Soraya Ravenle e Suely Franco garantem bom divertimento apesar do texto ruim |
Superficial
A pior coisa de “As mulheres de Grey Gardens – O musical” é o texto. Escrito por Doug Wright (cujo musical anterior foi “A pequena sereia”), com músicas de Scott Frankel e letras de Michael Korie, um trio inexperiente naquele inverno de 2006, a produção fez temporadas fora da Broadway e depois dentro dela, permanecendo apenas um ano em cartaz. Dividido em dois atos, “Grey Gardens” parte do belíssimo documentário de 1975, dos irmãos Albert e David Maysles, mas não chega “a seus pés” infelizmente (assista ao documentário completo e legendado, clicando aqui). No processo de re-hierarquização dos signos, um dos elementos fundamentais da versão cinematográfica, a saber, a relação simbiótica entre mãe e filha, não foi valorizado no texto do musical. Talvez, atendendo apenas ao público norte-americano, as escolhas feitas se justiquem por lá, mas, com certeza, não nessas paragens. O amor dos americanos pela família Kennedy e sua realeza não chega até nós que expulsamos a nossa família real tão logo pudemos, no fim do século XIX. Se, nos Estados Unidos, a mansão “Grey Gardens”, hoje restaurada, foi um símbolo da decadência da aristocracia americana, no Brasil, o documentário é sobre a história de amor entre mãe e filha: ambas completamente descoladas da realidade, vivendo em um mundo paralelo, brigando e fazendo as pazes imediatamente, num processo constante de repulsa e de paixão intermitente que exala humanidade e, por isso, nos aproxima enquanto seres humanos, filhos de alguéns e, talvez, também pais de alguéns. Produzido por Jonas Calmon Klabin, a versão brasileira do espetáculo tem como mérito maior o de convidar o Brasil para conhecer mais de perto essa bela história que, infelizmente, a peça em cartaz na Sala Baden Powell pouco conta.
Sem sucesso, a construção dramatúrgica de “Grey Gardens" tentou fazer algo parecido com o que foi realizado com o famoso “The sound of music” (“A Noviça Rebelde”). Nos anos 50, a Broadway comprou os direitos de Maria Von Trapp, que tinha escrito um livro contando a sua história (e que já tinha virado dois filmes alemães). De posse dos fatos biográficos, os produtores mudaram tudo de lugar: diminuíram o número de filhos para 7, jogaram a história para 1939 (ano da invasão dos nazistas na Áustria), colocaram o Capitão como um herói e a Noviça como uma mocinha e apresentaram uma linda história sobre uma família que se salva, cantando ao atravessar as alpes, fugindo do nazismo, numa bela manhã de sol. No entanto, qualquer um que se aventure a pesquisar mais a fundo a história da família Trapp vai descobrir que as coisas aconteceram de forma muito diferente do que o musical de Richard Rodgers e de Oscar Hammerstein II conta. O mesmo acontece com a história de Big Edith e de Little Edie, a mãe e a filha Beale, respectivamente tia e prima da ex-primeira dama americana Jacqueline Kennedy. Assim, os autores de "Grey Gardens" criaram um primeiro ato, acontecido em 1941, que é quase que totalmente ficcional, e que só tem duas serventias: 1) informar ao público que os Beales são parentes próximos de Jackie Bouvie (Depois Jackie Kennedy Onassis); e 2) sugerir a época de ouro da família no exato momento em que aquele mundo começa a decair. Nesse sentido, a única função real do primeiro ato é contextualizar o segundo, quando encontramos, 32 anos depois, Big Edith e Little Edie na mesma casa, só que em total ruína financeira, sanitária e psicológica. (A intenção dos autores lembra positivamente de Erico Verissimo no magistral “O tempo e o vento”, em que o romancista gaúcho construiu o Rio Grande do Sul ideal, imaginário e épico em dois volumes, para, em seguida, destruir o Estado e seu povo, tijolo por tijolo, nos cinco volumes finais da grande obra.)
Consideradas as intenções dos autores, a avaliação é que o texto do primeiro ato não cumpre a sua função de ser oposição para o segundo, assim como o do segundo em ser oposição para o primeiro. “As mulheres de Grey Gardens – O Musical” parece, por isso, duas peças justapostas e mal escritas. De um lado, temos uma mãe que, vilã, destrói o casamento da filha sem qualquer profundidade. De outro, temos uma mãe lúcida que é vítima da insanidade da filha, de quem ela cuida. Ou seja, nem lá, nem cá, mãe e filha estão próximas, estão parceiras no “crime de existir” em um mundo sem lugar para fantasia que as alimenta. Olhando para a história real, sabemos que nem mesmo houve um romance entre Joe Kennedy (Pierre Baitelli) e Little Edie (Carol Puntel), muito menos a vilania da mãe em separar os dois. Mãe e filha não se afastam uma da outra por conta própria, pois são almas gêmeas inseparáveis e vítimas de suas próprias escolhas por mais que tentem jogar uma para outra a culpa de suas mazelas anos a seguir. Da mesma forma, a questão do divórcio entre Big Edith (Soraia Ravenle) e o Senhor Beale já estava acertada desde o início dos anos 30, e a beleza da personagem Big Edith é justamente o seu apreço pela própria liberdade. Esses pontos de vista, que garantiriam a profundidade que o novo musical americano (e "Quase Normal" é uma referência nesse sentido) tem trazido nas últimas décadas, foram dispensados infelizmente.
A vontade de ser livre versus o compromisso vital de manterem-se juntas assumido entre mãe e filha são opostos que se atraem e que caracterizam as duas personagens protagonistas. Como já se disse, nada disso é visto no musical dirigido por Wolf Maya, assistido por Rafaela Amado. Suely Franco, uma excelente intérprete, traz energia para a Big Edith no segundo ato, mas, por não oferecer-lhe loucura, contribui negativamente com a superficialização indicada na dramaturgia. Soraya Ravenle, porque canta excelentemente bem, é ponto definitivo para a produção de “Grey Gardens” no Brasil. No entanto, na mesma medida em que seu personagem (Big Edith) no primeiro ato não lhe oferece os instrumentos necessários para se mostrar de forma mais profunda e contraditória, a sua função no segundo (Little Edie) parece ser apenas cantar e pouco além disso, ficando extremamente apagada diante do histriônico cenário de Bia Junqueira e da energia de Suely Franco. Em termos de interpretação, destaca-se positivamente a pequena participação do Senhor Bouvier (pai de Big Edith/Sandro Christopher), porque cheia de força, excelente dicção e ótimo uso de pausas e de entonações; e negativamente, as construções de Carol Puntel para Little Edie e de Danilo Timm para Jerry, ainda mais superficiais do que parecem ser os personagens no texto.
Com uma trilha sonora associada a Soundheim, as músicas são mais estranhas aos ouvidos daqui acostumados aos velhos hits dos musicais tradicionais do repertório norte-americano. Com direção musical de Carlos Bauzys e de Daniel Rocha, o espetáculo, do ponto de vista das canções, é bem realizado, proporcionando ao público o convívio com canções que nos remetem aos dias de ouro da mansão Grey Gardens positivamente.
É brilhante o trabalho de iluminação de Luiz Paulo Nenen e de figurino de Marta Reis. Leveza, elegância e boas caracterizações, tanto de tempo, como de lugar e de clima, os dois trabalhos cumprem o seu papel de forma elogiosa. O mesmo não se pode dizer do cenário de Bia Junqueira, nem tampouco dos vídeos e de seus usos. Grey Gardens, no primeiro ato, está mais para uma mansão “de novos ricos” do que para a aristocracia americana “cuja marca é a responsabilidade” (citando uma fala do texto). No segundo ato, em relação direta à montanha de “Dias Felizes” de Beckett, a pilha de lixo afasta o espetáculo do realismo, ficando no meio do caminho entre o expressionismo e a tragédia contemporânea. Os vídeos são ainda piores, com mais marcas de superficialidade, remetendo à animação infantil.
“Grey Gardens” foi indicado a vários prêmios e ganhou alguns no ano de seu lançamento nos Estados Unidos. Talvez, seu caso seja uma evidência interessante de que troféus não são garantia de presença de valores ou de ausência deles, mas apenas um fato que, em alguma medida, pode ser relevante e, em outra, não. (O excelente musical “Chicago”, por exemplo, não ganhou os muitos prêmios merecidos em 1975 porque concorreu no mesmo ano em que “A Chorus Line”. O filme “O Mágico de Oz” passou pelo mesmo problema em 1939, ano em que “...E o vento levou” ganhou todos os Oscar que pode). Em suma, no caso da produção brasileira, não fosse Soraya Ravenle e Suely Franco nos papéis títulos, teríamos um grande problema que, por elas, mas também pela presença de mais alguns, foi positivamente amenizado.
PS.: Um elogio merecido à Assessoria de Imprensa de Daniella Cavalcanti e de Clarissa Braga pelo envio da ficha técnica completa no release. O nome disso é valorização de todos os profissionais envolvidos, o que prova a ciência de ambas de que, independente do resultado de uma avaliação estética, esta sempre pessoal e, por isso, subjetiva, o ato de fazer teatro nesse país, com todas as suas dificuldades, sempre merece aplauso nome por nome. Parabéns!
FICHA TÉCNICA
Direção: Wolf Maya
Direção Musical: Carlos Bauzys e Daniel Rocha
Texto Doug Wright |Melodias Scott Frankel | Letras Michael Korie
Versão Brasileira: Jonas Calmon Klabin
Versões Adicionais: Claudio Botelho
ELENCO
Protagonista: Soraya Ravenle (Edith mãe primeiro ato e Edie ou Pequena Edith no segundo ato)
Atriz Convidada: Suely Franco (Edith mãe no segundo ato)
Elenco: Carol Puntel (Edie ou Pequena Edith no primeiro ato), Guilherme Terra (Gould), Sandro Christopher (Major Bouvier),Pierre Baitelli (Joseph Patrick Kennedy Jr, stand-in para Jerry), Jorge Maya (Brooks e Norman Vincent Peale), Danilo Timm(Jerry, stand-in para Joseph Patrick Kennedy Jr, Gould, Major Bouvier e Brooks) e as crianças Raquel Bonfante (Jaqueline Kennedy) e Sofia Viamonte (Princesa Lee), Mirna Rubim (stand-in para Edith mãe no primeiro e segundo ato e Edie ou Pequena Edith no segundo) e Thuany Parente (stand-in para Edie ou Pequena Edith no primeiro ato, Jaqueline Kennedy e Princesa Lee).
ORQUESTRA
Regência: Juliano Dutra
Orquestra: Inah Kurrels (violino), Janaina Salles (cello), Levi Chaves e Marco Tulio alternando (palheta 1: flautim, flauta, flauta alto, clarinete e sax alto), Marco Moreira Chiquinho (palheta 2: clarinete, flauta, sax soprano, sax tenor e clarone), Naílson Simões (trompete e flugel), Waleska Beltrami e Priscila Viana alternando (trompa), Marcelo Farias (pianista), Raul d’Oliveira(baixo) e Tiago Calderano (bateria e percussão)
Músicos substitutos da orquestra: Anderson Pequeno (violino), Beto Bonfim (bateria e percussão), Gilberto Junior e Alex Freitas alternando (palheta 2: clarinete, flauta, sax soprano, sax tenor e clarone), Orlando Walter (trompete e flugel) e Priscilla Azevedo (pianista)
EQUIPE DE CRIAÇÃO
Cenografia: Bia Junqueira
Iluminação: Luiz Paulo Nenen
Figurino: Marta Reis
Coreografia: Marcia Rubin
Designer de Som: Gabriel D'Angelo
Preparação Vocal: Mirna Rubim e Carlos Bauzys
Identidade Visual: Debora Bensusan e Tânia Grillo
Assessoria de Imprensa: Daniella Cavalcanti
Produção: Jonas Calmon Klabin
EQUIPE DE DIREÇÃO
Diretora assistente: Rafaela Amado
Assistentes de direção adicionais: Gustavo Klein e Lia Racy
EQUIPE DE DIREÇÃO MUSICAL
Copista e editoração: Daniel Rocha
Programação de teclados: Heberth Souza
Pianistas ensaiadores: Marcelo Farias e Priscilla Azevedo
EQUIPE DE VERSÃO E TEXTO
Tradução do texto: Tatiana Aragão e Jonas Calmon Klabin
Versão para “Will You”(“Você”): Marya Bravo
Colaboradores da versão e adaptação brasileira: Marya Bravo, Noé Klabin, Soraya Ravenle e Wolf Maya
EQUIPE DE CENOGRAFIA E VÍDEO
Concepção Imagens Projeção Bia Junqueira e John Fitzgerald
Direção de vídeo projeção: John Fitzgerald
Assistente de cenografia: Bia Kaysel
Assistente de montagem: Julia De Francesco
Lay-out 3D: Henrique Mourthe
Produção de objetos: Manu Cerqueira
Design e Animação:
-Motion: Felipe Duarte, Camila Moraes, Lilian Gorini e Renato Brandão
-3D: Henrique Mourthe e Renato Brandão
Projeção Mapeada:
-Consultoria técnica: Gabriela Costa de Castro
-Programação: Marlus Araujo
-Assistente: Rafael Drelich
Assistente de vídeo projeção: Lilian Gorini
Operadores de projeção: Caio Chacal e Carlos Gabriel
Adereços: Alex Grilli
Cenotécnicos responsáveis: Robson Silva Alves e Lemoel Silva Alves
Painel de boca de cena: Denis Nascimento e Jorge Ferreira Silva
EQUIPE DE ILUMINAÇÃO
Iluminadora assistente: Daniela Sanches
Operador de luz: Daniela Sanches e Eduardo Nobre
Operadores de canhão (estagiários): Carlos Deonisio e Raissa Teo
Montagem de luz: Eduardo Nobre, Genilson Barbosa e Walace Furtado
EQUIPE DE FIGURINO E VISAGISMO
Visagismo: Flavio Priscott
Maquiagem: Daniel Reggio
Equipe de figurino: Rafael Viana
Assistente de figurino: Eduardo Leão
Alta costura: Ana Maria Amaro
Alfaiataria: Antonio Foicinh
O broche de Edie foi reproduzido do original por Sonia Cabrera
EQUIPE DE SOM
Designers de som associados: Martim Crawford e “PePe” Pedro Paulo Monnerat
Sonoplastia: Maloca Estudio
Operador de som: “PePe” Pedro Paulo Monnerat
Microfonista: Augusto D’Angelo
Assistente técnico de som: Daniel Lages
EQUIPE DE IDENTIDADE VISUAL E REGISTRO
Fotografia artística: Luiz Paulo Nenen
Making of e Registro videográfico: Andarilho Filmes
Fotografias adicionais: Arthur Seixas, João Clavio e John Fitzgerald
Criação do site: André Vieira
Assistente de Identidade visual: Tatiana Bond
EQUIPE DE ASSESSORIA DE IMPRENSA
Assistente de assessoria de imprensa: Fernanda Miranda
Estagiária: Clarissa Braga
Lista de convidados: Evandro Rius
EQUIPE DE PALCO
Diretor de palco: Carlos Elias
Maquinista: João Paulo da Mata
Contrarregra: Patrick Silva
Assistente de contrarregra: Leandro Jacinto
Camareiras: Luci Moreira, Ligia Soares e Cleidimar dos Santos
Limpeza apoio: Dna. Dora
EQUIPE DO TEATRO MUNICIPAL SALA BADEN POWELL
Administração: Grace Rial
Secretário teatral: Fábio Anderson
Assistente administrativo: Priscila Bezerra
Bilheteira: Célia Silva
Técnicos de som: Naldo Neto e Thiago Tavares
Técnicos de luz: Sérgio de Oliveira e Well Ribeiro
Contrarregras: Alexandre Araujo e William Alves
EQUIPE DE ADMINISTRAÇÃO
Coordenação Administrativa e Financeira: Cristiane Cavalcante
Coordenação Administrativa e Financeira de pré-produção: Angélica Neves
Coordenação de Comunicação: Natalie Kneit
Consultoria: Cristina Bueno
Contabilidade: Paulo Cezar Mendes
Assessoria Jurídica: Dionísio, Hollanda e Bodas Sociedade de Advogados
EQUIPE DE PRODUÇÃO
Direção de Produção: Tathiana Mourão
Produção Executiva: Lia Racy
Coordenador de Produção: Thiago Páschoa
Produtores Associados: André Vieira e César Augusto
Produtor Operacional: Tiago Morenno
Assistentes de produção: Marcos Pereira e Tabil Volski
Estagiária de produção: Sheila Cardozo
Baseado no filme “Grey Gardens” de David Maysles, Albert Maysles, Ellen Hovde, Muffie Mayer e Susan Froemke.
A produção original da Broadway é assinada por East of Doheny, Staunch Entertainment, Randall L. Wreghitt/Mort Swinsky, Michael Alden, Edwin W. Schloss, todos em associação com o Playwright Horizons.
Grey Gardens foi desenvolvido com o apoio do Sundance Institute.
Assisti por 3 vezes as Mulheres de Grey Gardens, como leigo espectador, entendo que as criticas deste blog, em sua maior parte negativas, são extremamente contraditórias em suas afirmações e não condizem com a realidade do espetáculo. Salvam-se somente os poucos elogios dissertados pelo autor.
ResponderExcluir"Leigo espectador" leia-se alguém parente da equipe. Porque só assim pra aguentar três vezes essa chatice. Rodrigo você é muito elegante. E me faz pensar sobre o meu trabalho como atriz. Espero um dia ler uma crítica tua sobre o meu trabalho.
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