Marcello Valle vive Marcello Vale em cena |
Foto: divulgação
O espetáculo “Laboratorial”, produção integrante da comemoração dos 25 anos da Companhia dos Atores, é excelente. Simples, dinâmica, criativa e muito inteligente, a peça articula uma série de questões que, ao mesmo tempo em que fazem a arte pensar sobre si própria, promove um espaço para o homem pensar sobre si mesmo, sobre o lugar para onde a maturidade o leva e sobre que tipo de contemporaneidade o circunda. Minuciosa, delicada e pontual, a peça parte de um lugar de sublime convivência entre um ator (Marcelo Valle) e o público, esse tão essencial ao teatro desde a sua aparição. Indo adiante, vai encontrar-se com a contemporaneidade – o aparato tecnológico – e com a multiplicidade das pessoas discursivas dentro de uma só pessoa. Somos, afinal, o perfil do Facebook, do Instagram, do Whatsapp e do Grooveshark, o cidadão que defende mudanças na política e opina sobre tudo, sem deixarmos de ser o filho, o namorado, o aluno, o profissional, o locatário e o cliente. Por fim, a peça faz uma volta ao ponto que é anterior ao inicial: antes de estarmos diante de outros homens e de sermos muitos homens, somos homens. E aí, na solidão de Cabíria, encontramos graça em recomeçar, pois não há outra alternativa para seguir. Escrita por Diogo Liberano, a montagem se situa ao lado de “Sinfonia Sonho” e de “Maravilhoso” no currículo de ótimos textos desse jovem dramaturgo. Dirigida por Cesar Augusto e pelo inglês Simon Will, a peça faz do extremo íntimo o seu maior palco e, por isso, se coloca no roll dos grandes espetáculos desse ano carioca tão rico. Vale muito a pena ver!
É certo que o maior desafio do teatro é a sua existência e isso está no sangue que corre em suas cortinas. Diferente das outras artes, o teatro não sobrevive além dos artistas e além do público que assiste aos artistas, pois, quando acaba o momento de encontro, acaba o teatro. Ou seja, falar sobre teatro é sempre falar sobre algo que já não existe em sua corporalidade. Quando Marcelo Valle (propositalmente o nome do personagem e o nome do ator são o mesmo) se propõe a discutir que tipo de ator tem sido, que tipo de homem tem sido, o que ele quer de sua vida para dali adiante, para o quê serve a sua profissão, o personagem se torna metáfora do teatro. Ao dizer que precisa da ajuda do público para imaginar um corpo que não está fisicamente em cena, por exemplo, pontua o fato de que teatro, desde os gregos, é "lugar de onde se vê". Esse corpo a ser imaginado é, por sua vez, metáfora para o laço que une público e plateia, processo e realização, início e fim do espetáculo – acordos esses que fazem parte da liturgia cênica no âmbito de suas partes. Quando, ainda, o ator propõe uma interação dele próprio com figuras de si exibidas através de monitores de televisão, câmeras de vídeo ligadas ao vivo e imagens fotográficas de si próprio recortadas, o teatro se questiona sobre o seu lugar na parafernália internética em que, quanto mais acessíveis estamos e acessados somos por outrem, mais sozinhos também ficamos. Por fim, depois de dois atos completamente estéreis, teórico-argumentativos, frios, alguém abre uma porta por onde se vê a vida lá fora da sala de espetáculos. Nisso, o teatro vira discurso feito para lembrar que o homem só é homem enquanto é parte da natureza e é nesse ser parte que nos encontramos – ator e público.
Com um roteiro aparentemente despretensioso, “Laboratorial” constrói suas estruturas invisivelmente. O espectador acompanha o discurso de Valle e se perde em tentativas de dar sentido para o que vê, entender o que está acontecendo e encontrar, assim, o seu lugar dentro da proposta do espetáculo. É de propósito, pois a peça precisa estruturar esse lugar de abandono para só então dizer a que veio em sua potência. E diz sublimemente. Na direção, cada passo, cada movimento, cada frase são articulados em grande delicadeza, de forma que, ao longo dos minutos da apresentação, o encontro deixa de ser vulgar ou mero entretenimento e volta a ganhar a importância que, no teatro, felizmente nunca deixou de ter (apesar das pessoas insistirem em não desligar celulares, em gostar de filmar peças, em fotografar cenas, em comer balas barulhentas). Contudo, o maior destaque dessa produção é o modo como o vídeo está presente na cena, esse a partir de projeto de Alexandre Bastos (NovaMidia). Sem serem ilustrativamente cenográficas, as projeções também não concorrem com o ator, mas o questionam e interrogam o teatro como todo no seu maior desafio já exposto: a existência. Nesse sentido, “Laboratorial” atinge o objetivo, mas só é realmente bom porque nos força a levar o resultado dessa experiência (laboratorial) para a vida que, ao final, contemplamos lá fora na beleza da diferença que a arte propõe.
Antes de terminar, feitas quase todas as considerações mais importantes, é preciso elogiar Marcelo Valle por tudo, mas principalmente pela qualidade de seu uso vocal. Nisso, mostra-se um ator infelizmente cada vez mais raro: aquele que sabe dizer o texto de forma clara, inteligente, criativa e efetiva com toda a força de cada sílaba e com toda a intenção consciente de cada tom ou pausa. Excelente.
“Laboratorial” cumpre temporada na Sala Rogério Cardoso, da Casa de Cultura Laura Alvim. Fica a exortação para fruir esse momento bastante especial que essa análise tentou descrever (e avaliar).
Ficha técnica
Com: Marcelo Valle
Direção: Cesar Augusto e Simon Will
Dramaturgia: Diogo Liberano
Assistente de direção: João Marcelo
Estágio de direção: Breno Motta
Cenário: Aurora de Campos
Figurino: Antonio Guedes
Iluminação: Maneco Quinderé
Trilha sonora: Felipe Storino
Projeto de multimídia: Alexandre Bastos / NovaMidia
Direção de produção: Tárik Puggina
Produção: Nevaxca Produções
Coprodução: Treco
O espetáculo foi criado colaborativamente entre Cesar Augusto, Diogo Liberano, Marcelo Valle e Simon Will
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