quinta-feira, 21 de março de 2013

Uma história oficial (RJ)

Gênero conhecido pelos trabalhos de Bertolt Brecht
recebe atualização da Cortejo Companhia de Teatro
Foto: divulgação

O épico da história não oficial

“Uma história oficial” é um espetáculo mais interessante do ponto de vista da forma do que realmente da história em si. E isso, nesse caso, é excelente. Escrito por Rodrigo Portella e por Tairone Vale, e dirigido pelo primeiro, a nova produção da Cortejo Companhia de Teatro é feita de imagens exuberantes e estruturada com um movimento que é raro na narrativa cênica. A história, no entanto, ainda que bastante bem contada, fica aquém do ato de contar, esse, sim, a estrela da noite. O drama ideológico sob o clima da opressão traz personagens ricos, com profundidade vislumbrável, mas seu melhor, enquanto ficção, é observar como os atos se dão a ver na cena do grupo mineiro-fluminense. A peça está em cartaz no Teatro da Casa de Cultura Laura Alvim. 

O release informa que o grupo percorre uma trajetória na literatura de realismo fantástico, sobretudo em Gabriel García Márquez, e isso explica algumas opções estéticas da encenação. Ocorre aí um motivo riquíssimo para análise entre teatro e literatura (e o gêneros cênico-narrativos estão a milhas de distância de terem sido estudados como os literários infelizmente). O primeiro ponto é que, na literatura, o leitor lê uma página depois da outra, de forma que tem em mãos o presente dos personagens, mas também o seu passado e o seu futuro na medida em que vai vendo quantas páginas já foram lidas e quantas ainda faltam ler. No teatro, isso não acontece. Uma cena ocupa o lugar da outra, de forma que seria como se, lida uma folha, tudo o que tivesse escrito nela se apagasse e, na mesma página, outro conteúdo fosse escrito. Não há passado e nem futuro no teatro, apenas o presente, uma vez que uma cena acontece exatamente no mesmo lugar onde aconteceu a anterior. O segundo aspecto é que, em literatura, realismo fantástico é uma variação do realismo em que eventos estranhos acontecem tão bem fundamentados por toda a maquinaria realista que passam a ser encarados pelos personagens da obra como normais. Ou seja, o fantástico está apenas nos olhos do leitor e, não, nos olhos dos personagens. “Uma história oficial” não parte do realismo e, portanto, não pode chegar, enquanto espetáculo cênico, a ser uma obra realista fantástica. O gênero aqui é outro.

Quatro performers são vistos quando as luzes acendem sobre um cone e é cruzada uma linha entre o que é teatro e o que não é teatro. Esses performers (meio atores, meio personagens) dividem-se em personagens: a Mulher Grávida (Lívia Gomes), a Menina (Bruna Portella), o Escravo (Tales Coutinho) e o Vendedor de Bíblias (Tairone Vale). Assim, eles começam a criar uma história. No grupo, há um líder, isto é, alguém que parece dar as ordens, liderando os demais em como a história deverá acontecer. Esse é justamente quem, dada a narrativa, será o primeiro opressor. É interessante notar que, embora, em determinado momento, a história já tenha começado a ser narrada, os performers continuam atuando, falando entre si, tomando decisões a respeito do rumo da história, agindo paralelamente. Ou seja, o melhor gênero para ler a peça “Uma história oficial” é o teatro épico (ou didático), mais conhecido pelos trabalhos de Bertolt Brecht. A partir daí, o jeito de narrar ganha o lugar de destaque que, afinal, faz força para merecer. 

É bastante rica a forma como os objetos em cena (o cenário e a iluminação são de Rodrigo Portella e os figurinos de Babi Crivellari
) e a trilha sonora dominam o espaço cênico, dividem o palco, constroem lugares e estruturam imagens belas. Com eles, os personagens ganham vida, ambiência e um pouco mais de cor que a ausência proposital de nomes não lhes dá. Dentre as quatro construções, há apenas uma que é vítima sem ter se conformado com o estado de sê-lo. É o caso da Menina que, na interpretação de Bruna Portella, positivamente se diferencia dos demais por não usar o tom monocorde na fala e abusar da emoção sempre que possível. O resultado é magnífico. O Vendedor de Bíblias é o opressor por natureza. O Escravo, de oprimido, vira opressor. A Mulher Grávida é o exato oposto do Vendedor, estando, assim, ao seu lado. Todos esses personagens sustentam a heroína, são-lhe base e, agindo com menos ênfases, amarram o quadro geral de forma suficientemente sólida para permanecer no gênero e, por isso, bastante positiva. 

O aponte para metalinguagem, isto é, a força para que vejamos a história ao lado do jeito como ela está sendo criada, explica o porquê desse tipo de produção ser chamada também de didática. Sua função é convocar a audiência para que ela perceba conscientemente os instrumentos do discurso que são usados para agregar desavisados, dividindo a sociedade, muitas vezes, em opressores e oprimidos. O adjetivo “oficial” no título da peça aponta para o seu oposto. Nessa produção, que por tudo isso é bem-vinda à programação de teatro da Cidade Maravilhosa, há uma outra história a ser contada. Aquela que existe, mas geralmente fica por trás, normalmente calada e escondida. Vale a pena, agora, vê-la e aplaudi-la. 

*

Ficha técnica:
Elenco: 
Tales Coutinho, Lívia Gomes, Bruna Portella e Tairone Vale.
Texto: Rodrigo Portella e Tairone Vale
Direção: Rodrigo Portella

Assistência de direção: Túlio Cássio

Concepção de som e Trilha Original: Lucas Soares
Figurino e Caracterização: Babi Crivellari

Cenografia e desenho de luz: Rodrigo Portella
Direção de movimento: Marco Marinho

Preparação corporal: Túlio Cássio e João Luis Cesário
Orientação Vocal: Leandro Rocha
Cenotécnico: Coréllio Rosa

Operador de som: Luan Vieira

Músicos: Rafael Castro (acordeon), Anderson “Fofão”Guimarães (percussão), Marco Aurélio de Oliveira (trompete), Lucas Soares (violões e guitarra)

Gravação e mixagem: Carlos Henrique Pereira/Estúdio Nave
Produção Executiva: Daiverson Machado

Assistência de Produção: Letícia Barros

Arte Gráfica: Zaqueu Coelho

Fotos: Zaqueu Coelho, Fernanda Rezende, Filipe Matias, Marina Costa (Olho de Peixe), Túlio Cássio

Direção de Produção: Ana Loureiro/Aqui tem Cultura

Um comentário:

  1. Bacana, Rodrigo! Só uma correção, no dia que você viu a peça, no papel de MULHER GRÁVIDA estava a atriz Lívia Gomes! Abraço, Verônica Rocha

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