segunda-feira, 1 de abril de 2013

Matador (RJ)

Daniel Dias da Silva e Gustavo Falcão estão
excelentes em "Matador"
Foto: divulgação

Teatro com galhardia

O que separa um crítico de teatro do resto dos seres humanos é que, enquanto o segundo gosta dessa ou daquela peça, ator, encenador ou de proposta, o primeiro gosta de ir ao teatro, sentir as luzes apagarem, de saber que atrás das cortinas, bambolinas ou cenário há alguém escondido e prestes a se dar a ver. “Matador” é, eis, o tipo de peça que agrada, no meu caso, sendo crítico e sendo ser humano. Quase não há cenário, as interpretações são excelentes, a dramaturgia é profícua e a direção, sobretudo a direção de arte, é rica em toda a forma rígida com que se articula e mantém firme a estrutura narrativa. Texto do venezuelano, Rodolfo Santana, de fato, os desafios hoje ultrapassados na montagem devem ter sido difíceis, como se afirma no texto do programa. “As touradas”, afinal, não fazem parte da nossa cultura, parece que latino-americanos apenas por uma coincidência do destino (geográfico). Fazer vir à superfície, então, as questões mais profundas que solidificam os diálogos entre o Toureiro e o Touro é uma interrogação à plateia em início de narrativa. Dirigido pelo casal Susana Garcia e Herson Capri, “Matador”, através da dupla de atores Daniel Dias da Silva e Gustavo Falcão, não só vence as dificuldades como, indo além, dá conta de reconstruir um universo que não é nosso, mas fica sendo pela força das intenções e pela qualidade das ações em tablado sob refletores. Uma produção da Territórios Produções Artísticas, o espetáculo está em cartaz no Teatro Municipal do Jockey que, finalmente, reabre suas portas ao público, sendo este mais um motivo para conferi-lo. 

É possível dissertar sobre três aspectos que estruturam “Matador”, uma narrativa escrita e encenada sob o prisma do realismo fantástico. O primeiro deles é a questão cultural das touradas, um esporte ibérico que faz parte do imaginário do que se entende por “espanhol” ou “de origem espanhola”. Um sistema de regras, com força significativa e identitária, que, em função das normas politicamente corretas do novo milênio, passa a entrar em extinção, de forma que seus aficcionados estão cada vez mais em menor número. Toda uma tradição, pouco a pouco, passa, assim, a ser esquecida, substituída, superficializada. Esse é o chão em que pisam os personagens de “Matador”. Toureiro e Touro sabem que fazem parte de um mundo que, tal qual o sul escravocrata dos Estados Unidos, o “vento levou”. O clima é de despedida, a situação é de desolação. Em segundo lugar, estão as relações de poder. Toureiro e Touro são fortes, são ágeis e, cada um na sua espécie, tem artifícios que o outro não tem. A força de um é habilidade do outro, a redenção de um é a morte do outro, a fúria de um é a coragem do outro. Os dois são peças de um jogo cheio de regras que lhes são externas e que precisam ser seguidas. Apenas um vencerá: o homem ou o animal. O terceiro elemento, mérito de Santana, é a humanidade. Na fábula, o Touro é interpretado por um ator. Ao personagem, lhe são agregadas características humanas: o amor, a fidelidade, a esperança, a fé, as relações familiares, o desejo de deixar uma marca para a posteridade, o medo da morte, a alegria, o orgulho e o preconceito. Por outro lado, ao personagem do homem, são lhe destacadas características “animalescas”: o instinto, o medo, a dor, a fragilidade, a reatividade. Nesse contexto complexo, o jogo proposto por Garcia e por Capri se estabelece em diversos níveis, revelando nuances cada vez mais profundas em uma dramaturgia literária que, ao se tornar cênica, se torna cada vez mais instigante. 

Daniel Dias da Silva (o Toureiro) e Gustavo Falcão (o Touro) apresentam excelentes trabalhos de interpretação. A força de um se equilibra na motricidade fina do outro. As expressões rígidas de um fazem dupla com a ardilosidade do outro. Assim, bastante diferentes no início, as duas construções se aproximam ao longo da narrativa, embora mantenham suas idiossincrasias. Acordos são feitos, mas ambos, até o final, se sabem inimigos, pois é nesta oposição que se encontra justamente o mundo que os dois querem manter. Com direção de movimento e coreografias de Sueli Guerra, “Matador” se estrutura por uma elogiosa utilização do espaço e do tempo, desenhando diegeticamente uma curva que é, de forma positiva, sempre ascendente. A flexibilidade conciliada à beleza dos figurinos de Marcelo Marques, o desenho de luz de Paulo César Medeiros e a trilha sonora original de Ricco Viana, que exaltam partes objetivando o todo, e o bom cenário de Claudio Bittencourt garantem uma arena propícia para o teatro se estabelecer a contento e com galhardia. 

Faz parte do realismo fantástico a sensação de estranhamento inicial. O fantástico (nesse caso, um Toureiro que conversa com o Touro em plena arena) está justamente nos olhos do público. O desafio do jogo realista é justamente manifestar regras que, de forma definitiva, estabeleçam verossimilhança fictícia, isto é, o real dentro da narrativa. “Matador”, assim, conquista o espectador aos poucos e, ao final, ganha, devendo ganhar ainda mais, aplausos. 

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FICHA TÉCNICA:
Texto RODOLFO SANTANA
Tradução DANIEL DIAS DA SILVA
Direção HERSON CAPRI e SUSANA GARCIA
Elenco GUSTAVO FALCÃO e DANIEL DIAS DA SILVA
Cenário CLÁUDIO BITTENCOURT
Figurinos MARCELO MARQUES
Iluminação PAULO CÉSAR MEDEIROS
Programação Visual GAMBA JUNIOR
Trilha Sonora RICO VIANNA
Preparação Corporal SUELI GUERRA
Direção de Produção DANIEL DIAS DA SILVA, GUSTAVO FALCÃO
Realização TERRITÓRIOS PRODUÇÕES ARTÍSTICAS

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