quinta-feira, 14 de novembro de 2013

Aqueles dois (MG) (3o OFF-Rio, Multifestival de Teatro de Três Rios)

Os atores em cena em peça a partir do conto de
Caio Fernando Abreu
Foto: divulgação

Potência, inteligência e técnica: o teatro em várias camadas

“Aqueles dois” é um privilégio. O espetáculo, da companhia mineira Luna Lunera, homenageia o gaúcho Caio Fernando Abreu com a sensibilidade da arte e com a técnica do repertório estético cultural. Composto de várias camadas, assistir-lhe e assistir-lhe novamente são tarefas que podem sempre acrescentar. Atualizando (atualizar não é sinônimo de verter para 2013, mas construí-lo a partir do que não é virtual, de signos que sejam visíveis, cenicamente palpáveis, concretos) o conto homônimo, a montagem celebra o olhar do outro e a criação de abismos que separam os dois protagonistas do resto mundo, fazeres esses que são o tema da crítica do contista realista psicológico gaúcho. Como fizeram Machado de Assis e Dostoievski no século XIX, e também como fez Clarice Lispector no XX, Caio critica a sociedade, situando o leitor em uma realidade psicológica específica. Nesse caso, temos Raul e Saul, um do sul e outro de norte, que se encontram em São Paulo, mesa ao lado de mesa, em uma repartição cheia de telefones tocando, arquivos se abrindo e se fechando, máquinas de escrever gritando e cafés mal feitos sendo a única saída para tamanho stress. Enquanto o mundo de muitos olhares censores vai sendo construído, o mundo particular de dois desconhecidos que vão se unindo vai crescendo e se preparando para o embate. No espetáculo dirigido coletivamente, esses dois movimentos se dão a ver discretamente, mas não menos potente. Quando prontos, não resta outra alternativa ao espectador se não ser julgado ou julgar e, provavelmente, cair de joelhos. Belíssimo!

Na primeira parte de “Aqueles dois”, não temos um ator a interpretar Saul e outro a Raul, porque ambos, quem sabe, são vistos como mais dois em uma massa de ternos, gravatas, listas de presentes e fofocas cotidianas de um mundo burocrático bem estruturado. É aos poucos que, à francesa, os dois vão se separando dos demais. Quando começa a segunda parte da peça, a forma como o espetáculo se dirige ao público também muda. Caio deixa de olhar para todo e passa a olhar o todo através de Raul e de Saul que, e aí está o preciosismo, não notam que também estão sendo olhados. Essa tripartição – o escritório e como ele olha para “aqueles dois”, os dois protagonistas e como nós olhamos para ambos – vai sendo jogada pela narrativa teatral de forma equilibrada, sem apontar um vencedor ou um perdedor, mas mantendo a tensão até os últimos minutos do segundo tempo. Quando vem o final, esse é sucedido pela sugestão de um epílogo, uma possível prorrogação, em um momento em que apenas o espectador tomará parte, já que tanto o escritório como “aqueles dois” já estarão em outra dimensão. Caio finaliza e critica como a ele cabe, mas não impõe uma resposta final gentilmente.

O universo de Raul e de Saul parece ir brotando de um espaço recheado de máquinas de escrever, luminárias, pastas e xícaras de café. O cenário, em que todos os objetos estão no chão e a parede de fundo é preta, proporciona o visualizar desse movimento que remete à flor nascendo no asfalto. No final, os olhares criticados estão no alto, aterradores, perscrutadores, refletindo, talvez, o nosso olhar. É quando o soco maior de Caio e da Luna Lunera nos atinge cabalmente. Até aí dramaturgia, movimentação, interpretações, figurinos e trilha sonora já não nos deixaram dúvidas, já construíram uma realidade bem segura, já nos convidaram para fruir o drama e nós já aceitamos ao seu convite.

No todo e em cada parte, o teatro de “Aqueles dois” é forte, é potente, é necessário. Os aplausos unânimes que a peça vem obtendo desde 2007, quando estreou, têm aqui alguns justificativas. Vale ver para descobrir outras.

*

Ficha técnica:
Texto: Caio Fernando Abreu
Direção: Cláudio Dias, Marcelo Souza e Silva, Odilon Esteves, Rômulo Braga e Zé Walter Albinati
Elenco: Cláudio Dias, Guilherme Théo, Marcelo Souza e Silva e Odilon Esteves

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