Jorge Neves interpreta o taxista Sergio em peça escrita, dirigida e producida por Cristina Fagundes |
O hiper-realismo em um EXCELENTE espetáculo na programação do Rio
É para peças como “No táxi” que as leis de incentivo governamentais são feitas. Com um elenco de sete pessoas, a lotação máxima de público é de três. Apenas três pessoas podem assistir a “No táxi” por vez, porque apenas 3 pessoas cabem no banco de trás de um táxi. Com texto, direção e produção de Cristina Fagundes, o espetáculo é nada menos que excelente. Tem excelentes interpretações, excelente trabalho de direção, mas também é um excelente motivo para pensar em Jean Baudrillard e as reflexões dele sobre o estado limite entre realidade e não-realidade, o que ele chama de hiper-realidade. Na produção, o espectador entra em um táxi no Sindicado do Chopp, no Leme, zona sul do Rio de Janeiro, e aguarda a peça começar. Sérgio (Jorge Neves), o taxista, está tomando um café nas redondezas quando volta ao trabalho, entrando no carro e ligando o motor. “No táxi” não é performance (nesse gênero, o espectador não sabe o que é personagem e o que é ator), mas é teatro no seu gene mais puro. Apesar de ser um táxi que realmente existe em um lugar da verdade que é além da narrativa e apesar desse carro andar por ruas da cidade que fervilham de vida não ficcional, sabemos que é uma peça, sabemos que são atores interpretando o personagem e sabemos que há um texto, uma direção e uma concepção estética bem amarrada. E, se olharmos para o caminho que o espetáculo aponta, vamos ter a certeza de que é um excelente teatro.
Primeiro sobe um turista em visita ao Rio (Marcelo Dias), depois uma senhora dona de um envelope (Mabel Cezar), em seguida uma mulher (Ana Paula Novellino) vinda de um almoço com a irmã (Cristina Fagundes) e, por fim, um ex-presidiário (Fernando Melvin). No meio caminho, uma das amantes do taxista o surpreende mentindo (Rita Fischer). O todo, assim, mistura histórias da vida pessoal do taxista e também dos seus passageiros, mas, embora tudo isso seja bem feito, não é aí que está a potencialidade maior dessa produção. Durante o trajeto, pessoas fazem sinal para o táxi, trabalhadores do posto de gasolina assistem à briga entre Sérgio e sua amante, o rádio ligado no interior do carro está realmente transmitindo a programação de uma rádio em tempo real. Como se não bastasse, há outras camadas: no banco de trás, o balanço do carro é como um balanço além da narrativa. Os barulhos da cidade, a vista, o ritmo do trânsito, os cheiros, tudo isso pertence ao mundo além do teatral. A experiência, mantendo-se dentro de altos padrões de qualidade estética da ordem da interpretação, da direção e da dramaturgia, é também uma experiência sensorial de mundo, pois o espectador, como um fantasma, está no banco de trás sem ser visto, preservada a quarta parede, como um voyeur bastante íntimo.
Em termos de teoria teatral, sabemos que, diferente do que acontece com as outras artes, não há uma especificidade teatral, um signo que seja próprio do teatro e só dele. O teatro vive de signos tornados teatrais. Uma cadeira que existe além da peça, no palco, pode ser um trono se, ao seu lado, estiver um ator interpretando um Rei. Em outras palavras, o teatro torna seu aquilo que não é seu. Em “No táxi”, o processo é surpreendentemente outro, pois o teatro, aqui, não se apropria de um objeto do mundo, desventindo-o de suas regras primeiras e investindo-o sobre outra lógica, mas apropria-se DO MUNDO, fazendo conviver a lógica teatral com a lógica não-teatral concomitantemente. Na plateia, o espectador sabe, com um olho, que está assistindo a uma história, mas sabe também, com outro, que uma série de vários acontecimentos imprevisíveis pode acontecer. Além disso, “No táxi” recupera a discussão de José Carrera sobre a dicotomia entre o “teatro de rua” e o “teatro na rua”. Embora partamos da segunda opção, sabemos que o carro está na rua, mas nós estamos dentro dele (e, durante a peça, só sairemos se quisermos), de forma que, também nesse ponto, a produção vai além, pois discute o espaço teatral com ainda maior profundidade.
São notórias as nuances interpretativas do trabalho de cada um do elenco. Como estamos bastante próximos da cena, os gestos que dão a ver os personagens são positivamente minuciosos: a caída de um olhar, um segundo de tempo mais demorado, o toque das mãos do taxista na coxa do passageiro ao mudar de marcha, entre outros. Em rápidos momentos, os atores quebram a barreira com o público, olhando para eles através do retrovisor. Nesse microssegundo, o acordo é ratificado: “estamos contando uma história pra você”. No todo, não há destaques no trabalho de interpretação, pois todos os intérpretes oferecem belíssimos trabalhos de atuação, o que salto positivo também para a direção de Cristina Fagundes.
Além do já tratado, vale uma atenção particular para o texto. De um lado, temos cenas (o taxista e os passageiros) e entre-cenas (o taxista antes e depois dos passageiros) bem construídas, com contornos surpreendentes, bastante engraçadas e não menos tensas. De outro, temos uma dramaturgia alternativa que se esforça no estabelecimento de marcas de hiper-realidade: comentários visuais, respiração mais demorada, inserção de “cacos” sem exagero (o que aumentaria negativamente a insegurança e criaria uma espécie de desvalor) de forma que o que acontece dentro do táxi teatral dialoga com o mundo que o circunda fluentemente. O jogo é bastante positivo, cheio de méritos.
“No táxi” é uma produção que não tem como viver de bilheteria por partir de uma situação que impede formalmente isso (o mesmo acontece com o Teatro de Lambe-Lambe, por exemplo, esse feito para apenas um espectador por vez). É, no entanto, uma obra artística cheia de potencialidades reflexivas e que proporciona uma experiência estética ímpar. Olhando para o programa da peça entregue antes de entrarmos no táxi, há que se ver com tristeza nenhum incentivo público. Isso precisa ser corrigido! O mais, aplausos e vida longa!
FICHA TÉCNICA
TEXTO E DIREÇÃO: Cristina Fagundes
ASSISTÊNCIA DE DIREÇÃO: José Auro Travassos
ELENCO: Ana Paula Novellino (Lídia), Cristina Fagundes (Selma), Fernando Melvin (Bigorna), Jorge Neves (Sérgio), Mabel Cezar (Diva), Marcelo Dias (Jorge Maiquel ) e Rita Fischer (Vânia).
PRODUÇÃO: Cristina Fagundes
ASSISTÊNCIA DE PRODUÇÃO: Herton Gustavo
FIGURINO: Luana Monteiro
TRILHA: Egressos do Clube
PROGRAMAÇÃO VISUAL: Marie Moreira
FOTOS: Cerejeira Produções
ASSESSORIA DE IMPRENSA: Lyvia Rodrigues
REALIZAÇÃO: Fagundes Produções
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