Ana Carbatti em grande momento de sua carreira |
Complexidade sem peso: um ótimo espetáculo em cartaz
Idealizada por Ana Carbatti e por Sean McIntyre, “Pequenas Tragédias” é uma ótima produção que está em cartaz na Sala Rogério Cardoso, da Casa de Cultura Laura Alvim, em Ipanema, zona sul do Rio de Janeiro. A partir de quatro histórias de Alexander Pushkin (1799-1837), a produção merece ser vista por vários motivos. O primeiro deles é a importância do texto. Em seguida, a excelência das interpretações e, por fim, a forma como os elementos foram bem articulados. Dirigido por Fabiano de Freitas, o espetáculo perde o caminho no início da última história, mas, até aí, só tem méritos. Por isso, vale o aplauso.
Para entender a importância de Alexander Pushkin (1799-1837) para a literatura russa (e mundial), é preciso imaginar, em um homem só, um misto do que há de melhor em José de Alencar e em Machado de Assis. Fruto de uma sólida educação europeia, o pequeno Pushkin teve acesso ao que havia de melhor na arte neoclássica e, já no início do século XIX, sua literatura se tornou cerne tanto do romantismo como do realismo psicológico que iria dominar artisticamente a Europa e o mundo até a era do Iluminismo. O lugar trágico, o ideal romântico e o ponto de vista parcial, assim, fazem dele não apenas o fundador da literatura russa (Camões é o fundador da literatura portuguesa), mas um dos principais escritores da história.
As quatro histórias que fazem parte do espetáculo, cuja dramaturgia é assinada por McIntyre, são: “O convidado de pedra”, “Mozart e Salieri” (que, ao lado de “O cavaleiro avarento” e “O banquete durante a peste”, fazem parte do livro homônimo escrito em 1830), “Conversa entre o livreiro e o poeta” (1830) e “Cena de Fausto” (1825). Nas três últimas da ordem aqui citada, é possível identificar o lugar trágico do personagem protagonista. Salieri não pode fazer outra coisa além de envenenar Mozart. O Poeta não pode fazer outra coisa que não vender seus poemas e sobreviver. Fausto precisa entregar-se a Mefistófoles e cumprir sua parte no acordo. Para esses três personagens, o destino que bate à porta deve ser atendido por mais pesado que o encontro seja. O cordeiro trágico, afinal, é aquele se entrega em silêncio ao sacrifício. O espectador sente esse poder ritualístico que atravessou os séculos de Eurípedes a Racine enquanto faz a sua crítica da situação: ao poder (o Vendedor de Livros), ao cristianismo (Mefistófoles), à mediocridade (Salieri). Baseado nesses aspectos, é possível identificar que Fabiano de Freitas estrutura a cena em retórica lenta e precisa, com frases extremamente bem articuladas, movimentos pesados e com entonações marcadas a contento.
Ainda que, em alguns poucos momentos romântico em demasia, Renato Carrera apresenta excelente trabalho de interpretação. Os gestos são precisos, as marcas de personagens são postas de forma visível, a dicção está perfeita. Sem exceções, o trabalho de Ana Cabartti é vibrante, sólido, consistente. A dupla faz girar a evolução das narrativas com força, empurrando a encenação para o ápice que se dá em um belíssimo black-out ao som do Réquien em Ré Menor, de Mozart (a direção musical é de Roberto Bahal). Bem estruturada, a cena sintetiza as ações até ali, purgando os sentimentos do público na catarse prevista por Aristóteles em sua análise das tragédias clássicas.
Em se tratando da cena final, em que Don Juan, personagem de “O convidado de pedra”, se encontra com a estátua do marido de sua amada, há que se dizer que o seu lugar na dramaturgia depõe contra ela. De todas, é a história menos clara, menos crítica e menos trágica. O lendário personagem de Don Juan vem dos romances de cavalaria, célebres durante o período Humanista (Cervantes) em que o homem descobria o mundo. Não é esse o lugar clássico, por mais esforços que Pushkin tenha feito em situá-lo ali. (Mozart, Baudelaire, Liszt, Dumas e Byron, com mais sucesso, o colocaram no lugar romântico que é seu de direito. Goldoni e Moliére lhe deram graça no teatro farsesco.) Nela, o ritmo da encenação de Freitas cai e nem números com guitarras conseguem fazê-la ajustar-se.
“Pequenas Tragédias” é um espetáculo em que os elementos visuais se articulam ao espaço com excelência. O cenário de Carlos Alberto Nunes enche o lugar de cor e de conforto, sem reduzir as possibilidades de movimento. O figurino de Daniele Geammal permite sentir a oxigenação do lugar árcade (neoclassicismo) com elegância. Renato Machado tem grandes momentos no desenho de luz, sendo o seu melhor nos pequenos focos de luz visíveis quando Salieri (a direção de movimento é de Sueli Guerra) gira ao redor de seu próprio eixo com o veneno na mão.
Exemplo de expressão técnica, inteligência conceitual e visão artística apurada, o trabalho resulta em um espetáculo teatral complexo, mas sem o peso da profundidade. É, por isso, bom objeto de estudo, bom entretenimento e ótima peça de arte.
*
FICHA TÉCNICA
Texto: Alexander S. Pushkin
Tradução: Sean McIntyre
Direção: Fabiano de Freitas
Direção de Movimento: Sueli Guerra
Direção Musical: Roberto Bahal
Elenco: Ana Carbatti e Renato Carrera
Cenografia: Carlos Alberto Nunes
Figurino: Daniele Geammal
Iluminação: Renato Machado
Fotos: Renato Mangolin
Programação Visual: Elio de Oliveira
Direção de Produção: Ana Carbatti
Produção Executiva: Cristina Carvalho
Assessoria de Imprensa: JSPontes Comunicação
I hate you! ah, ah! Excellent!
ResponderExcluir