domingo, 31 de março de 2013

Ah A Humanidade e Outras Boas Intenções (RJ)

Renata Hardy brilha no papel da Porta-voz de uma
companhia aérea
Foto: divulgação

Instalação verbal: um motivo para pensar sobre o cenário

Dirigido por Murilo Hauser, “Ah, A Humanidade e Outras Boas Intenções” tem uma concepção de cenário interessante, mas que se perde na tentativa de ser bom para Artaud, para Ionesco e para um livro de autoajuda. Comparado com certeza não por esse trabalho a Samuel Beckett, o dramaturgo Will Eno justapôs nesse texto cinco peças curtas que, na montagem atual, estão ambientadas no caos plasticamente construído no palco da Casa de Cultura Laura Alvim. Com boas interpretações, um ritmo por vezes bastante pesado e ótimo figurino, o espetáculo foi concebido por Guilherme Weber e por Murilo Hauser, com tradução do segundo. Eis aí uma oportunidade interessante de pensar a respeito da importância do cenário para a fruição da obra cênica na medida em que ela pode contribuir e/ou atrapalhar a narrativa. Produzido pela Quintal Produções (Verônica Prates), o cenário de “Ah, A Humanidade e Outras Boas Intenções” é assinado por Valdy Lopes Jn e por Rafael Faustini. 

Ao entrar no teatro, o espectador se depara com um mundo em destruição, expresso por um poste quase caindo, uma cama de ferro em pé, o telhado de uma casa, uma televisão quebrada e todo um emaranhado de grandes e de pequenos objetos. O cenário de Lopes Jn e de Faustini oferece o elemento desordem como espaço narrativo. A instalação exposta no palco fica bem no início do espetáculo, mas atrapalha nas duas últimas histórias. A avaliação negativa vem do fato das peças partirem de lugares diferentes ainda que possam mirar o mesmo fim: a desolação da flor que nasce em meio ao asfalto. 

As três primeiras cenas são: “Behold the Coach, in a Blazer, Uninsured” (em que um treinador dá explicações numa coletiva de imprensa sobre seus últimos fracassos e planos futuros), “Ladies and Gentlemen, the Rain” (em que um homem e uma mulher gravam separadamente um vídeo para uma agência de relacionamentos) e “Enter the Sportswoman, Gently” (em que a porta-voz de uma empresa área fala com os familiares das vítimas de um acidente recente). Nelas, o espectador fica sabendo aos poucos tanto acerca de quem fala (qual é o personagem) quanto de em qual situação eles se encontram. O discurso de cada um está ora envolto às regras de quem ouve, ora de um mundo paralelo ao seu próprio interior. No meio de frases bem compreensíveis, há devaneios, saídas de escape em que os três se perdem em suas ensimesmadas reflexões, aspirações/frustrações e sentimentos, se esquecendo de que há constantemente quem os ouve (microfones e câmeras), quem tem o poder de lhes julgar. (“Para acabar com o julgamento de Deus”, de Artaud, não é mera coincidência.) Com forte verve surrealista, o cenário é positivo nesses casos, porque antecipa a alternância de sensações, a confluência de registros diferentes, o caos que ainda não foi dominado. Os intervalos na linearidade da fala são tréguas para essas criaturas tensas pela pressão que sentem. No palco, o mundo já acabou e agora deverá vir a bonança. 

A quarta cena, “The Bully Composition” (em que dois fotógrafos tentam reproduzir uma célebre fotografia de guerra), fala das “boas intenções” de Eno. Nesse quadro, em que o cenário (exatamente o mesmo das cenas anteriores) é apenas mera e superficial ilustração, os dois personagens não estão pressionados, sustentam diálogos regulares e lineares e constroem uma situação realista. No desenvolvimento, há o claro esforço em pregar o evangelho da valorização do momento, da vida, das coisas simples. É quando o ritmo do espetáculo cai vertiginosamente, talvez, porque parece que começou um outro espetáculo completamente diferente e muito superficial. 

Na última cena, “Oh, the Humanity” (em que um casal se encontra a caminho seja de um batismo seja de um funeral), o absurdo se estabelece na situação e, por isso, o cenário chega, nesse ponto, a atrapalhar. O teatro do absurdo expressa quão sem lógica é a vida dos seres humanos, joguetes, talvez, na mão de um destino, de um deus, de um controlador qualquer e arbitrário. Marido e Mulher não entendem o que fazem sentados em cadeiras como se fossem dentro de seu próprio carro. O tempo vai passando e ambos se sentem presos nessa situação irregular, maluca, estranha. Daí a necessidade de um cenário regrado e limpo que deixe para as falas a anormalidade, não sendo redundante com elas, mas complementar. 

Ao lado de uma construção extremamente fleumática, pesada e histriônica de Alice Borges, está uma interpretação equilibrada, intensa em detalhes e sensível em intenções de Renata Hardy. Guilherme Weber, Claudio Mendes e Gustavo Arthiddoro estão positivamente comedidos em suas participações. Os figurinos de Carolina Agresta e de Paula Strojer estão positivos ao lado da iluminação de Beto Bruel, ambos revelando pequenas situações, sem expor em demasia, sugerindo mais que evidenciando. 

Nas palavras de Artaud, “Porque não é o homem, mas o mundo que se tornou anormal”, quatro dessas cinco narrativas oferecem algo que vai além do hermético jogo de palavras de Will Eno. Além da excelente atuação de Renata Hardy, “Ah, A Humanidade e Outras Boas Intenções” deixa como tema de casa a reflexão por sobre uma estrutura narrativa que seja sólida na articulação de todos os seus elementos. 

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FICHA TÉCNICA
Texto: Will Eno
Concepção: Guilherme Weber e Murilo Hauser
Direção e Tradução: Murilo Hauser
Revisão de Tradução: Erica e Ursula de Almeida Rego Migon
Atores: Alice Borges, Claudio Mendes, Guilherme Weber, Renata Hardy e Gustavo Arthiddoro
Iluminação: Beto Bruel
Cenário: Valdir Lopes Jn e Rafael Faustini
Figurino: Carolina Agresta e Paula Stroher
Sonoplastia: Murilo Hauser
Design Gráfico: Julia
Fotos: João Julio Mello
Assessoria de Imprensa: Daniella Cavalcanti
Produzido por: Verônica Prates - Quintal Produções
Equipe Quintal: Camila Camuso e Maria Mendes
Administração, Controle Financeiro e Prestação de Contas: Verônica Prates