Anna Bello e Cristiano Gualda protagonizam musical com músicas de Chico Buarque |
O estranho poder de fazer Chico Buarque ser inconveniente
O maior mérito de “Na bagunça do teu coração” é vencer o desafio da sua própria existência. Os ótimos arranjos para as canções de Chico Buarque e as boas interpretações de Anna Bello e de Cristiano Gualda, sob sábia direção de Rafaela Amado, merecem efusivos parabéns. A proposta em questão é muito difícil e, por terem vencido batalha tão insólita, as honras devidas são maiores. O grande problema diz respeito ao texto, afinal, comédia romântica é uma coisa e Chico Buarque é o seu exato oposto. Nesse sentido, a dramaturgia de João Máximo e de Luiz Fernando Vianna consegue fazer com que um dos maiores compositores da música popular brasileira pareça inconveniente. Em cartaz no Teatro dos Quatro do Shopping da Gávea, vale a pena ver o resultado de uma guerra vencida em nome da arte teatral, contemplando assim o talento de seus realizadores: elenco, músicos, direção e produção.
O que caracteriza os musicais compostos por Chico Buarque, bem como boa parte de suas canções, é a brasilidade, então, traduzida por meio da ironia, do deboche, dos sentidos ocultos, do jogo de palavras, de seus sons, de seus significados. Nas letras, o tom político, bem como o sensual, estão presentes ao longo das cinco décadas de música da carreira do artista. Os meios tons, as quebras do samba, a malemolência e a alegria (mesmo que trágica) do brasileiro são, em termos de suas articulações, o segredo que faz Chico Buarque ser quem é para a cultura nacional. No extremo oposto, estão as comédias românticas, o melodrama novelesco, a história idealizada. Com todo o respeito aos dois gêneros, e admiração a ambos, notar que um é diferente do outro não é situar um em lugar mais alto que o outro. Tarkovski seria um péssimo autor de novelas. O excesso de tempos mortos na TV faz cair a audiência. “Na bagunça do seu coração” parece ser “The Sound of Music” escrita por Stephen Sondheim.
O velho e batido roteiro de história de relacionamentos (que continua agradando há décadas e décadas a fio sem desmérito) se repete: um casal se conhece, se apaixona e casa. Começam a aparecer as diferenças, vêm as brigas, eles se separaram. Cada um segue o rumo da sua vida, tentando esquecer o ex-cônjuge. Então, se reencontram e vivem felizes para sempre. Bastante longe da complexidade das relações fluídas vividas na vida além das narrativas românticas, o sucesso do gênero faz par com o alto número de vendas de “Cinquenta tons de cinza” (Erika Leonard James). Seu lugar está garantido por atender a uma demanda que, sem nenhum preconceito, tem o seu valor estético bastante assegurado. A questão aqui é que nada disso tem a ver com Chico Buarque.
Num determinado momento da peça, por exemplo, quando, ainda casados, Ele e Ela começam a brigar, canta-se “O casamento dos pequenos burgueses”. Chico Buarque, com ironia e força, fala de um casal que se odeia, em que um pensa na morte do outro, um trai e o outro finge que não sabe, em que ambos mantêm as aparências. Parte do espetáculo “Ópera do Malandro”, a canção surge no fim dos anos 70, engrossando a campanha em prol da aprovação da lei do divórcio, o que aconteceu em 1979. Na peça escrita por Máximo e por Vianna, o aparecimento dessa canção nessa cena é um equívoco: o casal de protagonistas de "Na bagunça do teu coração" não finge que se ama e não deixará para a morte a responsabilidade pela separação. Nesta dramaturgia, o casal se separa logo em seguida, ou seja, a leveza de que o melodrama precisa para correr solto, privilegiando a sucessão dos acontecimentos, emperra na profundidade da chanchada de Chico Buarque. No repertório de Chico, a história é menos importante que a riqueza semântica dos diálogos. Em outras palavras, o hermetismo apolíneo de “Na bagunça do teu coração (Ele terá três namoradas, Ela terá três namorados. Eles se conhecem numa festa de réveillon em Copacabana, eles se reencontrarão, também, numa festa de réveillon em Copacabana) atrapalha e é atrapalhado pela desforma sensorial dionisíaca de Chico Buarque.
Tirando a trilha sonora, tudo no espetáculo é coerente. Com uma pequena exceção (o bolerinho amarelo da alagoana), todo o figurino (Teca Fichinski) varia de cinza a vermelho, passando pelo azul e pelo rosa. O cenário parte de uma concepção inteligente, que favorece a comédia romântica e a sua agilidade. Sem grandes destaques, o desenho de luz de Luiz Paulo Nenen também aponta para a narrativa em detrimento da forma. Os trabalhos de interpretação são positivos, sobretudo do ponto de vista musical, em que tanto Bello quanto Gualda protagonizam excelentes números, considerando a intenção do gênero comédia romântica. (No fim dos anos 90, Claudio Botelho e Cláudia Netto interpretaram os personagens e, como agora, naquela oportunidade, foi principalmente a escolha do elenco e da direção, quem garantiu os aplausos.)
A apoteose final de Máximo e de Vianna, a família Von Trapp subindo os Alpes, o casal se reencontrando em felicidade, faz o público sair animado do teatro. Alienado de sua vida real, a que está prestes a se reencontrar, o público esquece o tom amargo de deboche contida na felicidade em technicolor de Chico Buarque. Ela pareceria, afinal, um imenso estraga prazeres.
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Ficha Técnica
ROTEIRO João Máximo e Luiz Fernando Vianna
MÚSICAS Chico Buarque
DIREÇÃO GERAL Rafaela Amado
DIREÇÃO MUSICAL João Bittencourt
ELENCO Anna Bello e Cristiano Gualda
BANDA Ajurinã Zwarg | João Bittencourt | Tássio Ramos
DIREÇÃO DE MOVIMENTO Ana Bevilaqua
PREPARAÇÃO VOCAL Ângela Herz
ILUMINAÇÃO Luiz Paulo Nenen
CENOGRAFIA e FIGURINO Teca Fichinski
DESIGN GRÁFICO Leo Miranda
DIREÇÃO DE PRODUÇÃO Ana Paula Abreu e Renata Blasi
PRODUÇÃO Diálogo da Arte Produções Culturais
REALIZAÇÃO Doravante Produções Artísticas
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