O barítono brasileiro Licio Bruno interpreta o pai da escrava Aida |
Bravo!!
O que é bom não fica velho nunca. “Aida”, composta em 1870, pelo italiano Giuseppe Verdi (1813-1901) voltou ao palco carioca depois de 27 anos de ausência em grande estilo. A montagem atual, uma das maiores produções brasileiras do novo século, reúne mais de 250 artistas, sendo mais de cem em cena, entre solistas, cantores-atores, bailarinos e músicos. Em quatro atos, o espetáculo de mais de três horas (com um intervalo depois das primeiras duas partes) é apresentado com legendas que permitem ao público brasileiro compreender a história cantada (e contada) em italiano. Com excelência em termos de direção de arte (apesar de alguns usos das projeções), a montagem ganha brilho na execução das músicas pela Orquestra Sinfônica do Theatro Municipal e no trabalho de interpretação (canto lírico e atuação) da mezzo-soprana russa Anna Smirnova (Amnéris) e do barítono brasileiro Licio Bruno (Amonastro). Com produção da Fundação Theatro Municipal do Rio de Janeiro, vinculada à Secretaria de Estado de Cultura, a montagem tem direção musical e regência do maestro Isaac Karabtchevsky, direção de cena e iluminação de Iacov Hillel, coreografias de João Wlamir e direção de arte de Helio Eichbauer, marcando o bicentenário do compositor, em cartaz na Cinelândia até primeiro de maio próximo.
Três questões são relevantes na ocasião da montagem desse grande espetáculo: a importância da ópera enquanto gênero teatral que permanece vivo, a manutenção do idioma original versus uma possível versão vernácula (no caso, brasileira) e a hierarquização dos sentidos na construção de uma peça cênica.
A ópera é um gênero que nasceu no fim do Renascimento, quando o mundo, finda a Idade Média, descobriu a Antiguidade e colhia os frutos dos continentes recém descobertos. Deus deixava de ser o mais importante assunto entre as discussões, o sol passava a ser o centro do universo no lugar da Terra e o prazer carnal voltava a ser valorizado. Ultrapassando o Barroco e o Classicismo, o Romantismo floresce no século XVII e início de XIX, se tornando popular até início do século XX. Unindo o regramento racional de Platão com a consideração de emocional de Aristóteles, a ópera une a música, a dança e a literatura no teatro, entretendo o público (burguês) demoradamente com histórias longas cheias de forte apelo sentimental (o trabalho pesado e as preocupações eram coisas para os escravos, os plebeus e os pobres em geral). Com a revolução industrial no final do século XIX, a classe mais baixa começa a ter acesso aos serviços de arte e a ópera se transforma em opereta e a opereta se transforma em comédia musical, tal qual temos hoje principalmente na Broadway e em WestEnd. Assistir a uma ópera hoje, produzida como nos modelos de antigamente, além de ser entretenimento de cunho artístico e repertorial, é também exercício e construção do conhecimento. Verdi, assim como Wagner e Mozart, Puccini, Bizet e Rossini, e tantos outros, foram os Andrew Lloyd Weber, Richard Rogdgers, Oscar Hammerstein, Stephen Sondheim do seu tempo. O ritmo lento, arrastado, repetitivo serve a um mundo que não é mais o nosso, mas vivenciá-lo, do ponto de vista da experimentação museológica, é fundamental para entendermos o contexto atual em que vivemos. A história da escrava etíope apaixonada pelo seu inimigo, o militar egípcio, o qual há de destruir o seu povo e matar seus pais, continua interessando porque escolher entre o amor e o trabalho (ou entre o amor e a família, ou entre a família e o trabalho) permanece na pauta do homem enquanto sujeito de sua existência a partir de suas escolhas. Radamés, o oficial, não sabe que a escrava Aida, é, na verdade, a princesa da Etiópia, país inimigo do Egito. Amnéris, a princesa egípcia, não sabe que Aida, sua serva, é sua rival no coração de Radamés. Como acontece no drama de Agamenon (Ifigênia em Aulis), mas também no de Aprígio (Beijo no asfalto), o homem se divide em dois: o oficial e o amante (Verdi), o rei e o pai (Eurípedes) e o pai e o homem (Nelson Rodrigues). Eis aí o elemento com o qual as histórias de outras épocas também continuam se comunicando com o homem contemporâneo, para citar apenas um elemento de ligação.
Em tempos de globalização, a identidade cultural perde o foco. No momento em que “Passinho de Volante” ("Leke, leke, leke") é citada em versão brasileira de produção americana de “A família Adams”, não seria espantoso assistir a “Aida” toda em português. Felizmente, não é esse o caso. De forma positiva, a produção não subestima o público carioca e prefere legendas a traduções (Por que o mesmo não acontece com os musicais americanos?!), mantendo, assim, a cor sonora das músicas ouvidas na plateia. Por outro lado, e aí negativamente, a montagem atual de “Aida” se utiliza de projeções como um recurso que possa “aliviar” o espectador do cansaço supostamente promovido pelo ritmo lento. É falso. Toda vez que há movimento ou imagens icônicas (rostos de deuses, por exemplo) projetadas, o uso estabelece um contraponto com o que está acontecendo na interpretação. Na briga, o vídeo sempre ganha e quem perde é o teatro e, consequentemente, o seu público. Quando abstratas, as imagens em vídeo têm uso positivo, trazendo textura para o belo cenário de Eichbauer.
“Aida” é literatura enquanto libreto assinado por Antonio Ghislanzoni e é música enquanto partitura de Verdi na regência de Karabtchevsky. Só é teatro (ópera é um gênero tanto teatral como musical, mas aqui, porque encenado, é só analisado como parte do primeiro), assim, enquanto sob a direção cênica de Iacov Hillel. O resultado é bom na medida em que se observa o bom preenchimento do grande palco, a simetria das composições e os bons usos dos níveis, sobretudo na cena final. No entanto, no que diz respeito às interpretações dos atores, perde a oportunidade ser excelente. Carlos Eduardo Marcos (Faraó) e o italiano Rubens Pelizzari (Radamés) estão frios, técnicos e quase inexpressivos em cena. Infelizmente, o resultado menos positivo é o da italiana Fiorenza Cedolins (vale lembrar que a profissional encontrava-se enferma no dia da apresentação aqui analisada!) que interpreta Aida, porque também sobre ela recaem as maiores expectativas. Já interpretada pela diva Maria Callas, falta sensualidade, graça e sobretudo majestade no trabalho visto no palco do Theatro Municipal do Rio. Com os ombros constantemente caídos, a atriz raramente mantém os dois pés no chão, quase sempre deixando um deles em ponta com o joelho dobrado. Quando está parada, observa-se ainda seus pés estão virados para dentro, o que, em conjunto, expressa uma falta de conhecimento das potencialidades do próprio corpo, embora, sem dúvida, tenha excelente uso da voz. É em Savio Sperandio (O sacerdote Ramfis), em Ricardo Tuttmann (o Mensageiro), mas principalmente em Anna Smirnova (A princesa Amnéris) que estão os melhores trabalhos. Há neles força, elegância, carisma, presença cênica, excelentes usos do olhar e das expressões corporais e faciais, além do que diz respeito ao canto. Na hierarquização dos signos que a atualização da partitura para a cena estabelece, este "Aida" parece se chamar "Amnéris" pela importância de Smirnova na cena.
A “Marcha Triunfal” (assista aqui em outra montagem) de “Aida”, presente como leitmotiv em todas as músicas da composição, garantindo sua unidade, é um dos pontos altos da encenação, que deixa, claro, o seu melhor momento para o final. Com coreografias da Escola de Dança da Fundação Theatro Municipal, da Escola Estadual de Dança Maria Olenewa e da Companhia Jovem de Ballet do Rio de Janeiro, o espetáculo tem bons momentos de dança também. A iluminação e os figurinos (Raul Belém Machado) são elementos excelentemente usados.
“Aida” foi uma das últimas grandes óperas compostas na história do gênero e uma das mais famosas, tendo sido apresentada no Brasil, no Theatro Dom Pedro II, apenas cinco anos depois de sua estreia mundial. Assistí-la, ainda viva e potente, é uma forma de homenagear gerações que já se foram, mas cujas marcas seguem nos sendo úteis. À Fundação Theatro Municipal do Rio de Janeiro, por viabilizar esse momento cujos ingressos estão concorridíssimos, o aplauso mais sonoro.
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Ficha técnica:
Solistas:
Fiorenza Cedolins (récitas dos dias 20, 23, 26 e 28 de abril) - Aida
Eliseth Gomes (récita do dia 1° de maio) - Aida
Rubens Pelizzari - Radamés
Anna Smirnova - Amneris
Licio Bruno - Amonasro
Sávio Sperandio - Ramfis
Carlos Eduardo Marcos – Faraó
Lucia Bianchinni - Sacerdotisa I
Ricardo Tuttmann – Mensageiro
Orquestra Sinfônica e Coro do Theatro Municipal do Rio de Janeiro
Direção Musical e Regência: Isaac Karabtchevsky
Direção de Cena e Iluminação: Iacov Hillel
Cenografia e Direção de Arte: Helio Eichbauer
Coreografia: João Wlamir
Maestro Preparador do Coro: Jésus Figueiredo
Figurinos: Raul Belém Machado
Participação especial:
Escola Estadual de Dança Maria Olenewa – Direção de Maria Luisa Noronha
Cia. Jovem de Ballet do Rio de Janeiro – Direção Artística de Dalal Achcar e Direção Geral de Mariza Estrella
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