domingo, 10 de novembro de 2013

Júlia (SC) (3o OFF-Rio, Multifestival de Teatro de Três Rios)

Reveraldo Joaquim e Yonara Marques em "Júlia"
Foto: divulgação

A gargalhada que fere


Júlia e Palheta, personagens do espetáculo “Júlia”, vêm para colocar o homem de frente ao seu pior: o preconceito, a sua dificuldade em aproximar-se do diferente, a sua tendência em julgar os outros homens pela sua aparência, a sua mania de se diferenciar com vistas a posições supostamente superiores entre os seus iguais. O bufão não é um gênero cênico-narrativo, mas interpretativo, como o clown ou o teatro de bonecos, por exemplo. Isto é, no caso dessa peça, importa menos a história e muito mais a forma como os personagens lidam com o olhar do público sobre si. Empurrada sobre uma carroça, Júlia, que não mexe as pernas, promete dançar. E, enquanto o seu show é preparado na praça, as relações entre ela e Palheta são expostas: o poder e a submissão, a necessidade de independência e o amor, o sexo, o dinheiro, a vaidade, a carência e, principalmente, a fome. Ocupado com as peripécias da dupla, o público gargalha para, no final, descobrir que esteve rindo de si próprio, fazendo vir a sua podridão, absorto na ilusão de estar debochando de outrem. Produzido pelo grupo Cirquinho do Revirado, o espetáculo encerrou o primeiro dia de atividades do 3o OFF-Rio, Multifestival de Teatro de Três Rios.

Com um chicote nas mãos, Júlia determina as ações de Palheta: estender roupas, situar a carroça, apresentar o show que está para começar. Aproveitando-se do fato de não movimentar as pernas, clama para si, em momentos específicos e convenientes, a piedade tanto do companheiro como do público. Porque acontece em uma praça ao ar livre, o público está interpretando a si próprio, incluído sem licenças nas ações de ambos os personagens. A gargalhada tem seu preço: a plateia será ofendida, injuriada, comprometida, o que ratifica o acordo que, no final, será imprescindível para o sentido completo se dar a ver. “Júlia” fala de homem para homem de forma muito mais séria do que aparenta e, pela alta qualidade dos trabalhos de dramaturgia, direção e de interpretação, além da excelente articulação dos demais elementos que constroem o todo, merece vastos aplausos.

Yonara Marques (Júlia) e Reveraldo Joaquim (Palheta) têm grande carisma, despertando, a partir de suas ações, a piedade, o riso, a indignação. No contorno de suas interpretações, é visível a consciência corporal, essa disposta de jeito bem dosado, equilibrado e com vistas a um ápice positivamente aterrador. O idioma utilizado no início do espetáculo ou vai se modificando em um português mais próximo dos ouvintes (nós), ou vai sendo melhor compreendido em função do acostumar-se a ele por parte do público. O jogo é sutil, delicado e, por isso, nobre. As tensões que acontecem entre um agir e outro na multiplicidade dos desafios – descer da carroça, banhar-se, apanhar, ir embora ao ser adotado, ganhar aplausos e dinheiro, etc – mantém presos a atenção e o interesse. Os tons de voz, as intenções, a relação proxêmica e, principalmente, o ritmo com que as surpresas vão aparecendo diante da plateia justificam a avaliação da direção de Pepe Sedrez, assistido por Fabiano Peruchi, como excelente.

É mister destacar o belíssimo trabalho de cenário e de figurino de “Júlia”. Superficial e inicialmente visto como cheio de teatralidade, os objetos assim postos concordam com o todo também “puxando as orelhas” do analista, cujos olhos podem estar fechados para a potencialidade estética dos moradores de rua, esses como nós tão cheios de vaidade. Nesse sentido, a peça se apresenta com fortes marcas de coerência e de coesão, essas responsáveis pela articulação de um discurso em favor de uma tese tão séria como é o contato do humano com outros humanos.

O grito final de “Júlia” alerta para dois caminhos: mantermos os preconceitos ao enxergarmos os diferentes como farsantes ou encararmos o desafio em avaliar-nos ao ver esses diferentes como farsantes como nós. Sem obrigar ninguém a se posicionar, gentilmente o espetáculo fere (e sangra) com a excelente desculpa de ter nos feito rir e entreter. Maravilhoso!

*

Ficha técnica:

Texto: Yonara Marques, Reveraldo Joaquim, Fabiano Peruchi e Pepe Sedrez
Direção: Pepe Sedrez
Assist. De Direção: Fabiano Peruchi
Elenco: Yonara Marques e Reveraldo Joaquim

Um comentário:

  1. Esta peça de teatro é bem assim mesmo, o público participa, se revolta, se sente parte da história, fica ofendido, porque retrata nosso dia-a-dia! Valeu pela crítica.

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