domingo, 14 de abril de 2013

Caixa de Areia (RJ)

Júlia Marini e Flávio Graff brilham em última parte
da Trilogia Pessoal de Jô Bilac
Foto: divulgação

Pensar a vida ao invés de simplesmente vivê-la: Jô Bilac ganha mais uma vez

“Caixa de Areia” (2013) é a última parte da Trilogia Pessoal, escrita por Jô Bilac, antecedida por “Savana Glacial” (2009) e por “Popcorn” (2011). Se, na primeira, estava em cena o criador, na segunda, a questão era a criação. Agora, quem figura no centro da narrativa é a crítica. Mais uma vez, Bilac oferece excelentes diálogos e uma construção dramatúrgica não linear que, para quem está acostumado com narrativas mais contemporâneas, tem, em sua forma, muito mais a dizer do que propriamente no conteúdo. O jogo de palavras no diálogo, a sua organização fala após fala, com pontos de virada específicos traduzem em conjunto o ponto de vista do autor sobre os personagens: eles não estão ali por acaso, simplesmente contando uma “historinha”, mas têm funções bem definidas e com vários níveis e possibilidades de fruição. Como nas duas peças já citadas, “Caixa de Areia”, dirigida por Sandro Pamponet e pelo próprio Bilac, só faz sentido enquanto todo, adiando para o fim o seu sentido mais pleno. A crítica de arte Ana precisa encontrar na sua vida exatamente o que precisa procurar nas peças a que assiste como parte seu trabalho: algo concreto que dê lógica para o todo e seja suporte para a análise e, consequentemente, a avaliação. Sem isso, sem esse ponto firme no qual o crítico de arte precisa se agarrar, tudo nas obras parece “solto no ar”, etéreo demais e, por isso, impossível de compreensão (e, consequentemente, de tradução num texto analítico que deverá servir aos leitores de críticas). Em cartaz no Teatro do Sesi, no centro do Rio de Janeiro, há aqui uma peça de teatro que sustenta nos diálogos fortes a atenção da plateia mais disposta a pensar do que simplesmente reagir de forma emocional. Com produção de Mariana Serrão, eis um espetáculo que está longe de ser mero entretenimento. 

Mais de vinte anos depois da separação do marido, Ana reencontra o ex pela primeira vez. Ao contrário do que ela pensou (ou planejou) que seria, ele morrera antes dela e esse reencontro se dá no velório dele, com o seu corpo deitado imóvel no caixão. “Caixa de Areia” começa quando Ana volta a casa onde morou com seus pais e seus irmãos na infância e onde também morou com esse ex-marido agora morto. O fim do casamento foi precedido por um acontecimento trágico: o filho do casal, ainda um garoto, morrera, deixando a mãe repleta de culpa pelo acontecido e o marido desolado pela perda. Estranhamente, no dia do enterro do menino, o casal, ele um jornalista e ela uma crítica de arte, foi assistir a um espetáculo de teatro. Naquela noite, Ana escreveu a análise dessa peça, mantendo o seu profissionalismo apesar do momento de dor que a situação lhe impunha. Agora, décadas depois, com o ex-marido enterrado, ela retorna ao lugar onde tudo isso aconteceu, sentindo imensa necessidade de reler essa crítica, uma espécie de “pedra filosofal” que possa dar sentido para a sua existência. Ana acredita que essa análise distante possa ser um símbolo concreto do quanto ela conseguiu e consegue se distanciar dos acontecimentos que se passam diante de si. Ela não amara a mãe como gostaria, não amara o filho como gostaria, não amara o marido como gostaria. Entender racionalmente todos esses porquês, talvez, lhe ajude a observar de forma mais integral o passado mal resolvido, sendo esse, quem sabe, o ponto de vista essencial para poder planejar o resto de futuro que lhe resta. Daí que reencontrar esse texto é o motivo que lhe leva de volta a esse lugar, a esse passado.

Como em “Savana Glacial” e como em “Popcorn”, os acontecimentos na dramaturgia de Jô Bilac não se dão de forma linear, mas misturados, sem lógica aparente e, por isso, têm a possibilidade de representar o real além da narrativa com mais força. Embora haja quem sinta (ou saiba) que os fatos da vida não são por mero acaso, mas fazem parte de uma lógica invisível, o senso comum busca nas histórias a que assiste a relação de “causa e consequência” que, talvez, nem exista fora da ficção tradicional. A complexidade da narrativa de Bilac, cuja bisavó brasileira são os três planos de “Vestido de Noiva”, de Nelson Rodrigues, é uma característica formal presente em todos as obras dessa trilogia. Aqui, de forma mais sensível que nas demais, a opção fortifica um mote que, provavelmente de outro jeito, seria superficial demais e bastante difícil de ser tratado com mérito. Eis, então, o ponto crucial do grande valor que esse espetáculo tem: discorrer com profundidade e com extrema elegância um argumento difícil e bastante longe de ser banal. 

Júlia Marini, que interpreta Ana quando jovem (e casada), nunca ofereceu um trabalho com tanta força, sensibilidade e potência (nas outras vezes em que a assisti) como aqui. Pela primeira vez com excelente uso da carga emocional, ela dosa a energia da personagem, passando da neutralidade à convulsão sem pular nenhum degrau nessa linha ascendente de expressão. Sua presença é sólida e forte, sendo, de fato, o pilar central tanto dessa dramaturgia de Bilac como dessa encenação de Bilac e de Pamponet. Taís Araújo, que interpretada a mãe; e Cris Larin, que dá vida à Ana no presente, estão excelentes também na viabilização de seus personagens. A riqueza de suas construções está em uma visível sobriedade  exterior quando, por dentro, seus sentimentos sucumbem à ruína. Enquanto a Mãe (Araújo) convive com uma filha que a chama de imbecil e com um marido que a abandona em meio a antigos valores que parecem já não fazer sentido, Ana segue sendo a crítica de arte que se esforça em parecer inatingível e imparcial diante de um espetáculo cheio de dor da qual ela mesma faz parte. Em personagens secundários, Luis Henrique Nogueira (o Pai) e Jaderson Fialho (o Marido) aproveitam os poucos momentos que têm para mostrar excelentes trabalhos e, dadas as devidas proporções, atuam no mesmo nível que suas colegas. Nesse sentido, a direção de Bilac e de Pamponet oferece um trabalho de elenco coeso e consequentemente forte que é responsável pela estrutura firme, porque bem articulada, possibilitada também pela direção de movimento de Viétia Zangrandi. 

A cenografia de Flávio Graff é um espetáculo visual à parte. Com mérito dos pequenos detalhes ao todo, o trabalho é um dos mais interessantes já vistos nos palcos do Rio de Janeiro no último ano. Ao mesmo tempo em que faz crescer vegetação em um lugar aparentemente já morto, deixa ver a aridez (árido e areia são palavras com mesma origem etimológica) de jornais antigos, guardados ao invés de ter sido reutilizados para enrolar “peixe”. Em um lugar em que escrivaninhas e cadeiras ganham do chão às alturas, e gavetas e armários se acumulam, o passado e o passado do passado se encontram no presente e podem sufocar a coragem de quem ousa, anos depois, voltar a eles. 

Graff encontra bom eco nos figurinos de Patrícia Muniz e na iluminação de Adriana Ortiz. O quadro, ainda formado pela direção e produção musical de Samantha Rennó (com composições musicais de Rennó, Cris Vergara e de Luiza Brina), é articulado com excelência estética em termos de forma e de conteúdo, esse mérito do mestre Beto Carramanhos, sem dúvida, um expoente no seu ofício de visagista. 

“Caixa de Areia” não é um espetáculo que espera um público disposto a rir, se alienar e a engordar sua carga de divertimento semanal com um programa cultural de junk art. Suas cortinas se abrem para quem quer desfrutar arte de alta qualidade e oferece, em retorno, além de belos trabalhos estéticos, conteúdo sólido para pensar a vida em relação contrária a simplesmente vivê-la. Jô Bilac ganha mais uma vez. 

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FICHA TÉCNICA
De: Jô Bilac
Direção: Jô Bilac e Sandro Pamponet

Elenco: Taís Araújo, Luiz Henrique Nogueira, Cris Larin, Jaderson Fialho e Júlia Marini

Cenografia: Flavio Graff
Iluminação: Adriana Ortiz
Figurino: Patricia Muniz
Direção de Movimento: Viétia Zangrandi
Preparação Vocal: Verônica Machado
Direção de Produção: Miçairi Guimarães e Zulma Mercadante
Direção e Produção Musical: Samantha Rennó
Composição e Arranjos: Samantha Rennó, Cris Vergara, Luiza Brina
Participações Especiais : Márcio Bahia, Felipe Prazeres, Daniela Rennó, Demosthenes Junior
Técnico de Gravação: Pedro Veloso
Técnico de Mixagem e Masterização: Marcelo Frisieiro
Programação Visual: Leticia Andrade
Fotografia: Paula Kossatz
Vídeos: Johnny Luz
Assessoria de Imprensa: Will Comunicação e Luiz Menna Barreto
Visagismo: Beto Carramanhos
Assistente de Cenário: Clarice Bueno
Cenotecnia: Humberto Silva
Assistente de Figurino: Patricia Delvaux
Máscaras: Léobruno Gama
Modelista: Socorro
Alfaiataria: Fátima Léo
Operador de Luz/Assistente de Iluminação: Aramís David Correia
Operador de Som: Romiro Vasques; Kelson Santos e Jorge Madeira
Camareiro: Kaka Silva
Administração: Foco Arte Produtora
Produção Executiva: Mariana Serrão
Assistente de Produção e Contraregragem: Marcel Formiga
Realização: Taís Araújo, Zulma Mercadante e Cena 27 Produções

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