sábado, 9 de junho de 2012

Não sobre rouxinóis (RJ)


Foto: divulgação

O vôo de um canário em uma excelente produção

            Tennessee Williams (1911-1983) tinha 27 anos quando, em 1938, escreveu “Não sobre rouxinóis” (“Not about nightingales”), uma peça baseada em uma notícia que o então jovem dramaturgo norte-americano lera sobre recentes acontecimentos em uma penitenciária na Pensilvânia. Aquele que ficou conhecido depois por “À margem da vida” (“The glass menagerie”, 1944), “Um bonde chamado desejo” (“A streetcar named desire”, 1947), “Gata em teto de zinco quente” (“Cat on a rot tin roof”, 1955) escrevia desde aí sobre os vícios, as vaidades, o poder, o cerne da condição humana. O texto de “Não sobre rouxinóis” ficou cinqüenta e dois anos escondido, tendo sido recuperado por Vanessa Redgrave, e a peça só foi produzida em 1998, recebendo seis Tony Awards. Inédito no Brasil, o texto inaugura a Sala Paulo Pontes do Theatro Net Rio em projeto idealizado pelo ator Eduardo Rieche que também traduziu o texto original. Com direção de João Fonseca e de Vinícius Arneiro, a produção reúne 12 atores e apresenta nada menos que um excelente espetáculo, sem dúvida, um dos melhores da safra 2012 do teatro carioca.
            A humanidade do texto surge a partir do cruzamento de duas ideias: a liberdade e o alimento. Disso, surge o conceito de sobrevivência. Enquanto os jornais do lado de fora da prisão buscam informações acerca das condições em que os presos são tratados, o jornal interno da instituição trata de pássaros, uma bela metáfora para quem está preso e não pode voar. A narrativa começa na balsa que leva passageiros à ilha onde fica a prisão.  Sra. Bristol (Adriana Maia) vem em busca de informações sobre o filho preso, trazendo-lhe biscoitos caseiros, ao lado da jovem Eva Crane (Júlia Marini), que vem ao presídio atrás de emprego como datilógrafa. No chapéu da jovem candidata, cocô de pombo, talvez, indicando “boa sorte”. Começa aí o jogo sutil de oposições: os biscoitos versus a greve de fome que está prestes a eclodir na ilha. Na sala do Diretor Whalen (Thelmo Fernandes) há uma janela sem grades que dá unicamente para a baía: uma tentação até mesmo para pássaros que não sabem voar. Jim é o vetor que move a história de Tennessee. Preso há dez anos, esforçou-se para conseguir méritos de bom comportamento e encurtar sua chegada à liberdade condicional, o que está prestes a acontecer. Acusado de “cagoete” pelos companheiros do Bloco C, ele sofre duras penas nas mãos do diretor, trabalhando como seu auxiliar de gabinete. É lá que ele fica sabendo da corrupção, das fraquezas, das verdades do sistema penitenciário. É lá que encontra Eva Crane quando ela ganha o emprego. É lá que ele encontra a janela sem grades e a baía. Nos porões, a péssima comida leva os mais de três mil presos à intoxicação e, depois, à greve de fome. Entre os presos, Oliver (Sérgio Ricardo Loureiro), que roubou comida para matar a fome de sua família; Queen (Éber Inácio), que lembra da brancura de seus dentes e da força dos seus cabelos; Swifty (Alex Nader), que quer correr nas Olimpíadas; além de Joe (Alexandre Mofati) e Butch (Bruno Ferrari), o líder entre os presos. A rebelião que surge dentro é uma metáfora para o povo massacrado do lado de fora. Nove anos antes, em 1929, os Estados Unidos faliram com a quebra da Bolsa de Nova Iorque. Em cascata, a sede desesperada de consumo dos anos vinte levou a taxa de juros à exorbitância, que trouxe a inadimplência, que destruiu os altos industriais e comerciantes, que perderam tudo e fecharam as suas portas, que levou milhões de pessoas ao desemprego, à fome e à miséria. Crane narra a Jim o caso de um homem que quebrou uma vitrine para ser preso e ter, assim, na cadeia, o que comer: um mundo que ele, o “canário”, como é chamado por Butch, seu grande inimigo, desconhece por ter sido preso em 1928. Todos almejam a liberdade, todos têm fome, é a situação humana que une os personagens e é a sua posição diante do que se quer que os divide na trama neo-realista do teatro americano.
            Ainda na metade do século vinte, mas não mais no dezenove, o teatro entende que as tramas não precisam acontecer na sala de uma casa para haver grande proximidade do real. O cinema, tosco em sua fase inicial, garantiu aos espectadores do teatro entenderem diversos níveis no palco, ambientes diferentes e evoluções narrativas elípticas. A psicanálise afinou o uso de metáforas e a exploração de linguagens, conservando a mente humana, matriz do realismo de Ibsen e de Tchekhov, como seu lugar confortável. Fonseca e Arneiro sabem disso. Os personagens, sobretudo, Jim, o protagonista, se apresentam aos poucos, detalhe por detalhe, na sutileza da ciência de saber que o público tem todas as atenções voltadas sobre si. Eduardo Rieche está excelente na condução do seu personagem: vilão aos olhos de uns, capacho aos de outros, herói aos próprios olhos e homem aos de Crane, de uma ponta a outra na natureza da sua construção, vêem-se detalhes e nuances que só podem resultar de um adequado e cuidadoso trabalho de pesquisa. Thelmo Fernandes e Bruno Ferrari, o Diretor e o Líder, exibem exatamente o mesmo excelente resultado. Ambos têm o mesmo mal: a tirania. Os dois expressam-se a partir de pequenas marcas: o jeito como mechem o cigarro entre os dedos (Ferrari) ou sorriem (Fernandes). Com menos possibilidades de aparecer que os já citados, mas não menos elogiáveis: Éber Inácio (Queen), Alex Nader (Swifty), Nilvan Santos (Guia e Reverendo), Cleiton Rasga (O policial) entre outras ótimas aparições. O único tom destoante, sobretudo no início, quando os personagens são apresentados, é o de Júlia Marini. Com feições marcadas demais e corpo superficialmente encolhido, a atriz deixa ver uma Eva Crane caricata que foge ao realismo. Com o passar do tempo, os outros personagens e o texto se elevam e Marini diminui seus esforços. No final, Crane parece vir mais “pura” e, por isso, melhor.
            Klondike é o inferno. É lá que os corpos são queimados vivos pelos vapores em altas temperaturas. Nello Marrese e Natália Lana constroem o cenário de “Não sobre rouxinóis” com canos que parecem ser de cobre, próprios para a passagem de gás. Klondike está na mente dos personagens, nas nuances do texto, nos olhos do espectador o tempo inteiro assim. Com beleza, requinte e absolutamente inteligente, o cenário deixa ver a possibilidade de que tudo pode ainda ser pior para quem está na ilha, o que é vetor fundamental para a história. No inferno, não há cores. Talvez, por isso, com essa intenção, a paleta dos figurinos de Mauro Leite paire sobre meio tons: um vermelho que parece ser bordeaux, um marron que é bege, um amarelo que é mostarda, um azul que é cinza. A iluminação de Dani Sanchez age no mesmo sentido, acalorando o palco não pelas gelatinas, mas pelos visíveis refletores ligados a meia força sem filtro.
            Além da ilha, na baía, passeia o Lorelei, um barco com turistas. No segundo andar, há música e dança. Quando anoitece, a janela da sala do diretor permanece aberta. E ainda sem grades. Entre um e outro, águas profundas. “Não sobre rouxinóis”, na excelência de sua produção, deixa o espectador nessa distância entre a prisão e o barco apto a contemplar o vôo de um canário sem saber se ele poderá voar ou não.

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Ficha técnica:
Texto: Tennessee Williams
Tradução: Eduardo Rieche
Direção: João Fonseca e Vinícius Arneiro
Elenco (por ordem de entrada):
Nilvan Santos
Adriana Maia
Júlia Marini
Eduardo Rieche
Thelmo Fernandes
Cleiton Rasga
Bruno Ferrari
Éber Inácio
Alexandre Mofati
Sérgio Ricardo Loureiro
Alex Nader
César Amorim

Cenário: Nello Marrese e Natália Lana
Figurino: Mauro Leite
Iluminação: Dani Sanchez
Sonoplastia: Arthur Ferreira
Visagismo: Uirandê Holanda
Projeto Gráfico: Alexandre de Castro
Fotos: Dalton Valério
Assessoria de Imprensa: Renato Guima
Assistente de Direção: Diogo Liberano
Diretor de Palco: Sérgio Maia
Camareira: Maninha
Operador de Som: Adriano Mesquita
Operador de Luz: Adenilson Júnior
Direção de Produção: Alessandra Reis e Cristina Leite
Assistente de Produção: Paula Valente
Produtores Associados: Alessandra Reis, Cristina Leite e Eduardo Rieche
Idealização e Coordenação Artística: Eduardo Rieche
Realização: Alessandra Reis 27 Produções Artísticas Ltda

3 comentários:

  1. Visto pelo olhar inteligente de Rodrigo Monteiro Não sobre rouxinois torna-se menos doloroso. Para comentar esta peça é preciso (também) ser realista e direto. Eu não consigo.

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  2. Vc já assistiu a peça O AUTO DA COMPADECIDA?

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