segunda-feira, 8 de julho de 2013

As horas entre nós (RJ)

Cris Larin, Joelson Gusson e Cristina Flores
Foto: divulgação

Nem mesmo uma homenagem à Virgínia Woolf

“As horas entre nós” parte de uma adaptação equivocada do romance “Mrs. Dalloway”, escrito por Virgínia Woolf (1882-1941) e publicado em 1925. Em função disso, toda a concepção assinada por Cristina Flores e por Joelson Gusson se manifesta de forma parcial em quase todos os elementos e em suas articulações ao longo do espetáculo com exceção do excelente figurino. Quando, afinal, a ideia está com problemas, não há como o objeto bem sobreviver. Em cartaz no Teatro Sergio Porto, um exemplo do quão fortemente estruturado precisa estar o conceito para se gerar uma obra. 

Todo o romance “Mrs. Dalloway” pode ser resumido em uma frase: é um elogio à renúncia, à desistência, ao suicídio e, sobretudo, à força e à coragem de que tudo isso precisa para acontecer. Para começar, Woolf escreve neorrealismo, isto é, um ponto além do realismo psicológico, mas com a mesma verticalidade (o leitor lê o mundo da personagem a partir dos olhos dela, com o filtro da crítica, mas sem o embaralho das emoções) que fez de Dostoievski o seu maior escritor. Todo o romance acontece em um dia em que Clarissa Dalloway prepara e realiza uma festa. As horas, então, são alargadas porque, em seus minutos e segundos, há escapes de consciência em cujo fluxo segue o leitor em busca do universo da protagonista, seu passado, seu presente, sua vida e o modo como ela reage a tudo isso. Septimus Smith, o coadjuvante mais importante entre vários do livro, é quem tem a coragem de dar cabo da própria vida, cansado que está de lutar contra as alucinações que ele vem tendo desde o fim da Primeira Guerra Mundial. Fosse romântico ou melodramático, o livro daria importância para as ações. Não o é. Tudo, até mesmo o suicídio de Septimus, são lembranças que passam na cabeça da Sra. Dalloway e que não interrompem seus planos para o dia. Clarissa, a personagem título, vive no mundo agora popularizado (no Brasil) pela série inglesa “Downton Abbey”: o entre guerras, as modificações na política britânica, as sólidas estruturas seculares começando vagorosamente a ser questionadas. Nada disso foi considerado na adaptação de Gusson, em que Septimus tenta funcionar com um espelho de Clarissa. Um erro. Em Woolf, é justamente a diferença entre ambos o que os afasta, ou seja, a coragem que ele tem e ela não são o que importa além de tantas outras coisas na relação de Dalloway e si própria. 

Gusson e Flores trouxeram “Mrs. Dalloway” para o Brasil de 1978. Se, em Woolf, as pessoas retornam pra casa com o fim da guerra, em "As horas entre nós", as pessoas retornam para o que sobrou de um país que vive ainda uma guerra bastante velada (e que, para muitos, nunca existiu). O Tratado de Versalhes marcou oficial e mundialmente o fim da Primeira Guerra. A Anistia não marcou o fim da ditadura brasileira. Septimus de Woolf lutou pela pátria contra outros países. Septimus de Gusson lutou no próprio país contra o governo militar, aliás, do qual faz parte o Sr. Dalloway, marido de Clarissa, e seu amigo de juventude. Se lá Septimus é um herói, aqui é um doente, aterrorizado pela tortura a que sobreviveu, digno de pena. Ou seja, os contextos e as regras que constroem os dois personagens homônimos são diferentes, apesar dos nomes permanecerem inadvertidamente os mesmos. Em suma, “As horas entre nós” é uma rede de argumentos que não conduzem e nem autorizam uma tese. Não há, afinal, tese aqui infelizmente e esse é o maior problema do espetáculo em questão. 

Permanecendo, agora, na análise da peça, nota-se que, principalmente depois de um monólogo de Septimus, todos os personagens, em algum momento, têm um momento de pura retórica em favor de alguma ideia a respeito da vida, das emoções, das relações, enfim. Nota-se aí um esforço em chamar para si uma importância através do verbo, falidas tenham sido as tentativas de fazê-lo cenicamente. Os diálogos se arrastam ou sem profundidade ou com uma profundidade forçada. O melhor momento, um dos únicos realmente bons, é o telefonema de Lucrécia para Clarissa no final da peça. Nele há emoção e imagetização, duas coisas que não são de Woolf, mas bem poderiam ter sido de Gusson, que é outro artista e se propôs, aliás, a algo diferente, embora sem sucesso. 

Os trabalhos de interpretação são difíceis de se analisar, considerando a fragilidade dos personagens que os atores tiveram em mãos. É possível ver bons momentos em Carolina Ferman (Elizabeth), além da já citada cena de Cristina Flores (Lucrécia), mas, de resto, sabe-se que todo o trabalho está comprometido, apesar do elenco ser composto por atores com experiência. 

Com os demais elementos não poderia deixar de ter acontecido o mesmo. A trilha sonora (Vicente Coelho e Dragão Voador) é extremamente ilustrativa e apenas isso. O cenário (Gusson) age no mesmo sentido redundante e pobre, com o desmérito de construir um ambiente próprio para conversas em uma peça em que os monólogos parecem ser bem mais valorizados. O desenho de iluminação é positivamente invisível e o figurino, composto por trajes belissimamente bem feitos, apontam para o realismo, no que fazem bem.

"As horas entre nós" anuncia-se como releitura de Virgínia Woolf, mas nem mesmo uma homenagem lhe presta. 

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FICHA TÉCNICA
Direção e Adaptação: Joelson Gusson
Concepção: Cristina Flores e Joelson Gusson
Dramaturgia: Diego de Angeli e Joelson Gusson

Elenco em ordem alfabética: Carolina Ferman, Cristina Flores, Cris Larin, Joelson Gusson, Leonardo Corajo e Lucas Gouvêa.

Participação de Anna Mullotte (em vídeo).
Diretora Assistente: Dulce Penna de Miranda
Luz: Paulo César Medeiros
Figurinos: Joana Lima Silva
Assistência de figurino: Carolina Casarin
Cenografia: Joelson Gusson
Cenotécnico: André Salles
Trilha Sonora: Vicente Coelho e Dragão Voador
Preparação Vocal: Marly Santoro
Direção de Movimento: Paula Maracajá
Visagismo: Vanessa Andrea
Fotografia: Paula Kossatz
Roteiro Vídeo Praia: Joelson Gusson e Leonardo Corajo
Programação Visual: Balão de ensaio
Assistência de Direção e Produção: Luiz Fernando Lopes
Administrador de Temporada: Marta Vieira
Administração Financeira: Aline Carrocino (Alce Produções)
Assistência de Administração Financeira: Aline Mohamad
Assessoria de Imprensa: Daniella Cavalcanti
Assistência de Assessoria de Imprensa: Fernanda Miranda
Direção de Produção: Aline Carrocino (Alce Produções)
Produção Executiva: Igor Veloso
Realização: ARSX Produções Artísticas e Dragão Voador Teatro Contemporâneo

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