Evandro Manchini em "Um-Fausto" |
Com vocês, Daniel Belquer e Evandro Manchini!
“Um-Fausto”. O segundo semestre do Rio de Janeiro começa com a estreia de um espetáculo muito, muito, muito interessante. Partindo da versão de Fausto, de Fernando Pessoa (“Fausto: uma tragédia subjetiva”), que, por sua vez, é análoga a quinhentos anos de adaptações na literatura, no teatro, na música, nas artes visuais, eis aqui um ponto de vista que merece a atenção do público carioca desse início de século XXI. Dividido em três partes, é possível identificar que todas as forças que fazem com que uma das partes iniciais seja boa também fazem com que a outra seja não tanto, deixando para o final o glorioso sentido capaz de dar harmonia, coerência e coesão para a odisseia que Daniel Belquer assina e em que Evandro Manchini atua. Com vocês, uma dupla que há de dar o que falar, e pensar, e sentir.
Primeira parte: Belquer aumenta a potência de todos os elementos tradicionalmente coadjuvantes no teatro, deixando-os em mesmo nível que o texto. Assim, as palavras ditas por Manchini co-protagonizam uma cena em que o som é fundamental, as projeções são essenciais, a movimentação é importante, a articulação entre as cenas é indispensável, tudo isso ao lado das falas e do como elas são ditas. Pouco a pouco, o convite à desatenção vai ficando mais claro, uma vez, em cada laço da estrutura, nota-se diversão no lugar de concentração. Têm-se aí o teatro pós-dramático, empurrando para o espectador a função máxima e quase única de dar sentido para o que é visto a partir da eleição arbitrária e particular dos usos dos elementos que mais lhes chamam à percepção. Em paralelo a isso, no texto, há um personagem clamando pelo não-pensamento e implorando por mais sensação. Ele quer parar de dar sentido, estancar a leitura do mundo e das coisas que lhe acontecem, voltar para o prazer kaspariano (Peter Handke) de quem, já adulto, vê o mundo como se o visse pela primeira vez. Essa primeira parte termina na cena em que esse personagem pede a outro um filtro que lhe permita olhar o mundo com outros e novos olhos.
Segunda parte: Belquer e Manchini impõem a sua participação como dramaturgos de um espetáculo dramático em oposição ao ato anterior. Os personagens são agora bem definidos, há nomes, há vozes, há corporalidades que os diferenciam. A analogia (um tanto quanto superficial) da não-razão ao uso das drogas se torna óbvia e o desconflito inicial vira um conflito, isto é, aquele que queria parar de pensar, agora, está imerso em sentimentos. Da cena da cachaça em diante, a curva (no pós-dramático não há curvas, mas aqui estamos na parte dramática da peça) se torna ascendente, levando a narrativa para um ápice. E ele chega quando o personagem se apresenta já como um fiapo de ser humano, uma espécie de Gollum a vagar pelo mundo depois de completamente corrompido e destruído por si próprio e seus vícios. Essa odisseia do herói contemporâneo está começando a chegar ao fim.
Final: os segundos finais de “Um-Fasto” são apresentados de forma bastante sutil, mas não menos fortes. Primeiramente não hierarquizados e, depois, organizados de forma convergente, eles voltam agora, mas já sem força, enfraquecidos, porém, mais uma vez, lado a lado e sem diferentes graus de importância uns com os outros. Então, o que era branco vira cinza e a luz, como tudo, morre lentamente. Eis o fim.
À guisa de avaliação, há que se dar destaque, nessa montagem, ao bom uso do som, das projeções e da luz. Tanto um como todos, ambos fortificam o convite à percepção sensorial da peça, evitando a razão em um primeiro momento. Depois, fortalecem as diferenças entre os personagens e clarificam as situações em que esses se encontram. Ao final, voltam a ser protagonistas, sobretudo compartilhando com o ator a tarefa de fazê-lo apagar-se, enfraquecido estando o seu personagem. A trilha sonora age no mesmo sentido, oferecendo momentos diferentes, esses que dão margem para o respiro e para a confusão, impondo, mais adiante, significação quando essa é necessária dentro da concepção do diretor. Em se tratando de um monólogo, o ritmo se sustenta bem ao longo dos oitenta minutos na fruição de estreia, o que é mérito de toda a equipe.
Evandro Machini faz bom uso do corpo e dos tempos na viabilização do discurso oral e proxêmico (movimento pelo espaço). No que diz respeito à voz, ele tem como auxílio a tecnologia eletrônica, essa um elemento usado aqui positivamente como símbolo de desejo do homem contemporâneo. Quanto ao olho, carece-lhe, sobretudo na segunda parte, mais envolvimento no projeto de construção dos personagens. Seus gestos são precisos, sua afinação é excelente, sua presença é carismática.
Em espetáculo desse tipo, nenhum traço deve ser desperdiçado do olhar do público sob pena da interpretação variar a ponto de ausentar-se. Em tese, essa ordem se manifesta em forma e em conteúdo: nada na vida, afinal, deve ser desperdiçado.
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Ficha técnica:
Direção e concepção: Daniel Belquer
Atuação: Evandro Manchini
Dramaturgia: Daniel Belquer e Evandro Manchini
Cenografia: Doris Rollemberg
Iluminação e Retrovisão: João Marcelo Pallottino e Ricardo Grings
Música Original e Programação Sonora: Carlos Eduardo Soares
Direção de Produção: Sonja Gradel
Figurino: Cássio Brasil
Visagismo: Maurício Mello
Direção de movimento: Lavinia Bizzotto
Direção de sonografia: João Augusto Mannis
Colaboração de Programação (som, luz, vídeo, interação): Claudio Cabral
Assessoria Tecnológica: Jaime Rodrigues
Arte Gráfica: Diogo Monteiro
Programação interativa e Computação gráfica: Marlus Araújo e Daniel Belquer
Atriz em vídeo: Gabriela Fregoneis
Cenotécnico: Custódio Vieira
Fotos: Felipe O`Neill
Canções compostas por Daniel Belquer
Primeiramente gostaria de agradecer por sua generosa crítica, que se apresenta com um embasamento e um refinamento bem acima dos adjetivismos que tenho encontrado por aí. Justamente por isso me senti impelido a responder: porque é raro podermos entabular um diálogo nessa profundidade. Além do mais, dada a dificuldade de se encontrar ferramentas críticas atuais que provoquem outros olhares sobre o que está posto, acho possível artistas e críticos estabelecerem uma troca onde possamos elaborar um cruzamento de ideias realmente fecundo.
ResponderExcluirComeçando por Lehmann e seu teatro pós-dramático, você acertou em cheio. Quando descobri o livro, em 2009, já estava praticando essas desconstruções há muito tempo, mas ele me foi importantíssimo na medida em que legitimou o que eu estava fazendo e me forneceu enfoques abrangentes e várias referências de outros realizadores pelo mundo com os quais descobri muitas e intensas afinidades.
No entanto, o pós-dramático tem um compromisso de superação do dramático com o qual me sinto desconfortável. Um referencial teórico mais adequado para mim seria o pensamento complexo segundo Edgar Morin.
Nessa despolarização e, pelo contrário, num apagamento das fronteiras, pode conviver o pós-dramático e o dramático, o teatro e performance, a música tonal e a arte sonora, a cenografia e as artes plásticas, etc... simplesmente porque o dualismo não encontra lugar aqui.
Assim, falar em “parte dramática” e “parte pós-dramática” não faz sentido, mesmo porque os “personagens” estão presentes desde o final do segundo ato, quando o primeiro, Vicente (o discípulo), aparece. No terceiro ato temos Maria, depois o Velho que oferece o filtro (na cena em que Fernando Pessoa cria sua versão para a Cena da Cozinha da Bruxa, no original de Goethe), e todos eles têm corpovocalidades específicas.
Você também me parece extremamente acertado quando aponta a equivalência dos elementos cênicos com o texto, e aqui cabe o pós-dramático sim, quando Lehmann fala na derrocada do textocentrismo. Mas tenho dúvidas se isso poderia ser classificado como “diversão”. Nosso esforço foi no sentido de colocar o público acompanhando a desmontagem do racionalismo do Fausto de Pessoa e que esse esforço e ilusão de controle fosse se desmantelando também na cabeça/coração de cada um. Não como combate ao racional e exaltação à sensação pura, mas como pusemos no final: “o mundo volta a ser do pensamento, um outro pensamento”. Esse outro pensamento seria um que fosse mais aberto, mais arejado, mais fluente com a corporalidade, para além da noção do corpo como mero invólucro dos monoteísmos ocidentais...
Quanto ao uso das drogas como meio de esquecimento (como está em Pessoa), apesar de óbvio me parece perfeitamente adequado ao contexto, uma vez que nossa entidade fáustica se esforça enormemente por buscar uma “solução” de todas as formas e o filtro é apenas uma das muitas que se apresentam na peça.
Uma omissão que tem que ser apontada em seu texto é a falta de referência ao cenário e ao figurino. A cenografia de Doris Rollemberg é simplesmente genial e trabalhamos arduamente para chegar àquele resultado: um cenário que fosse ao mesmo tempo limpo, preciso e extremamente expressivo. Um suporte, um anti-cenário. Na mesma linha vem o figurino de Cássio Brasil. Depois de várias experiências, chegamos àquilo que tem a intenção de desaparecer, e talvez por isso mesmo não tenha sido notado, também uma espécie de anti-figurino.
No mais, numa iniciativa como a nossa, impossível, inviável, insensata, mas que num “perene mistério” se realiza com uma equipe de quase 20 pessoas num projeto sem editai$, que se desenvolve por um ano para chegar ao seu resultado, e que por um milagre lindo as pessoas vão nos prestigiar nessa visão da loucura sã que nasce e se presentifica diante de todos, é muito bom poder estabelecer um diálogo com mais profundidade.
Na consciência de que mudar a forma como a sociedade se vê é uma maneira efetiva de contribuir para sua mudança, agradecemos por sua escrita.
Daniel Belquer
Olá, Daniel!
ResponderExcluirEu geralmente não aceito comentários de diretores ou de pessoas ligadas à produção, porque sempre temo que elas, a título de querer explicar-se no calor do momento, acabam por depor contra si próprias. E normalmente não participo da sessão de comentários, porque a conversa quase sempre fica em torno de nada. Não é o caso aqui. A discussão que propões é justamente o motivo da existência dessa parte no blog: o alargamento da crítica que, por sua vez, é o alargamento do espetáculo. Excelente! Que bom que vieste!
Falar de Lehmann ou de Morin é sempre algo muito difícil em se tratando de um comentário num blog, mas posso resumir o pensamento do primeiro em algumas linhas se vc me perdoar a superficialidade da minha exposição. Você está certíssimo quando diz que o pós-dramático é uma superação do dramático. O normal é as pessoas pensarem erroneamente que um é a negação do outro. Como um gênero amplo, (ainda muito novo, não há subgêneros. A história há de se encarregar dessa análise.) há dramático dentro do pós-dramático, isto é, há personagens, há história, há todas as fontes do primeiro. Mas mas há diferenças que o separam. Enquanto o drama opera no sentido de convergir todos os elementos para um só ponto, resguardando a possibilidade de cada elemento de oferecer outros níveis de significação, o pós-drama age na diversão, ou seja, no espalhamento das potencialidades do sentido, aumentando, assim, a função de quem frui, esse o responsável pela hierarquização dos sentidos de cada elemento e da construção do todo. O drama converge, o pós-drama diverge (não confundir com diverte). Nesse sentido, faz, sim, sentido, falarmos em parte dramática e em parte pós-dramática, já que estamos falando em gêneros cênico-narrativos, ou seja, de história da arte.
Tu falaste nos personagens que existem na peça. Bueno, devo te dizer uma coisa: talvez, tu estejas por demais imerso no trabalho e esqueceste que, o que para ti é óbvio, para as pessoas não é. Eu não recebi o release da peça e faço questão de não ler o programa antes de ver o espetáculo. Isso faz com que minha impressão seja pura. Lembro das palavras Vicente e Frederico, também Mestre. Mas não lembro de outras. E quero dizer ainda que nada disso me faz falta. Como acho que deixei claro na crítica, gostei da peça. Vejo que ela tem duas partes iniciais e uma final que dá sentido às duas anteriores. Vejo que ambas são boas, embora cada uma siga uma estrutura que é adversa.
Por fim, sim, deixei de falar de diversos outros elementos como o cenário e, mesmo dos que falei, fui breve demais em relação ao que a obra merecia. Ocorre que minhas críticas têm, no máximo, uma página e meia e isso é para atender ao grande público (eu já acho uma página e meia longo demais!). O Questão de Crítica (o João Cícero estava lá na estreia também) é um coletivo que produz análises mais longas, mais aprofundadas e, provavelmente, no trabalho deles, tu encontrarás tudo isso. Há muitos tipos de críticas e muitos críticos no Rio de Janeiro e estou tranquilo em decidir que eu não preciso e nem devo ter a pretensão de esgotar a obra num só texto analítico.
Parabéns pela peça e pela tua participação aqui. Sem dúvida, aprofundamos os pensamentos e ajudamos na construção da falsa certeza de que é possível esticar aqueles momentos do teatro que, na verdade, são etéreos e, por isso, finitos.
Volte sempre! És muito bem vindo!
Abraços,
Rodrigo