Denise Weinberg protagoniza texto de Alan Ayckbourn |
Para além da realidade, a reflexão
Talvez o mais interessante de “Isto é o que ela pensa” seja observar a linha tênue que divide tanto a história quanto quem a ouve. No primeiro caso, o desafio (nada difícil de se ultrapassar) seja observar o limite que separa a vida real da personagem Susan do mundo que a mente dela criou, talvez, como forma de escape para o enfrentamento da realidade. No segundo (esse, sim, um obstáculo), está a reflexão acerca do que é cômico e, por isso, risível, e do que é patológico e, por isso, sério. Diferente do humor negro do americano Nick Silver, o britânico Alan Ayckbourn, que escreveu “Woman in Mind”, em 1985, não confere ao jogo de palavras o tom da piada e quem assiste se sente convidado a rir da encenação por ele prevista. Dessa forma, quem entende a diferença entre loucura e doença, finca os pés no chão e se compadece do sofrimento da protagonista. Do outro lado, estão aqueles que se divertem despretenciosamente das maluquices da mãe de família(s). Em cartaz no Centro Cultural do Banco do Brasil, a montagem paulista é o terceiro espetáculo de Ayckbourn assinado pelo diretor Alexandre Tenório. Antes dele, do mesmo autor, vieram “A Serpente no Jardim” e “Assombrando Júlia”.
Na plateia, não há o grupo dos certos e nem o dos errados, mas, como em toda boa obra de arte, “Isto que ela pensa” proporciona diversos níveis de fruição. A peça começa quando Susan acorda de um desmaio nos fundos de sua casa. Sem querer, ela pisara em um ancinho, fazendo com que o cabo batesse em sua testa sem feri-la externamente. É um médico substituto (Dr. Bill) quem lhe acorda, pois, segundo ele, seu médico “oficial” está em férias (a existência de um médico anterior a Bill prova que Susan sofre de um mal anterior ao acidente com o ancinho.) As primeiras palavras do doutor são incompreensíveis para Susan e para o público, o que evidencia aí o gênero narrativo do texto de Ayckbourn: o neorrealismo. Dentro da cabeça de Susan, o espectador vê aquilo que só ela vê, ou seja, o mundo de Susan passa a ser também o da fruição, o que ratifica o gênero narrativo apontado. Para a audiência, Susan acessa duas realidades paralelas e, por vezes, concomitantes: uma que existe independente dela (o seu marido Gerald, o filho Rick, cunhada Muriel e médico substituto Bill) e outra que existe apenas para si (o marido Andy, a filha Lucy e o irmão Tony). A primeira realidade não vê a segunda, mas a segunda, através de Susan, vê a primeira, de jeito que nós vemos as duas, tal como Susan. Dentre as muitas possibilidades de interpretação, há duas essenciais: 1) entender que a família imaginária existe por opção de Susan (nesse caso, Susan é agente); e 2) entender que a família ficcional existe sem a participação consciente da protagonista (Susan como paciente). De qualquer forma, em dado momento, ela mostra querer se livrar primeiro de uma e, depois, de ambas sem sucesso nas duas tentativas. Na evolução da narrativa, as duas se misturam até chegar o ápice. Eis, então, a certeza de que a personagem central da trama é uma anti-heroína, isto é, não é alguém que busca algo, mas que foge ou sofre de algo. (O personagem Leon Carmelo, de “Os Mamutes”, texto de Jô Bilac, tem a mesma característica. Arandir, de “O beijo no asfalto”, de Nelson Rodrigues, igualmente.) Exposta a chave de compreensão do texto, passemos à análise da encenação.
Desperdiçar as gags cômicas do texto de Ayckbourn seria resistir ao texto e superficionalizá-lo. Felizmente, Tenório não o faz, embora seja possível notar que o diretor vai um pouco além. Denise Weinberg (Susan) está um tanto quanto trêmula em sua construção, nervosa, descontrolada, o que negativamente prenuncia um grau de loucura (ou de doença) da personagem que poderia passar menos perceptível. As ações de Clara Carvalho (Muriel) e as reações de Weinberg e de Mário César Camargo (Gerald) em relação a ela (Carvalho) também, em alguns momentos, parecem se aproveitar da comédia para ganhar o riso nem tão sugestivo dramaturgicamente. A Lucy de Clarissa Rockenbach, por sua vez, é rasa e parece ter sido construída pela égide do melodrama infelizmente. Bastante positivas são as construções de Camargo, Mário Borges (Bill), Flávio Faustinoni (Tony), Francisco Brêtas (Andy) e de Eduardo Muniz (Rick), porque, concordando com o realismo do texto, deixam o ritmo da história correr mais livremente, mais próxima do real além da narrativa, com menos entraves. De um modo geral, vale que o elenco está bem, de forma que as distorções citadas não chegam a prejudicar a estrutura da cena bem dirigida por Tenório.
Bastante positivos são enlaces feitos entre as concepções de figurino (Cássio Brasil), cenário, iluminação (Domingos Quintiliano) e de direção musical (Miguel Briamonte). Coordenado e traduzido por Eduardo Muniz, o projeto é um todo coeso e coerente, que desperta interesse, apresentando alto empenho estético em todos os seus elementos, o que é bastante elogioso.
A criação consciente ou inconsciente de mundos paralelos que funcionam como refúgio para o mundo do entorno do ser humano é cada vez mais tema para obras de arte no campo do teatro, do cinema e das artes visuais. No caso narrativo, talvez esteja aí uma saída para a tragédia contemporânea e a instauração de um hiperrealismo que vai além de Beckett e do teatro do absurdo. Por isso, deve ser, mais do que visto, pensado.
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Ficha Técnica
‘Isso É O Que Ela Pensa’ (Woman in Mind), de Alan Ayckbourn
Direção: Alexandre Tenório
Iluminação: Domingos Quintiliano
Figurinos: Cássio Brasil
Direção Musical: Miguel Briamonte
Programação Visual: Paulo Falzoni
Fotos: Ligia Jardim
Coordenação De Produção: Eduardo Muniz
Realização: Maria Gorda Produções
Elenco:
Denise Weinberg
Clara Carvalho
Clarissa Rockenbach
Eduardo Muniz
Francisco Bretas
Flavio Faustinoni
Mário Borges
Mário César Camargo
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