, no primeiro momento, a opinião fica entre amigos, mesas de bar,
conversas ao telefone e trocas de inboxes no Facebook, no segundo, sabe
Dionísio onde as palavras vão parar, porque uma vez impresso, virtualmente ou
não, a possibilidade de leitores do tal texto aí não tem fim.
Não
houve e não há uma faculdade de crítica de teatro, tampouco de música, de
cinema, de literatura ou de artes visuais. Se quem escreve é alguém ligado
unicamente à teoria, ele corre o risco de ser acusado de desconhecer a maquinaria
teatral profundamente. Se for alguém da área, o problema fica ainda maior, pois
“Como é possível falar mal da peça X se nela está o meu amigo ator, o meu
futuro diretor, o meu ex-figurinista?” ou “Se a esposa dele está na peça Y,
como ele vai falar mal do diretor?”. A autoridade para escrever a crítica
ganha, a cada dia, mais força na própria crítica nesse tempo em que todos
escrevem e publicam suas opiniões ou podem simplesmente desenhar bonequinhos,
oferecer “curtires” ou usar de qualquer outra forma para divulgar sua avaliação
sobre determinada obra de arte.
Houve
um tempo em que um determinado grupo de pessoas ditava o cânone a ser visto: os
livros a serem lidos, um jeito certo de pintar, os programas de televisão
censurados, os textos teatrais que poderiam ser produzidos. A igreja, o governo
civil, a ditadura militar: o povo preguiçoso tinha guias “qualificados” para
andar na selva sem pecar. Nos jornais, os editores escolhiam os críticos de
teatro entre os jornalistas que se interessavam pelo tema e, ainda hoje, quem
escreve sobre arte no Caderno de Cultura, também corre o risco de escrever
sobre futebol durante a Copa, sobre política nas Eleições, sobre a Rihanna no
Rock In Rio. No maior país da América Latina, há apenas duas pessoas que
escrevem críticas de teatro em jornal e não escrevem mais nada além disso. Uma
está no Rio de Janeiro e a outra está em São Paulo. Na exata
linha oposta, Porto Alegre, Brasília, Fortaleza, Curitiba e Belo Horizonte têm
importantes festivais com produções locais de altíssima qualidade. De Manaus a
Florianópolis, hoje há mais salas de espetáculos e mais grupos de teatro e de
dança do que nos últimos trinta anos. Cursos livres, cursos de formação
técnica, graduação, mestrado e doutorado são abertos e se espalham e a
Associação Brasileira de Pesquisa e Pós-graduação em Artes Cênicas , a
ABRACE, realiza encontros nacionais que reúne pesquisadores e artistas das
cinco regiões do Brasil. Ou seja, na mesma medida em que o teatro perde espaço
na mídia impressa, ganha-o nas ruas, na academia, nos shoppings, nos prédios
restaurados pelo governo e pela iniciativa privada e, sobretudo, na internet.
Depois
de 40 anos escrevendo sobre teatro no jornal, o crítico Macksen Luiz saiu do
Jornal do Commercio, seu último local de trabalho, e abriu um blog, dando assim
continuidade ao seu trabalho. Com Lionel Fischer (Tribuna da Imprensa), Edgar Olímpio de Souza (Diário Popular) e com Ida Vicenzia (Jornal do Commercio),
aconteceu o mesmo. Por outro lado, Luciano Mazza, Marcelo Aouila e Dinah Cesare
nunca escreveram em jornais, mas abriram sites ligados ao tema mesmo assim. Em
todos esses, há a necessidade de ir além do Bonequinho e compartilhar suas
reflexões de forma mais profunda. Para eles, se o Gosto/Não Gosto válido é apenas
o primeiro degrau, o último é o debate acerca da peça em cartaz. Nesses
espaços, cada um é o seu próprio patrão, o seu próprio editor e, nesse sentido,
a sua própria autorização. No Facebook, no Twitter ou por email, os links dos
textos são compartilhados. Quando positivas, as críticas ganham printscreens e
se tornam cartazes em portas de teatro. Quanto negativas, viram inboxes
privados distribuídos em
segredo. Em ambos os casos, os contadores de acesso marcam o
crescente aumento do número de leitores, do número de leituras, do número de
textos e o batido “Se gostaram, avisem aos amigos e, se não gostaram, avisem
aos inimigos” continua valendo. O crítico que só fala bem pode até ser
desacreditado por quem o lê com frequência, mas a produção da peça ruim sente
no seu texto um carinhoso alento quando dela todos falam mal, já que o que ele
escreveu vai engrossar a pasta a ser entregue nos órgãos competentes a fim de solicitar
mais patrocínio, de ganhar editais de ocupação, de receber apoio para viajar. O
crítico que só fala mal não existe, embora existam aqueles que, já de antemão,
não gostam de determinado diretor, gênero, ator ou de tipo de teatro,
honestamente parcializando a sua avaliação. Longe de terminar a tipologia,
existem ainda aqueles que não falam nem bem, nem mal das peças a que assistem,
procurando mais descrever as obras do que valorá-las, propondo reflexões que
ganham corpo, principalmente, na investigação da linguagem artística e da sua
recepção. Com isso, se chama a atenção para o fato de que há, felizmente,
críticos para todos os gostos e críticas capazes de acompanhar a crescente
malha cênica brasileira.
Desde
2008, a
jornalista Helena Mello pesquisa a crítica teatral em espaços virtuais na
internet, apresentando, no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da
UFRGS, a dissertação Aspectos da Crítica Teatral Brasileira na EraDigital. Após entrevistar cerca de 80 pessoas ligadas ao teatro, incluindo
críticos teatrais, o trabalho é referência por apontar questões relevantes com
embasamento teórico, tais como, entre outras: a autoridade do crítico teatral
da internet e a linguagem utilizada nesse tipo de texto. Sobre o primeiro ponto,
entram na pauta dois temas – a necessidade humana de compartilhar experiências
e a manutenção da verdade como uma estrutura sólida. A internet possibilita ao
homem comunicar-se com desconhecidos do mundo todo em uma relação que cruza fronteiras
geográficas e temporais. Afinal, uma foto sua publicada no Fotolog em 2005 pode
ser acessada ainda hoje por alguém que nasceu em 2006 e isso está livre de
acontecer na sua cidade ou do outro lado do mundo igualmente. Nesse sentido, pairam
na rede, pontos de vista bastante diferentes e também bastante iguais sobre
acontecimentos de qualquer tipo. As verdades, cada vez menos sólidas e mais
fluídas, são questões que estimulam a maneira de pensar a arte, modificando,
com certeza, a velha crítica, mas apresentando uma nova à qual, segundo a
pesquisadora, é “pura perda de tempo resistir”.
Orientada
por Edélcio Mostaço, Helena Mello cita o caso recente da publicação de críticas
teatrais anônimas em
Santa Catarina , que causaram um alvoroço feroz entre a classe
artística de lá naquela ocasião. “É natural que uma pessoa que escreve de modo
desrespeitoso, aparentemente sem critério, questionando aspectos pessoais
daqueles que fazem arte não seja bem aceita no meio artístico. Acho que fizeram
bem aqueles que procuraram buscar sua identidade, reclamaram do espaço que ela
ocupou, etc. Mas, também achei extremamente pertinente a colocação do ator
Daniel Olivetto ao perguntar se é preciso realmente saber QUEM fala.
Afinal, diz ele, os textos bíblicos provocam profundas discussões sem que a
autoria seja posta a prova. Além disso, é bem verdade que os artistas costumam
dizer que o que importa é o diálogo aberto com o público, a troca. Então, por que
preciso saber quem fala para dar importância ao que está sendo dito?” É
natural, sem dúvida, que seja dado mais valor às opiniões de pessoas que
conciliam a formação acadêmica com o envolvimento artístico, mas desconsiderar
os demais pontos de vista é, sem dúvida também, fechar-se para o desconhecido.
Participando de encontros nacionais e internacionais de artes cênicas, (em
maio, por exemplo, houve a IV Jornadas Nacionales de Investigación y CríticaTeatral, na Argentina) Helena Mello afirma que “o público, os leitores, o
mercado se encarrega de dar ou tirar espaço daqueles que se intitulam críticos.
E, considerando que, hoje, na virtualidade, não há mais a chancela de um
jornal, isso acontece ainda mais facilmente. O resto são perguntas e não
respostas, embora eu não veja nisso um problema. É a partir das primeiras que
aguçamos a nossa sensibilidade e fortalecemos a nossa capacidade de refletir.”
Sobre
a questão da linguagem, a internet possibilita mais liberdade a quem nela
escreve, não só em relação ao tamanho do texto. Fotos e vídeos podem ser
anexados facilmente ao texto, assim como o recurso do hiperlink pode ser um
importante aliado tanto do autor como do leitor. Enquanto lê o texto, é
possível conhecer o site do grupo, ver cenas da peça, ouvir sua trilha sonora.
Ao fazer relação com quadros, livros, filmes, lugares, ou qualquer outra fonte,
a análise crítica publicada na internet pode proporcionar o acesso a essas
informações de modo rápido e fácil.
Lionel
Fischer diz só ver vantagens ao escrever para o próprio site. “No blog, escrevo
o que quero e sem nenhuma preocupação, por exemplo, com o tamanho dos artigos
ou das críticas. Como sou o patrão de mim mesmo (pela primeira vez na vida,
diga-se de passagem), desfruto de uma deliciosa e imensa liberdade. Tenho, no
momento, 385 seguidores, mas sei que há um número muito maior de pessoas
que lê o que escrevo, pois, muitas vezes, pessoas que não são seguidoras comentam
comigo - pessoalmente ou por e-mail - os artigos e as críticas que posto.” Ida
Vincenzia concorda com ele e, sobre a repercussão que a internet proporciona, acrescenta:
“Recebo muitos e-mails comentando as críticas, além de convites para escrever
sobre teatro. São pessoas aconselhando ao público de teatro a assistirem às
peças por mim criticadas, ou indicando a leitura das críticas. A repercussão me
surpreende. Outras afirmam a importância que tiveram, em suas carreiras, as
observações feitas por mim. Isso tudo me faz perceber como os blogs são um
veículo efetivo de comunicação, e como são recebidos pela classe teatral.”
Marcelo Aouila, que diz não escrever críticas, mas opiniões pessoais, conta que
“existe um link entre o blog e o Facebook. As pessoas curtem, criticam
minha opinião e comentam sobre os espetáculos. Surpreendentemente, algumas
vezes, já me pararam em locais públicos para dizer que lêem o que eu escrevo. Como
também sou produtor cultural, sei das dificuldades de se produzir um espetáculo
e do sofrimento que é quando alguém fala mal do seu trabalho sem saber as
condições de produção. Procuro apontar coisas que possam melhorar, e evito
falar mal. Mas nem sempre dá para não falar mal. Quando não gosto de nada da
peça, eu não escrevo. Sempre tem algo de bom para comentar. Às vezes, eu nem
gosto, mas tenho a consciência de que funciona para um tipo de plateia. Então,
se funciona, tem q ser valorizado. É melhor ser sincero para quem lê do que
agradar a quem está trabalhando e ser incoerente com o que penso.” Para, Edgar
Olímpio de Souza, da revista virtual Stravaganza, “abrir um site de cultura,
com espaço também para outras áreas culturais, é uma maneira de não ficar
sujeito aos critérios nem sempre artísticos que orientam a cobertura teatral
feita pelas revistas e pelos jornais tradicionais. Ou seja, tenho plena
autonomia para abordar uma peça no meu blog, não importando se o espetáculo
seja estrelado ou não por um(a) “artista da Globo”, alguma figura midiática ou
esteja amparado por ampla publicidade.”
Uma
iniciativa bastante interessante é a Revista Questão de Crítica, um site
dedicado a publicação de críticas e de estudos sobre o teatro. Dinah Cesare, uma
das coordenadoras do projeto juntamente com Daniele Avila, conta que a ideia
surgiu no final de seu curso de graduação em Artes Cênicas com habilitação
em Teoria do Teatro na UNIRIO. “Nós finalizávamos o curso de teoria e a Daniele
lançou um projeto para novos críticos na antiga edição do riocenacomportanea,
que foi como um laboratório para nossa revista. Assistíamos aos espetáculos do
festival e escrevíamos as críticas em tempo de publicação. A experiência nos
possibilitou vislumbrar a criação de um espaço para a prática reflexiva sobre o
teatro. Nós havíamos estudado a criação de perspectivas e de categorias novas
para pensar a cena teatral e queríamos exercitar o olhar e a escrita em atrito
com as produções artísticas. Sempre acreditamos que existe um público que está
interessado na crítica, assim como na arte, ou seja, interessado em novos modos
de ver e de construir o mundo.” Sobre aos acessos ao site, ela garante que “a repercussão
da revista é pensada como um todo. Temos um índice significativo de visitas, considerando
que se trata de conteúdo sobre teatro. Recebemos sistematicamente emails das
assessorias dos espetáculos em cartaz no convidando para ver os trabalhos das
pessoas. Em alguma medida, recebemos também retorno de artistas interessados em dialogar. Também
recebemos comentários pela web. Isso tudo está crescendo. Cada vez mais pessoas
que se dedicam ao teatro, tanto para pensá-lo quanto para fazê-lo mais
propriamente. Estamos planejando o Segundo Encontro Questão de Crítica.
Realizamos uma premiação em 2012 e já estamos no processo para 2013.”
Talvez,
para o futuro, o melhor benefício da crítica teatral nos espaços virtuais seja
a potencialidade que ela tem de ser um arquivo aberto e constantemente
alimentado de textos e de imagens dos espetáculos teatrais. Para conhecer as
produções teatrais do Rio de Janeiro nos anos 80 e 90, para não irmos muito
longe, o pesquisador deverá recorrer aos jornais e revistas. Haverá algumas
críticas, algumas matérias e o serviço, contendo o título e alguns nomes da
ficha técnica. Felizmente, depois do boom da internet, as ferramentas de busca
oferecem um arsenal muito maior. Testemunhas de uma encenação, os críticos partilham
o seu olhar por sobre as obras, colocando suas análises em lugar próximo às
peças. Graças ao aumento do número de textos, é comum encontrar mais de dois
pontos de vista por sobre o mesmo espetáculo, estando no leitor a tarefa de
separar “o joio do trigo” e confiar nesta ou naquela opinião. Finalizando com
uma frase de Antonio Costella, trazida pela pesquisadora Helena Mello, fica o
valor da crítica disposta na internet: "Mas a roda faz andar a ambulância
e o canhão, o avião serve para avizinhar cidades e para atirar bombas sobre
elas, a energia nuclear contém o poder quase mágico de alavancar a humanidade
e, ao mesmo tempo, o de destruí-la. Os meios de comunicação serão aquilo que o
ser humano fizer deles". Abordado na saída, o Bonequinho pode agora
se explicar (se quiser).
Rodrigo Monteiro
Revista de Teatro da SBAT, número 530, março e abril de 2012
Obrigada pelo espaço e parabéns pelo texto tão bem elaborado sobre esse tema! Estarei publicando no meu blog também.
ResponderExcluir