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Flavia Milioni |
O gigante (e ótimo) espetáculo de uma mulher só
O delicioso monólogo “O quadro ou Pequeno poema para o fim do mundo” é o primeiro espetáculo solo de Flavia Milioni. A peça tem dramaturgia, direção, interpretação e todos os outros elementos também assinados por ela em um trabalho completamente autoral no melhor significado do termo. E é uma beleza. Enquanto se abre corajosa e delicadamente ao interesse do público, a intérprete o conquista em uma narrativa doce, alegre e emocionante que dura quase sessenta minutos. O tempo passa voando! Vale a pena estar com ela e assistir à essa ótima peça que fica em cartaz na Casa Rio (em frente ao Teatro Poeira), em Botafogo, zona sul do Rio de Janeiro, até a próxima quinta-feira, 27 de outubro.
Excelente dramaturgia
A narrativa tem um tom biográfico que, se não for verdadeiro, auxilia muito na aproximação da peça com a audiência. A história começa em Araçatuba, cidade no interior de São Paulo, no início dos anos 80. A mãe de Flávia havia comprado, de um caixeiro viajante, um quadro que retratava um casario colorido. Pendurada na parede da sala, a tela despertava a atenção da menina. Tempo depois, a separação dos pais e as voltas da vida a obrigaram a mudar-se de um lugar para outro constantemente. A imagem da pintura, nesse contexto, ganhou outra importância. Para a Flavia da peça, representava o porto seguro, o lar, o sabor da constância. Seu choque foi imenso quando, sem mais nem porquê, a tela foi vendida.
“O quadro ou Pequeno poema para o fim do mundo” pode ser dividido, para fins de análise, em duas partes. A primeira consiste na estruturação do sentido e a segunda na narrativa propriamente dita. De início, a dramaturgia de Milioni se esforça em caracterizar sensorialmente seu tema. A peça começa com sua intepretação, ao piano, da canção “Over the rainbow”, do americano Harold Arlen. Com isso, faz-se uma ótima referência ao clássico “O mágico de Oz” – livro de L. Frank Baum que virou muitas coisas, entre elas, o célebre filme de 1939 com Judy Garland no papel de Dorothy. Com essa abertura, o monólogo cheira a sapatinhos vermelhos e a “There`s no place like home” (“Não há melhor lugar que a nossa casa”). Seguem informações culturais a respeito do ano de 1982 no Brasil e também a caracterização de Araçatuba, tudo com vistas à aproximação do público daquilo que contextualiza a história que está por vir.
Na narrativa da peça, se vê excelente articulação dos fatos que apresentam o conflito, o desenvolvem e apontam para o desenlace. O mérito dela está no que lhe abriga: canções (interpretadas ao vivo por Milioni) que embalaram as últimas décadas, dados sobre economia e política e descrição do universo cultural. Nesse movimento, com cada vez mais força, o sentido se estrutura e se modifica em jogo proposto pela atriz/dramaturga mas partilhado deliciosamente pelo público ao longo da sessão. Sai-se do espetáculo com a imagem do quadro cordialmente gravada na memória.
Intimidade e equilíbrio marcam direção e interpretação
Flavia Milioni, que dirige o monólogo que ela mesma interpreta, faz do valor às coisas simples não apenas o tema do espetáculo mas também o modo como o viabiliza. Sem preciosismo ao piano, ao violão e ao canto, seu empenho colabora na acolhida do público que a vê “de igual para igual”. Sentadas próximas a ela, as pessoas que assistem participam da roda de mãos dadas à atriz, gesto esse que normalmente só os atores fazem entre si na coxia antes do espetáculo começar. Ao longo do espetáculo, alguns objetos são manipulados, outros são apenas vistos. Com extrema simplicidade, essa bela encenação nasce, se desenvolve e termina em um clima agradabilíssimo que marca o encontro essencialmente humano que o teatro promove entre audiência e corpo criativo.
Sem qualquer poluição mas com muita fluência, o monólogo não se constitui a partir de largos movimentos, nem de expressões determinadas. Em sua defesa, positivamente articulada com a natureza do espaço em que o espetáculo se apresenta, se vê o privilégio à intimidade e ao equilíbrio em um encontro em que há distanciamento, mas também afeto. Trata-se de um nobre trabalho de interpretação em que se veem, além disso, ótimos usos das contribuições possíveis do figurino, do cenário, da luz (a colaboração dessa última tem assinatura compartilhada com Bruno Aragão) e da trilha sonora.
“O quadro ou Pequeno poema para o fim do mundo”, em sua pequenez, é um gigante na programação teatral do Rio. Que ganhe novas e longas temporadas!
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Ficha técnica:
Texto, direção, interpretação, cenário, figurino, trilha sonora e produção: Flávia Milioni
Luz: Flávia Milioni e Bruno Aragão
Exatamente isso: "o espetáculo tem cheiro de sapatinhos vermelhos". É muito lindo, ameiiiiiii!!!
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