segunda-feira, 8 de julho de 2013

Garras curvas e um canto sedutor (RJ)

Leandro Daniel Colombo, Ângela Câmara e Rafael Sieg
Foto: Tomás Ribas

Bom espetáculo sobre sujeira que fica embaixo do tapete

“Garras curvas e um canto sedutor”, apesar do título pomposo, é um bom espetáculo porque serve de metáfora para a sujeira que sobrevive embaixo dos tapetes das relações humanas. Na Sala Rogério Cardoso, da Casa de Cultura Laura Alvim, um casal vive aparentemente bem até a visita de um amigo cego da esposa. A dupla se correspondia através do envio de fitas cassetes e, com a morte da esposa dele, chegou a hora dos amigos se encontrarem pessoalmente. A visita muda a rotina do casal, especialmente a do marido, alguém que tenta esconder como pode o desconforto que sente com a chegada do visitante. O mérito da direção de Felipe Vidal está em, conforme o texto de Daniele Avila Small, esconder o conflito até quando possível, alargando o tempo, produzindo um certo tipo de pressão que, cada vez mais, aponta para o ápice, indicando um vulcão que há de explodir. Com o ótimo uso do tempo, possível de ser visto, por exemplo, no cinema de Wim Wenders, eis aqui algo sensível na programação de teatro carioca. 

No enredo, há a negação da narrativa tradicional com, por sua vez, a negação da existência de um conflito. João (Leandro Daniel Colombo) se esforça para que o cego Robert (Rafael Sieg) não note o seu desconforto em tê-lo em sua casa na noite em que se dá a narrativa. Nesse sentido, o espectador nota que a) as coisas não estão bem, mas b) há uma tensão que empurra o problema para mais adiante, para ser resolvido depois. Inspirado no conto “Cathedral”, escrito em 1983 pelo o americano Raymond Carver, a dramaturgia de Small tem, após 1) a chegada do visitante, mais dois momentos limiares: 2) a leitura do poema “O corvo”, de Edgar Allan Poe; e 3) a falta de energia elétrica, deixando todos no escuro. Apesar de longa, a cena do poema de Poe, bem lido por Marina (Ângela Câmara) para Robert (Sieg), apresenta o personagem visitante com um pouco mais além da deficiência visual. A morte recente de sua esposa ainda é algo que paira como uma sombra em sua existência, que precisa ser resolvido. Por outro lado, a própria visita de Robert e a situação pós-leitura do poema deixa ver um sentimento que Marina tem em relação ao amigo que não está clara e também tem tido a sua resolução adiada. A queda de energia, que coloca Marina e seu  marido na escuridão (tanto quando sempre esteve o cego Robert), empurra João para diante de si próprio. Surge, de forma muito peculiar(e positiva!), o conflito de forma clara e, ao mesmo tempo, o ápice e o encerramento. “Garras curvas e um canto sedutor”, cujo título é uma analogia à Esfinge, só faz sentido no final.

São bastante positivos os trabalhos de interpretação. Colombo (João) e Sieg (Robert) enfrentam bem o desafio de não caírem nos clichês: o marido turrão e briguento, e o cego com dificuldade de se localizar e coitadinho. O mérito maior, no entanto, é de Ângela Câmara por dar vida (leia-se profundidade) a uma personagem quase ilustrativa, que se encontra no meio do caminho entre dois homens. Câmara deixa ver uma Marina palpável, existente e sublime a partir do seu excelente uso do tempo, boas entonações e de excelente expressão dos olhares. 

O fato da história estar situada em uma era pré-internet é positivo porque seu advento deu novo ritmo para a vida humana. O alargamento da vida tem outro sentido em um mundo de LPs, fitas cassetes e de televisores sem controle remoto. Nesse contexto, é positivo o cenário realista de Aurora dos Campos, que situa o apartamento de João e de Marina de forma a apontar para a história. São positivos também o uso da iluminação (Tomás Ribas), do figurino (Flávio Souza) e da trilha sonora (Felipe Vidal), que também informam sobre os personagens e as situações sem trazer problemas. É necessário, nesse tipo de teatro, que tudo seja próximo do real além da narrativa para que, rapidamente identificados, passemos a buscar, na estrutura cênico-narrativa, o elemento capaz de mover-nos através do tempo. E é justamente esse interessante jogo de esconde-esconde do conflito que faz dessa peça algo com valor estético elogiável. 

“Garras curvas e um canto sedutor” é uma produção do Complexo Duplo ao lado de “Nenhum”, também em cartaz no mesmo espaço. Eis aí um exemplo da complexidade humana: não há bons ou maus artistas, mas bons e maus trabalhos. Aqui temos um exemplo do primeiro. 

*

Ficha técnica:
Texto: Daniele Avila Small
Direção: Felipe Vidal
Assistência de Direção: Sabrina Fortes

Elenco:
Ângela Câmara
Leandro Daniel Colombo
Rafael Sieg

Preparação corporal: Felipe Khoury
Cenografia: Aurora dos Campos
Iluminação: Tomás Ribas
Figurinos: Flávio Souza
Direção Musical: Felipe Vidal
Programação visual: Fernando Nicolau
Ilustração: Arthur Santiago
Assessoria de imprensa: Bianca Senna – Astrolábio Comunicação
Fotos: Daniele Avila Small e Raphael Cassou
Assistência de cenografia: Ana Machado
Operação de luz: Raphael Cassou
Operação de som: Débora Grün
Contrarregra: Alan Lima Mendonça
Produção executiva: Dâmaris Grün
Direção de produção: Daniele Ávila Small e Talita Oliveira
Administração: Fomenta Produções
Realização Complexo Duplo e Projéteis – Cooperativa Carioca de Empreendedores Culturais
Idealização do projeto: Daniele Avila Small, Felipe Vidal e Talita Oliveira

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Bem-vindo!