Isio Ghelman no cenário de Miguel Pinto Guimarães |
Um simples e excelente espetáculo
“Novecentos” é um belo monólogo que o teatro carioca produziu em 2011. Dirigido por Victor Garcia Peralta, a partir do texto do italiano Alessandro Baricco (1958), escrito em 1994, o ator Isio Ghelman interpreta um saxofonista de uma pequena orquestra de um navio que conta a história do seu colega pianista, o ilustre Danny Boodman T. D. Novecentos. Com poucos elementos, Ghelman constrói um teatro da melhor qualidade, narrando com excelência estética uma história forte, porque rica, múltipla e capaz de encantar. O espetáculo esteve em cartaz no Teatro Dulcina, na Cinelândia, Rio de Janeiro, dentro da programação artística da ocupação “Dulcina abre o Pano”.
Na narrativa, Danny Boodman T. D. Novecentos é o maior pianista de todos os tempos, apesar de nunca ter saído do navio onde nasceu provavelmente filho de imigrantes da terceira classe. Encontrado no piano do salão principal, o bebê foi criado pelo então pianista tripulante, que o batizou com o seu próprio nome acrescido do ano em que a criança nasceu. Algum tempo depois, quando da morte daquele que o criou, o garoto ficou algumas semanas desaparecido em um dos esconderijos da embarcação, tendo reaparecido, depois, para a surpresa de todos, tocando piano com extrema habilidade e notório talento. Tornado homem de poucas palavras, não havia, em sua vida, nada que depusesse contra ele, sendo admirado por todos. Novecentos encantava os viajantes do navio e encanta as plateias quando sua história é tão bem contada como aqui é o caso. A cena do duelo com o “Pai do Jazz” e a cena em que o pianista ensaia uma saída primeira do navio marcam a curva ascendente que conduz para o ápice que nos tira o fôlego nesse monólogo tão simples e tão excelente.
Isio Ghelman conta a história com precisão e com grandes outros valores. Utilizando de seu carisma, o texto chega ao espectador em doses bem pensadas em um ritmo que se altera positivamente em pausas e em diferentes velocidades e entonações. Pequenos gestos ganham significados grandes em função da estrutura bem articulada que o ator e a direção movimentam no palco. Nada é desperdiçado no falar, no olhar, no andar, no gesticular e em como tudo isso se engendra em um só quadro que começa no início e termina no final. Nenhuma palavra se perde, pois, com habilidade, Ghelman chama toda a atenção para si.
Bem auxiliam o ator a iluminação de Maneco Quinderé, mas há que se dizer que o cenário de Miguel Pinto Guimarães vai além. As linhas horizontais, que variam em tons de cinza e em tamanho, podem significar ondas que são a única paisagem que realmente importa para Novecentos. Para nós, elas são lugares de escape, pontos de fuga difusos em que nos escondemos para fruir a história, fazer a catarse, nutrir a imaginação. As duas linhas verticais em verde e azul, que têm diferentes alturas, podem fazer analogia às teclas brancas e negras do piano, cujo conjunto de 88 peças são metáfora para o mundo que importa ao protagonista. O mérito brilhante do cenário de Guimarães é poder e não ser. Com humildade e força, a arte concreta nos convida a dar sentido, fazendo apenas a sua parte. Por isso, o casamento desse cenário com a história que é contada é tão potente, duradouro e feliz.
Outro toque especialíssimo nessa montagem é a trilha sonora de Ary Coslov. O óbvio seria ouvirmos, durante toda a encenação, músicas interpretadas ao piano. Não é o caso. Coslov, ao participar da concepção de Peralta, situa o espectador de frente para o narrador e não para o narrado. Nas palavras do diretor: “Se Novecentos era o melhor pianista de todos os tempos, que pianista escolher para representa-lo? Cada espectador há de escolhê-lo quando assistir à peça.” Victor Garcia Peralta está certo e sua decisão é inteligente.
Não há primeiro plano no teatro, pois, em todos os momentos da encenação, estamos diante do ator por inteiro. Quando toda a atenção se vê fisgada por sobre apenas uma parte mínima de Ghelman, vemos com facilidade e prazer que estamos diante de um excelente espetáculo.
Ficha Técnica
Dramaturgia: Alessandro Baricco
Tradução: Victor Garcia Peralta e Isio Ghelman
Direção: Victor Garcia Peralta
Intérprete: Isio Ghelman
Produção: Cristiana Lara Resende
Trilha sonora: Ary Coslov
Cenografia e iluminação: Maneco Quinderé e Miguel Pinto Guimarães
Direção de Movimento: Cristiana Lara Resende
Projeto Gráfico: Isio Ghelman
Produção executiva: Roberta Brisson
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